Nem só na literatura o menino é o pai do homem. “Ao contrário das ciências naturais, que precisam esquecer seus fundadores, as ciências sociais não avançam senão fazendo seu próprio caminho e, por isso mesmo, a questão dos clássicos é constitutiva, está inscrita em sua estrutura e modo de ser”, escreve o professor associado do Departamento de Ciência Política da USP, Gildo Marçal Brandão, em Linhagens do pensamento político brasileiro, que, como o próprio autor define, “é uma tentativa de construir uma hipótese e armar um argumento sobre a existência de famílias intelectuais que estruturam historicamente e politicamente o pensamento político e, por essa via, a luta ideológica e política no Brasil”. O livro reúne textos do autor, totalmente revisados, publicados em vários meios acadêmicos ao longo de muitos anos, mas que, juntos, trazem um painel notável e orgânico da possibilidade de distinguir famílias intelectuais no país, famílias que se conservam como linhagens de idéias, sem que, observa o sociólogo Basílio Sallum Jr., na orelha do estudo, “na maioria das vezes os seus próprios autores, os intelectuais que as produzem, tenham tido consciência de seu parentesco”.
Partindo do princípio que o pensamento político-social nacional se estabeleceu aqui pelo cruzamento de disciplinas tão variadas como a antropologia, a sociologia da arte, a história da literatura, entre outras, Brandão avisa que essa diversidade “moderna” não impediu “a cristalização de um campo intelectual diferenciado, que arrancava do reconhecimento de uma rica tradição de pensamento social e político no Brasil para fazer da reflexão sobre os seus clássicos o instrumento para interpelar inusitadamente a sociedade e a história que os produzem”. O pressuposto de Brandão é que nenhuma grande constelação de idéias pode ser compreendida sem que se levem em conta os problemas históricos aos quais tenta dar respostas e sem observar para as formas específicas em que é formulada e discutida. “Tudo se passa como se o esforço de pensar o pensamento se acendesse nos momentos em que nossa má formação fica mais clara e a nação e sua intelectualidade se vêem constrangidas a refazer espiritualmente o caminho percorrido antes de embarcar em uma nova aventura, para declinar ou submergir em seguida.” Daí, nota, que mesmo a comunidade acadêmica mais esclarecida precisou confessar suas dívidas intelectuais para com os ensaístas.
Por isso então a importância de trabalhar sobre essa “genealogia” do pensamento e determinar as suas linhagens, já que essa reflexão é boa porta de entrada para explicar a natureza e os limites dos projetos políticos que ainda hoje buscam dirigir os processos de construção do capitalismo brasileiro, de aprofundar (ou conter) a democracia política e de como se dará a inserção (autônoma ou subalterna) do Brasil no movimento do mercado mundial. Curiosamente, para pensar a globalização do momento, por exemplo, podemos nos basear em um livro do século XX, Populações meridionais, de Oliveira Vianna, para quem o pensamento nacional sempre se alinhou entre o idealismo orgânico e o idealismo constitucional. Mais tarde, essas duas formas irão compartilhar espaço com o marxismo e o radicalismo de classe média, preconizado por Antonio Candido. Mas as respostas do presente, pela hipótese das linhagens, estão mesmo no passado.
Assim, o liberalismo em voga tem suas raízes no diagnóstico de Tavares Bastos sobre o caráter “parasitário que o Estado Colonial herdou da metrópole portuguesa”. No mesmo tom, Vianna sugere que, em nossa sociedade, “a democracia política constitui uma grande ilusão” e que “sem um Estado forte, qualificado e imune à partidocracia” não sobrevivem nem autoridade, nem liberdade. Outra vertente, oposta, baseia-se no maior progresso de sociedade pela maior expansão da liberdade individual. Se, para um o Estado é tudo, para o outro é fonte de sufocamento da sociedade. Impossível não perceber o mesmo debate ainda hoje.
Linhagens do pensamento político brasileiro continua analisando a força dessas heranças e conclui com um aviso: “É sintomático que o interesse pela teoria social ressurja no Brasil no momento em que a batalha pela institucionalização acadêmica das ciências sociais parece ter sido vitoriosa”. Um estudo imprescindível.
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