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Carlos Alfredo Joly

Carlos Alfredo Joly

Levantamento da biodiversidade paulista transcende universidades e chega à prática

Carlos Alfredo Joly

Marcia MinilloCarlos Alfredo JolyMarcia Minillo

Com a maturidade conquistada em 8 anos de atividade, um levantamento de biodiversidade hoje informa políticas de conservação e busca compostos biológicos para a indústria farmacêutica. “Um dia seremos auto-sustentáveis com os recursos que ganharemos comercializando fármacos”, apostou Carlos Joly no dia 27 de abril, durante balanço das realizações do programa Biota-FAPESP.

Principal nome por trás do Biota e chefe do Departamento de Botânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Joly idealizou e até 2004 coordenou o programa que aproximou pesquisadores de todo o estado de São Paulo para produzir inventários da fauna e flora dos ambientes aquáticos e terrestres – levantamentos cada vez mais urgentes diante das extinções que vêm dizimando uma biodiversidade preciosa também por motivos práticos – como fonte de novos fármacos, cosméticos, defensivos agrícolas e alimentos. “Acho fundamental voltarmos no tempo e entendermos por que a biodiversidade é tão importante e exuberante no Brasil e, particularmente, no estado de São Paulo”, afirmou o botânico.

A volta no tempo não foi modesta: 200 milhões de anos, quando América do Sul, África, Índia, Austrália e Antártida eram um único continente. Há 65 milhões de anos os dinossauros já encontraram uma América do Sul isolada, e surgiram os mamíferos que acabaram por dominar a fauna de vertebrados. No estado de São Paulo, “há mais ou menos 15 mil anos teríamos florestas ao longo da serra do Mar, depois teríamos florestas ao longo das cuestas [relevo semelhante a chapadas encontrado em Botucatu], por causa da umidade dessas regiões. No resto do estado teríamos áreas de caatinga em boa parte do litoral e savana no interior”, descreveu.

Mas segundo Joly ainda não se sabe como esses ecossistemas se alteraram ao longo do tempo. “De qualquer forma, os limites dos ecossistemas já foram muito diferentes e isso, certamente, afetou o processo de formação de espécies.”

O desaparecimento das espécies – não só sua formação – sofreu influência desses processos de expansão e redução dos ecossistemas. Quando temperaturas e umidade subiram e as florestas voltaram a se estender por áreas de cerrado, animais como a preguiça-gigante e o tatu-gigante, que dependiam de vegetação de savana típica do Cerrado, acabaram extintos. Esse processo sofreu também com a influência do homem, que nessa época se instalava no continente americano com lanças e técnicas de caça.
Riqueza paulista

O projeto Biota se concentrou no estado de São Paulo, mas não só o financiamento da FAPESP justifica esse foco. “É uma região particularmente rica em biodiversidade porque, além de toda essa história, ela é o limite sul das áreas de cerrado, o limite norte da floresta de araucária, tem uma extensa floresta densa ao longo do litoral e uma floresta estacional semidecídua no interior. Há muitas áreas de contato entre essas formações”, explicou Joly. “Em cima disso, a geomorfologia – a planície costeira, o planalto atlântico, a depressão periférica, a zona de cuestas e o planalto ocidental – cria diferentes tipos de hábitat, de condições para o aparecimento e a manutenção de espécies.”

Na história mais recente, a mudança na cobertura natural do estado foi drástica, não mais devido a processos naturais. “Se juntarmos toda a história evolutiva com a história da ocupação de São Paulo, veremos que o estado tinha 85% da sua área cobertos por florestas e entre 13% e 14% cobertos por cerrado.” A floresta começou a ser cortada mais intensamente a partir do início do século XIX, com a entrada do café que gradativamente ocupou as áreas florestais.

“Com o plantio de cana entre 1970 e 2000, destruímos 98% do Cerrado paulista.” O ecossistema já quase não existia quando, em 1995, a Secretaria do Meio Ambiente do estado criou o Probio, para conservação da biodiversidade, e o Proclima, voltado para mudanças climáticas. Nesse ano, um workshop reuniu pesquisadores, técnicos da Secretaria do Meio Ambiente, representantes da indústria, das Cooperativas de Cana e do Movimento dos Sem Terra – atores da ocupação do Cerrado. O produto final foi um mapa definindo áreas que deveriam ser preservadas.

“Em 1996 também foi produzida a lista oficial das espécies ameaçadas do estado de São Paulo, mas chegamos a um impasse, pois conseguimos transformar informação científica em legislação, mas não conseguimos envolver os pesquisadores na geração de mais conhecimento”, contou. “Não se coloca sua linha de pesquisa ou alunos que fazem mestrado e doutorado em algo que depende de vontade política, pois o secretário muda, mudam as políticas e não se consegue terminar o que foi iniciado.” Veio daí a idéia de criar um programa de pesquisa em conservação da biodiversidade – proposta de Joly que não foi de imediato acatada pela FAPESP. Era preciso provar que a idéia representava mais do que a mania de grandeza de poucos.

José Fernando Perez, então diretor científico da FAPESP, convocou uma reunião com cerca de cem pesquisadores em biodiversidade. “O grupo foi unânime em dizer que aquilo era importante e que valeria a pena investir num programa especial de pesquisa.”

Desde o início, Joly e sua equipe definiram que os dados levantados pelos grupos associados estariam disponíveis para a comunidade científica e a sociedade na internet. “Em 1997 fizemos um workshop com 120 pessoas em Serra Negra. Todos que participaram ainda pensam em entrar com ação contra o organizador porque eu tranquei todos no hotel, confisquei a chave dos carros e disse, ‘Não se sai daqui enquanto o programa não estiver definido’”, relembrou divertido.

Logo de início, ao reunir o conhecimento que existia mas estava disperso em publicações menores e em arquivos pessoais de pesquisadores, a iniciativa resultou em sete livros publicados que cobriam todo o espectro da diversidade biológica e sobre as Unidades de Conservação do estado.

Assim, o Biota foi concebido, estruturado e planejado pela comunidade científica que depois elaborou projetos de levantamento da fauna e flora de São Paulo. Tudo isso com o cuidado de definir biodiversidade de maneira a acomodar pesquisadores que se embrenham no mato em busca de plantas ou bichos, que passam seus dias em laboratórios e diante do computador para classificar a diversidade biológica, que estudem ecologia da paisagem, que delimitam áreas de conservação e os que procuram incluir populações humanas que fazem uso tradicional do ambiente. “Não estamos interessados apenas em catalogar as espécies, mas nos processos e na manutenção desses processos, em sistematizar as informações para que elas também possam ser usadas por aqueles que tomam decisões políticas.”

Mão na massa
Aprovado o programa, a primeira dificuldade foi padronizar as coletas e o armazenamento dos dados – fazer com que alguém que trabalhe com microorganismos adote o mesmo protocolo de coleta usado para aves ou com plantas. Com esse intuito, pesquisadores das diversas especialidades elaboraram um formulário único para todos.

Outro problema: os mapas detalhados mais recentes eram de 1972. “Em 1972, o Tietê era um rio, hoje ele é uma seqüência de barragens; Campinas, que hoje tem 1,2 milhão habitantes, tinha 450 mil habitantes; não existia a Bandeirantes nem a Imigrantes. Tudo mudou de lá para cá, inclusive, logicamente, o que sobrou de vegetação nativa.” Em parceria com a equipe de Francisco Kronka, do Instituto Florestal, o grupo do Biota partiu de mapas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, que atualizaram com fotografias do satélite Landsat. O mapa que resultou foi inserido na internet, com todos os 696 municípios de São Paulo – que até 1904 eram 13 – demarcados.

No site www.biota.org.br hoje é possível buscar informações no Atlas de espécies, consultar a revista Biota Neotropica ou o banco de dados. “Temos um sistema que não exige máquinas de grande porte, com alimentação on-line, acesso público e, principalmente, montado para ser conectado com outras iniciativas no Brasil e no exterior”, comemora o pai do programa.

Com isso, a situação periclitante do Cerrado, por exemplo, agora é conhecida: sobraram 8.500 fragmentos, mas apenas 10 com mais de 1.000 hectares. “Mil hectares é o tamanho mínimo para manter um casal de lobos-guará. Então, não temos mais área de Cerrado que comporte fauna de grande porte.”

O programa ultrapassou as fronteiras iniciais. Um filhote é o projeto Species Link, que integra coleções biológicas de diferentes instituições de ensino e pesquisa. “Ele começou integrando 35 coleções no estado de São Paulo, depois se conectou ao Rio de Janeiro e ganhou vida própria. Hoje ele é financiado por agências nacionais e internacionais e reúne 135 coleções com 2,4 milhões de registros.” Outro é a revista científica Biota Neotropica, indexada internacionalmente. “Publicamos artigos, inventários, revisões temáticas, chaves de identificação, revisões taxonômicas e notas; os trabalhos são publicados em português, espanhol e inglês. Ela deixou de ser uma revista do programa, é nacional.”

O programa Biota deu também origem ao Bioprospecta, uma rede para identificação de plantas e animais que possam gerar novos produtos como fármacos, cosméticos ou defensivos agrícolas. Joly defende que o Brasil detenha a patente desses princípios ativos e faça parcerias com multinacionais para desenvolver os produtos. “A diferença é garantirmos que o uso comercial retorne em recursos para o Brasil.” Outro objetivo é que uma parte dos rendimentos seja revertida para conservação do ecossistema onde a espécie ocorre e para programas de pesquisa como o Biota.

E o objetivo principal do programa parece próximo de se realizar. Uma parceria com a Secretaria do Meio Ambiente, o Instituto Florestal, a Fundação Florestal e a Conservation International definiu áreas prioritárias para conservação. “Na região noroeste do estado de São Paulo, por exemplo, se tivermos um projeto de recuperação de matas ao longo dos rios, conseguiremos reconectar fragmentos de florestas e de cerrado que sobraram. Ali usaremos os modelos que já existem para replantar vegetação nativa.” Em março deste ano o mapa produzido pelo Biota foi adotado pela Secretaria do Meio Ambiente para guiar políticas de conservação. “De fato, a informação científica trabalhada ao longo desses 8 anos se transformou em política do estado de São Paulo para conservação e restauração da biodiversidade”, comemorou.

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