INCORQuando concluiu a residência médica em pneumologia Rogério de Souza decidiu se dedicar a uma área até então pouco explorada no país, que estuda as interações entre os órgãos que obtêm do ar o oxigênio necessário à vida, os pulmões, e o órgão responsável pela distribuição do oxigênio por todo o organismo, o coração. Em pouco mais de uma década de trabalho esse médico de apenas 37 anos, professor do Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo, vem ajudando a compreender melhor como surge e se desenvolve a hipertensão arterial pulmonar, o aumento brutal da pressão no interior dos vasos que conduzem o sangue do coração aos pulmões. Mais recentemente Souza e sua equipe verificaram que esse problema, considerado raro em boa parte do mundo, não é tão raro assim – ao menos não no Brasil e possivelmente em outros países em desenvolvimento, por sua relação com a esquistossomose.
Até bem pouco tempo atrás se acreditava que a hipertensão pulmonar atingisse apenas 15 pessoas em cada grupo de 1 milhão. Agora o grupo do InCor mostra que essa estimativa, baseada em levantamentos realizados na França, pode ser válida nos países economicamente mais desenvolvidos, mas não em nações com condições mais precárias de saúde como o Brasil. Por aqui, esse problema é pelo menos duas vezes mais comum do que se calculava.
A diferença entre a proporção de casos observada na Europa e a verificada no Brasil se deve principalmente à esquistossomose. Nos países desenvolvidos a forma mais comum da doença é a hipertensão arterial pulmonar idiopática, de origem desconhecida, enquanto aqui – e possivelmente em boa parte das nações em que a população não tem acesso à água limpa e a esgoto tratado – a maior parte dos casos surge em decorrência de uma enfermidade bem mais comum: a esquistossomose, que atinge cerca de 200 milhões de pessoas no mundo (6 milhões só no Brasil). De janeiro de 2006 a agosto de 2007, Souza e sua equipe avaliaram a saúde vascular de 65 pessoas com uma forma grave de esquistossomose – a esquistossomose hepato-esplênica, em que os ovos do verme Schistosoma mansoni geram uma grave inflamação no fígado e no baço – e constataram que 4,6% delas haviam desenvolvido hipertensão arterial pulmonar, segundo artigo publicado em março deste ano na revista Circulation.
Com base nos números apresentados nesse trabalho, feito em colaboração com pesquisadores franceses da Universidade Paris-Sud, em Clamart, os pesquisadores do InCor estimam que quase 13 mil brasileiros tenham hipertensão arterial pulmonar decorrente da esquistossomose, número de casos algumas vezes maior do que o esperado para a forma idiopática da doença. Se esses dados também forem válidos para outros países em que a esquistossomose representa um problema de saúde pública, no mundo todo pode haver cerca de 400 mil pessoas com hipertensão arterial pulmonar, um problema que se instala lentamente e começa a se manifestar a partir dos 40 anos de idade na forma de um cansaço extremo e falta de ar ao realizar esforços físicos moderados, como andar rápido alguns quarteirões, e nos estágios mais avançados impede a realização de atividades corriqueiras como caminhar do quarto até a sala, escovar os dentes ou pentear os cabelos. “Essa forma de hipertensão atinge uma população jovem, em idade produtiva, e pode gerar um impacto importante do ponto de vista social, econômico e de qualidade de vida para os portadores da doença e seus familiares”, comenta o pneumologista brasileiro, que criou o grupo de hipertensão pulmonar no Serviço de Pneumologia do InCor em 1997.
Sob pressão
Provocada pelo estreitamento dos vasos sanguíneos que saem do lado direito do coração, passam pelos pulmões e chegam ao lado esquerdo, a hipertensão pulmonar é bem menos comum do que forma mais conhecida de hipertensão, a hipertensão arterial sistêmica, uma das principais causas de morte no mundo ocidental. Mas não é menos grave. Nas pessoas com hipertensão pulmonar a pressão média no interior da artéria que transporta sangue rico em gás carbônico para os pulmões geralmente é superior a 25 milímetros de mercúrio (mmHg) e pode atingir valores superiores a 100 mmHg, enquanto a normal é inferior a 15 – só para se ter uma ideia, a pressão sanguínea do restante do corpo (sistêmica) considerada normal é bem mais elevada, com valores entre 80 mmHg e 120 mmHg.
Essa pressão elevada é sinal de que o coração enfrenta mais resistência para levar o sangue até os pulmões, onde é oxigenado. O esforço extra faz o músculo cardíaco crescer e o coração aumentar de tamanho até se tornar incapaz de continuar a bater. Se não for tratada, pode matar metade dos portadores do problema em 2,5 anos. “Felizmente esse cenário vem mudando com o uso de medicamentos que auxiliam no controle da hipertensão arterial pulmonar”, afirma Souza.
Ainda não se sabe ao certo como a esquistossomose leva ao espessamento dos vasos sanguíneos pulmonares. Segundo Souza, há sinais de que ovos de Schistosoma se instalem nos pulmões disparando uma inflamação que estimula a multiplicação das células da parede das veias e artérias, e a consequente redução do espaço para o sangue passar. Independentemente do mecanismo que causa a proliferação celular – seja alterações no gene do receptor tipo 2 da proteína morfogenética do osso (BMPR2), seja o uso do redutor de apetite fenfluramina, retirado do mercado por aumentar o risco de problemas cardíacos –, os efeitos são os mesmos sobre a circulação pulmonar. Os vasos tornam-se mais espessos, alteração chamada pelos médicos de remodelação vascular, a pressão sanguínea sobe e o coração cresce, causando cansaço ao menor esforço, como observaram Souza e os pesquisadores do InCor.
Em todos os casos o tratamento consiste em controlar o problema e impedir seu avanço, já que ainda não há cura para a hipertensão arterial pulmonar. Os remédios mais adotados são os compostos que promovem o relaxamento dos vasos sanguíneos e diminuem a remodelação vascular, como os prostanoides, os antagonistas dos receptores de endotelina e os inibidores da enzima fosfodiesterase – deste último grupo, o mais usado é o sildenafil, o Viagra, usado para tratar impotência sexual masculina. O uso desses medicamentos tem permitido aumentar a sobrevida e melhorar a qualidade de vida dos pacientes, segundo estudos conduzidos pela equipe do InCor.
Na opinião de Souza, a saída mais eficiente seria combater de modo mais eficaz a esquistossomose. “Mesmo que se eliminem essa e outras enfermidades que originam a hipertensão pulmonar nos próximos anos, suas consequências continuarão sendo sentidas pelas próximas décadas”, afirma o pneumologista, que participou da definição das diretrizes internacionais de tratamento da doença, a serem divulgadas em breve. É que a hipertensão pulmonar decorrente da esquistossomose e de outras doenças associadas se desenvolve lentamente, ao longo de até 20 anos, e de modo ainda não completamente conhecido.
O projeto
1. Resposta cardiovascular ao exercício na hipertensão arterial pulmonar (nº 07/03762-8); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Rogério de Souza – InCor; Investimento R$ 116.602,74 (FAPESP)
2. Avaliação da musculatura de membros inferiores na limitação funcional por hipertensão arterial pulmonar (nº 07/04862-6); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador
Rogério de Souza – InCor; Investimento R$ 44.315,20 (FAPESP)