Miguel Nicolelis guarda com carinho a memória dos jogos de futebol e brincadeiras no parque paulistano do Ibirapuera quando menino. No dia 11 de março ele voltou ao Ibirapuera, desta vez como neurocientista consagrado, para apresentar a palestra “Genes, circuitos e comportamentos: navegando na fronteira da neurociência”. Ao longo de 1 hora, o professor da Universidade Duke, nos Estados Unidos, recapitulou as contribuições de sua carreira à neurociência, contou como a genética é uma das ferramentas que o ajudam a entender circuitos neurais e os comportamentos que se baseiam neles e incitou a platéia a imaginar-se em outro planeta sem sair do lugar.
A pesquisa desenvolvida por Nicolelis está na linha de frente da neurofisiologia atual. Suas técnicas, que permitem medir a atividade elétrica de centenas de neurônios, vêm mostrando que o cérebro é capaz de uma enorme plasticidade na associação entre visão e movimento – o sistema visomotor. Ele verificou também que o aprendizado é capaz de alterar os circuitos cerebrais associados a esse sistema.
Orquestra
A idéia não é nova. Em 1949, o psicólogo canadense Donald Hebb publicou Organização do comportamento, segundo Nicolelis um dos livros mais citados e menos lidos da neurociência – é presença quase obrigatória em listas de referências bibliográficas de trabalhos da área, mas as citações se referem sempre a um mesmo parágrafo sobre a “lei do aprendizado”. Mas a contribuição de Hebb foi imensamente maior. “Ele foi o primeiro a declarar que não existe a ditadura do neurônio único”, conta Nicolelis. O que existem são circuitos. Como Hebb não tinha provas experimentais de suas teorias, porém, a publicação não teve impacto imediato. “Ele criou uma nova era sem que ninguém percebesse”, diz o neurocientista brasileiro.
Hebb plantou a idéia de que sonhar, lembrar, ouvir, falar, prever o futuro, mexer-se – tudo depende de um conjunto de neurônios que atuam como uma orquestra, não uma coleção difusa de células. “Funciona como uma democracia: todos os neurônios votam mas cada voto vale pouco.”
Mesmo assim, entre os anos 1950 e 1970 todos os pesquisadores da área ainda investigavam o funcionamento do cérebro registrando a atividade elétrica das células cerebrais uma a uma. Nicolelis explica as limitações do método: “Era como ir à ópera e só ouvir a voz da Maria Callas, ou tentar entender a Amazônia olhando uma única folha de cada vez”. Hebb argumentava que era preciso ouvir mais vozes e deixou várias perguntas por serem respondidas. Qual é o número mínimo de neurônios necessários para realizar uma ação? São sempre as mesmas células para cada atividade? Quais fatores influenciam a dinâmica desse sistema? Quais são os parâmetros que os regem? Será que uma população de neurônios pode realizar múltiplas tarefas ao mesmo tempo?
Há quase 20 anos Nicolelis deu um passo essencial para responder a essas perguntas. Durante um pós-doutorado, que iniciou em 1989 nos Estados Unidos, desenvolveu uma técnica para monitorar populações de até 500 neurônios de uma só vez em tempo real. Ele implanta no cérebro de animais centenas de eletrodos que não interferem nas atividades normais e por anos passam a fazer parte do organismo. Enquanto isso pesquisadores registram sua atividade neural.
E fez mais. O neurocientista instalado na Duke desde 1994 desvendou a linguagem dos neurônios e conseguiu transformar impulsos elétricos em comandos entendidos por computadores. Essa interface cérebro-máquina, que mostra uma imagem dinâmica de toda a população do circuito neuronal, surgiu como uma maneira de testar hipóteses para chegar às respostas que Hebb procurava. As descobertas deram origem, em 1995, a um artigo na prestigiosa revista Science, no qual Nicolelis analisou populações de neurônios e revelou um funcionamento inverso do que ao olhar um neurônio de cada vez. “Foi um rebuliço”, lembra. Ele também estava criando uma nova era, mas dessa vez a comunidade científica percebeu.
A linguagem dos neurônios é mais uma no repertório lingüístico de Nicolelis. Ele lê uma imagem com inúmeros quadrados coloridos que ilustram a atividade de 50 neurônios de um camundongo por 10 segundos. “Aqui ele dormiu, depois entrou em sono profundo… aqui acordou”, aponta. Os eletrodos monitoravam a região do cérebro responsável por completar o ciclo vigília-sono. “Olhando um neurônio de cada vez seria impossível reconstruir essa dinâmica.”
Trabalho de equipe
Com essas técnicas, Nicolelis já pode escrever uma continuação para o livro de Hebb, onde descreveria em detalhe a dinâmica dos circuitos neurais e decodificaria a linguagem cerebral que gera comportamentos.
A compreensão de como funcionam esses circuitos, que Hebb baseava sobretudo na intuição, já está refinada o suficiente para distinguir como o cérebro lida com situações diferentes. Nicolelis mostra – mais uma vez com os inúmeros quadrados coloridos – a atividade de dezenas de neurônios de camundongos enquanto eles sabem que vão ganhar água açucarada, depois bebem a água e registram a memória da experiência. Em outro momento, os pesquisadores frustraram a expectativa e ofereceram quinino, que tem gosto amargo em vez de adocicado. Depois da experiência os roedores também formaram uma memória, desta vez um alerta: “Não volte a tomar isso”. De maneira geral o padrão de atividade cerebral é semelhante, mas segundo Nicolelis os detalhes são diferentes. Basta aos especialistas analisar a atividade do cérebro dos camundongos para distinguir entre expectativa, aporte sensorial, memória e experiência em si.
Para demonstrar a capacidade que o cérebro de camundongos tem de adaptar-se a novas situações, os pesquisadores desenvolveram uma roda que gira a uma aceleração cada vez maior, batizada de Rotarod. Para não perder o equilíbrio, o roedor precisa constantemente alterar o próprio ritmo de corrida. “O camundongo, que não é corintiano nem nada, ao longo de 1 dia aprende a calcular as mudanças em aceleração”, conta o pesquisador palmeirense. Durante todo o tempo, eletrodos acompanham a ação do cérebro: alguns neurônios não tomam parte no desafio, outros começam a disparar mais e mais impulsos elétricos até acertar o ritmo e outros exageram nas descargas elétricas, mas depois reduzem. Mais do que demonstrar a plasticidade, o experimento detalha como o cérebro vence os desafios. “O que não se sabia”, conta Nicolelis, “porque ninguém até então tinha registrado tantas células ao mesmo tempo, é até que ponto o cérebro do animal pode aprender a calcular a fração de aceleração”.
Curto-circuito
Com essa abordagem, o neurocientista da Duke pretende ajudar a aliviar sintomas neurológicos de doenças como o mal de Parkinson. Ele já conseguiu testar a capacidade de prever os efeitos da atividade neuronal durante cirurgias em pacientes. Anestesiada, mas consciente, a pessoa fala com a equipe médica ao mesmo tempo que eletrodos medem a atividade elétrica em regiões específicas do cérebro. A equipe de Nicolelis verificou que consegue prever com grande confiança as conseqüências da ativação de cada neurônio. “É como ouvir a mesma coisa em duas línguas: a voz do paciente e o cérebro que criou a voz.”
Mas para descobrir os fundamentos da doença é preciso mais. Aí entram os genes do título da palestra. A relação de Nicolelis com a genética é de cliente: ele compra camundongos sem o gene responsável por produzir uma proteína transportadora de dopamina, substância cuja escassez é característica do mal de Parkinson. A dopamina é essencial na transmissão de informação entre neurônios, mas sem as proteínas transportadoras ela não é reabsorvida depois de lançada para fora do neurônio e se perde. Esses camundongos são, para o palestrante do Ibirapuera, “um modelo maravilhoso para estudar Parkinson”. Ele mostra um vídeo em que o camundongo geneticamente modificado está completamente imóvel, um sintoma de Parkinson em estágio avançado. Os animais se recuperam lentamente se tratados com L-Dopa, o tratamento comum em pacientes humanos. Mas o efeito do remédio tem duração limitada e não satisfaz o pesquisador.
Depois de 2 anos imerso no problema, o grupo de Nicolelis entendeu por que Parkinson causa paralisia. Segundo ele, o importante não é quantos disparos elétricos acontecem, mas quando. “O camundongo parkinsoniano na verdade sofre uma crise epiléptica de baixa intensidade” – os movimentos são bloqueados porque neurônios disparam ao mesmo tempo. É como se tanto os músculos que levantam o braço quanto os que o abaixam se contraíssem ao mesmo tempo. O braço ficaria parado, sem conseguir subir nem descer. Nicolelis descobriu que é possível dessincronizar a atividade neural. Basta estimular um nervo periférico, no pescoço, e o camundongo começa imediatamente a caminhar em busca de algum objetivo – no vídeo demonstrado pelo neurocientista, direto para uma garrafa com água doce.
Os resultados mostram que a genética somada à análise de circuitos pode levar a um tratamento inesperado, sem medicamentos, para o mal de Parkinson. Além disso, não tem efeitos colaterais e por isso pode ser usado desde o início da doença. Não se trata de cura, entretanto.
Sem fronteiras
Outro grupo que deve se beneficiar com o trabalho de Nicolelis são pessoas que perderam o movimento por acidente. “Num futuro muito próximo”, prevê, “poderemos fazer vestes robóticas para devolver o movimento”. Para desenvolver a comunicação entre o cérebro e a prótese, Nicolelis conta com a assistência de macacos como Aurora, que se especializou num jogo de computador em que usava um joystick para movimentar um ponto que ao atravessar discos que apareciam no monitor os fazia desaparecer. A destreza era bem paga: suco de laranja brasileiro, guloseima altamente apreciada por primatas residentes nos Estados Unidos.
Numa madrugada em 2003, um espanhol, um russo e um brasileiro observavam a reação de Aurora quando foi posta diante do jogo sem o joystick. A equipe internacional se surpreendeu com a rapidez da adaptação: a macaca manteve a destreza no jogo mesmo sem usar as mãos. Ela pensava os movimentos e um braço robótico comandado por seu cérebro executava a ação. Enquanto jogava, Aurora usava seus braços biológicos para se coçar ou agarrar o pesquisador incauto que passasse por perto. “Em breve a interface com máquinas permitirá ao cérebro libertar-se dos limites do corpo”, resume Nicolelis, que compara a situação à de um tenista que, depois de treinado, passa a considerar a raquete uma extensão da representação do próprio corpo.
O neurocientista parece decidido a estender cada vez mais as fronteiras do corpo. No final de 2007, a macaca Idoya aprendeu a caminhar numa esteira rolante instalada no laboratório de Nicolelis em Duke (veja Pesquisa FAPESP, nº 142). Não era uma academia símia qualquer. Do outro lado do mundo, no laboratório de robótica ATR em Kyoto, no Japão, o robô CBI reproduzia os passos de Idoya, cuja atividade cerebral era transmitida por uma conexão ultra-rápida – mais rápida do que demoraria para que as instruções chegassem do cérebro às próprias pernas de Idoya. Sensores nas pernas de CBI, que segundo Nicolelis será em breve mais famoso na história da robótica do que robôs de filmes de Steven Spielberg, remetiam as sensações da caminhada de volta para Idoya, que sentia como é andar num laboratório japonês. “CBI podia estar em Vênus ou Marte”, imagina o pesquisador. “E Idoya podia estar sentada na praia de Ponta Negra em Natal, no Rio Grande do Norte, olhando o mar e ao mesmo tempo sentindo como é caminhar em Vênus.”
As aspirações científicas do brasileiro vão além deste planeta, mas ao imaginar a sensação de ter um cérebro que se libertou do corpo ele também sonha com aplicações mais cotidianas. “Seria fantástico poder chamar meu filho do outro lado da casa e ele chegar empurrado por um braço mecânico!”
Mais do que um avanço científico, ele vê a possibilidade de próteses cerebrais como uma evolução da espécie humana. Nossos ancestrais inventaram ferramentas, começando pela pedra lascada. A tecnologia aos poucos se sofisticou a ponto de agora ser possível incorporar a tecnologia – próteses robóticas, por exemplo – ao corpo. Pode parecer divagação evolucionista, mas as aplicações clínicas são reais e estão quase ao alcance das mãos. Nos experimentos durante cirurgias para o mal de Parkinson, a equipe de Nicolelis conseguiu reproduzir com um braço robótico os movimentos das mãos dos pacientes.
Olhos no futuro
Essa tecnologia deverá em breve tomar forma no Instituto Internacional de Neurociências de Natal – Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), o centro de pesquisa, educação e saúde que Nicolelis fundou e preside (veja Pesquisa FAPESP, nº 132). E do qual tem motivos para se orgulhar. As instalações de pesquisa que ele criou, com 70% do orçamento proveniente de fundos privados, não devem nada ao laboratório da Duke. A força de trabalho vem de pesquisadores brasileiros, alguns dos quais esperavam no exterior uma chance de retornar, e estrangeiros que buscam aqui novas oportunidades. “É preciso ir ao exterior para ouvir que o momento é do Brasil, tanto econômica como cientificamente”, conta. Essa percepção fica clara no concurso aberto recentemente para preencher vagas de pesquisadores no IINN-ELS, em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Candidatos do mundo todo se inscreveram para concorrer às 11 vagas de docentes que fundarão o Departamento de Neurociência da universidade potiguar.
O IINN-ELS é também um dos maiores esforços privados de educação extracurricular no Brasil. São mil crianças que, depois das aulas na escola pública, à tarde aprendem como a ciência funciona na prática. Pelo microscópio ou pelo telescópio, elas descobrem mundos novos e compreendem os fundamentos das ciências. “Não queremos necessariamente formar cientistas, mas pessoas mais preparadas de maneira geral”, explica o idealizador.
Crianças curiosas e capazes de entender o Universo, deficientes físicos caminhando com próteses robóticas, a paralisia causada pelo mal de Parkinson como um pesadelo do passado, o corpo liberto de seus limites. Nicolelis não tem medo de transcender barreiras: “Sonhos assim hoje soam como delírios, alucinações científicas. Quero fazer com que novos sonhadores nasçam em áreas onde não havia tradição científica”.
Republicar