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Psiquiatria

Um quebra-cabeça em construção

Proteínas aprofundam noção da esquizofrenia como doença biológica

REPRODUÇÃOWho am I? (detail) – Duane Michals, 1955REPRODUÇÃO

A esquizofrenia não é novidade para quem assiste à novela Caminho das Índias, exibida pela TV Globo entre janeiro e setembro de 2009. Tarso, representado por Bruno Gagliasso, ouve vozes, acredita que lhe implantaram um chip debaixo da pele para roubar seus pensamentos, imagina que vai se dissolver e se descontrola em crises violentas. Os sinais que apresenta formam um quadro completo típico dessa doença que atinge uma em cada 100 pessoas – estima-se que sejam cerca de 1,8 milhão no Brasil. O biólogo Daniel Martins-de-Souza, agora pesquisador de pós-doutorado no Instituto Max Planck para Psiquiatria, na Alemanha, identificou uma série de proteínas envolvidas nos mecanismos bioquímicos da esquizofrenia que vêm ajudando a entender os detalhes de como ela causa todos esses sintomas.

Durante o doutorado no Departamento de Bioquímica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Souza examinou as proteínas produzidas no cérebro de sete pessoas saudáveis e de nove com esquizofrenia. “Cada região cerebral expressa milhares de proteínas diferentes”, conta. “Nós conseguimos reduzir para poucas dezenas as relacionadas à doença.” São proteínas que aparecem em quantidade alterada nos cérebros dos pacientes e podem dar pistas importantes sobre como a esquizofrenia surge e se manifesta. O trabalho foi orientado pelo biólogo Emmanuel Dias Neto, do Laboratório de Neurociências do Instituto de Psiquiatria (IPq), parte do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), e teve apoio financeiro da FAPESP e da Associação Beneficente Alzira Denise Hertzog da Silva (Abadhs).

Em busca dos estragos que a esquizofrenia causa no cérebro, Souza selecionou regiões que já se sabia relacionadas à doen­ça: o córtex pré-frontal, responsável por certos tipos de memória, diferenciação de pensamentos contraditórios, determinação dos conceitos de certo e errado, comportamento social e expressão da personalidade; a área de Wernicke, uma porção do córtex ligada à fala, à linguagem e à comunicação; e o lobo temporal, que participa de processos cognitivos e afetivos. Essa distribuição de zonas afetadas dá uma dimensão da complexidade da esquizofrenia, palavra que significa cisão da mente.

Vários grupos de pesquisa no mundo todo têm se concentrado em analisar alterações genéticas associadas à doença, mas Souza defende o foco nas proteínas, o produto desses genes alterados. “Elas são os jogadores reais que agem no organismo”, justifica, já que um gene mais ativo não necessariamente se traduz numa concentração maior da proteína cuja produção ele comanda. “Confirmamos achados prévios e acrescentamos proteínas que ainda não tinham sido consideradas.” Este ano, os resultados já renderam quatro artigos científicos. Ele agora se concentra em algumas dessas moléculas alteradas para ver como elas participam do desenvolvimento da doença.

Comparar as zo­nas do cérebro alteradas na doença mental é tarefa complexa. “A maioria das proteínas aparece em quantidades distintas nas diferentes regiões cerebrais”, diz Souza. O que ele pretende não é caracterizar o funcionamento de cada parte do cérebro, mas ver o que há de comum entre elas e que pode servir como um marcador da doença, que diferencie pacientes de pessoas saudáveis. “É isso que pode nos ajudar a compreender a esquizofrenia”, aposta. Ele começou então a caça por proteínas – algo como procurar estrelas específicas num céu estrelado – no laboratório de proteômica da Unicamp, liderado por José Camillo Novello e Sérgio Marangoni.

Com resultados promissores em mãos, o pesquisador partiu para o Instituto Max Planck de Psiquiatria na Alemanha em busca de um método mais sensível, que permitisse detectar até mesmo concentrações muito pequenas de proteínas: a análise de proteoma por shotgun, ainda não usada no Brasil. Com esse método mais refinado, foi possível usar até mesmo proteínas muito pouco abundantes para distinguir amostras de cérebros saudáveis daqueles com esquizofrenia.

Exame detalhado
Metade das alterações detectadas pelo grupo do IPq diz respeito à produção de energia nas células. Uma série de proteínas envolvidas na degradação de glicose e na produção de adenosina trifosfato (ATP), a molécula que fornece energia para as células, aparece em quantidade menor nos cérebros dos esquizofrênicos.  Já existiam pistas de que o metabolismo da glicose fica prejudicado nessa doença, mas não se sabia se isso seria uma causa dela ou uma consequência do tratamento. Para Souza, os achados favorecem a primeira opção. “As proteínas que identificamos comprovam que a degradação da glicose está alterada devido à ação de certas enzimas.” Mas a questão está longe de ser definida. Wagner Gattaz, diretor do IPq e orientador clínico do trabalho, explica que todos os pacientes tomavam medicamentos que afetam a atividade cerebral. “A possibilidade de esses medicamentos influenciarem parte de nossos resultados não pode ser descartada”, afirma.

REPRODUÇÃOWho am I? (detail) – Duane Michals, 1955REPRODUÇÃO

Souza detectou altos teores de proteí­nas que combatem o estresse oxidativo, indicando que, além de reduzir o aproveitamento da glicose, as alterações no metabolismo celular geram mais radicais livres, causando danos às células do cérebro. Ele explica que o próprio processo de gerar energia, dentro das usinas celulares que são as mitocôndrias, produz as moléculas oxidativas. Quando a concentração dessas moléculas – os radicais livres – chega a determinado nível, o estresse é tal que as mitocôndrias se rompem e os radicais livres se espalham pela célula.

O método detalhado permitiu enxergar também uma queda na quantidade de proteínas produzidas nos oligodendrócitos. São células importantes porque produzem a mielina, substância que reveste as projeções dos neurônios – as células nervosas responsáveis pela transmissão de informações. Sem mielina os nervos são como fios desencapados que deixam vazar a eletricidade pelo caminho. “Nossos achados sugerem uma alteração em dois marcadores ligados aos oligodendrócitos”, comenta Souza. Três dessas proteínas, a proteína básica de mielina, a transferrina e a glicoproteína da mielina do oligodendrócito, já tinham sido associadas a outra enfermidade sediada no cérebro: a esclerose múltipla. A descoberta sugere que, assim como a esclerose múltipla, alguns sintomas da esquizofrenia podem vir da degeneração do sistema nervoso.

A capacidade dos nervos de transmitirem informação também é afetada pelo cálcio. Souza detectou, por meio de alterações na produção de diversas proteínas, que as células do cérebro dos esquizofrênicos absorvem mais cálcio. Esse importante sinalizador de diversas funções celulares também regula a ação de enzimas que degradam a mielina, por isso um desequilíbrio em sua concentração pode significar perdas importantes nas funções nervosas. O cálcio controla ainda o funcionamento dos receptores de dopamina, um neurotransmissor cuja produção é excessiva na esquizofrenia. Os achados de Souza ajudam a determinar a cadeia que leva à atividade excessiva da dopamina, combatida por psiquiatras com medicamentos que bloqueiam os receptores ativados por ela.

As proteínas apontam ainda outros aspectos da esquizofrenia que merecem investigação mais detalhada, como as relações da doença com o sistema imunológico (estudos epidemiológicos mostram que pessoas cujas mães contraíram gripe durante a gestação têm um risco maior de desenvolver esquizofrenia) e com a estrutura das células. Um quarto das proteínas produzida em maior ou menor quantidade participa na formação do citoesqueleto, cuja modificação afeta a forma das células e também a capacidade dos neurônios transmitirem informações. As alterações têm até endereço certo: algumas das moléculas destacadas são exclusivas dos astrócitos, um dos tipos de célula nervosa que formam o arcabouço do cérebro e mantêm a estrutura onde se encaixam os neurônios. Embora o efeito na estrutura de algumas células seja flagrante na esquizofrenia e ajude a elucidar sua biologia, Souza não investirá nisso como marcador para diagnóstico. “Qualquer doença dá alterações no citoesqueleto”, afirma.

De volta à Alemanha para o pós-doutorado, Souza agora procura quantidades alteradas dessas mesmas proteínas no sangue e no líquor, o fluido que envolve o cérebro e a medula espinhal. Só assim – já que tirar amostras do cérebro de uma pessoa viva está longe de ser um exame trivial – será possível desenvolver um teste diagnóstico que poderia completar o exame clínico em casos nos quais a doença ainda não se manifestou por completo.

Multidimensional
Mesmo com resultados promissores, a análise das proteínas deve ser vista com cautela. “Nenhum exame bioquímico sozinho pode detectar a esquizofrenia”, frisa o psiquiatra Helio Elkis, do Departamento de Psiquiatria da USP e coordenador do Programa de Esquizofrenia (Projesq) do IPq. Para ele, a única forma segura de diagnóstico é a avaliação clínica com critérios internacionais bem definidos, que incluem sintomas psicóticos, como delírios e alucinações; negativos, que envolvem diminuição da afetividade, dificuldade de tomar decisões e falta de interesse; de desorganização do pensamento que torna difícil entender o que o paciente diz; de ansiedade e depressão, e distúrbios cognitivos.

MATHEUS OLIVEIRA/UFPECabeça em fatias: exames de imagem revelam o acúmulo de cálcio no cérebro típico da doença de Fahr, cujos sintomas podem ser confundidos com a esquizofreniaMATHEUS OLIVEIRA/UFPE

Para ele, a credibilidade do trabalho de Souza é reforçada pelo diagnóstico dos pacientes cujos cérebros foram examinados, que seguiu critérios internacionais e incluiu um longo acompanhamento clínico. Mas ele ressalta que muito tem que acontecer antes que uma medição de proteínas possa ajudar no diagnóstico de um quadro psiquiá­trico. “Uma vez identificados os marcadores, serão precisos testes com uma grande população para comparar os resultados moleculares aos clínicos.”

Diante de uma enfermidade com tantas dimensões, quanto mais ferramentas melhor para se elucidar seu funcionamento biológico e, quem sabe, combatê-la. Essas ferramentas podem ter origens inesperadas, como outra doença que provoque efeitos semelhantes aos da esquizofrenia. “O estudo de outras doenças que têm sintomas psicóticos pode ajudar a entender a esquizofrenia”, defende o neuropsiquiatra João Ricardo Oliveira, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ele estudou genes ligados à esquizofrenia há cerca de 10 anos, quando ainda cursava a graduação em medicina. Agora é especialista na doença de Fahr, na qual o acúmulo de cálcio em vários pontos do cérebro causa uma combinação variável de sintomas como parkinsonismo, tremores, dificuldades cognitivas, psicose e alterações de humor. “Quando começa com psicose, a doença de Fahr muitas vezes é tratada como esquizofrenia”, conta. Nesses casos a medicação não tem efeito e o engano só é descoberto quando a calcificação no cérebro aparece em tomografias.

Seu grupo agora estuda a genética e os padrões de calcificação da doença de Fahr e recentemente mostrou, com um par de gêmeos idênticos, o peso da genética na doença: o acúmulo de cálcio começou a surgir ao mesmo tempo e evoluiu de maneira muito semelhante, atingindo as mesmas regiões no cérebro dos dois irmãos, segundo artigo deste ano na Parkinsonism and Related Disorders. Para Oliveira, que tem amostras de cerca de 15 famílias, analisar como a composição genética e os padrões de deposição de cálcio dão origem a diferentes sintomas pode ajudar a entender a esquizofrenia e várias outras doenças.

A tarefa exige abordagens múltiplas. Enquanto comemoram resultados palpáveis, os pesquisadores veem estender-se adiante o percurso que ainda resta seguir. Para confirmar o significado das alterações observadas pelo grupo do IPq, será preciso mostrar que elas são específicas para esquizofrenia e detectar se alguma delas decorre do tratamento, e não da doença. “A especificidade dos achados só pode ser elucidada se, numpróximo estudo, compararmos cérebros de esquizofrênicos e controles sadios com um terceiro grupo, os controles psiquiátricos (por exemplo, pacientes com transtorno bipolar)”, explica Gattaz. Emmanuel Dias Neto completa: “Por anos tentamos simplificar demais. Agora é hora de olhar a coisa com a sua complexidade real,  examinando vias metabólicas, e não marcadores isolados – se estes existissem de fato, provavelmente já teriam sido identificados”.

O Projeto
Metabolismo de fosfolípides em doenças neuropsiquiátricas (nº 02/13633-7); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Wagner Farid Gattaz – USP; Investimento R$ 1.803.528,52

Artigos científicos
MARTINS-DE-SOUZA, D. et al. Proteomic analysis of dorsolateral prefrontal cortex indicates the involvement of cytoskeleton, oligodendrocyte, energy metabolism and new potential markers in schizophrenia. Journal of Psychiatric Research. v. 43, n. 11, p. 978-986. jul. 2009.
MARTINS-DE-SOUZA, D. et al. Proteome analysis of schizophrenia patients Wernicke’s area reveals na energy metabolism dysregulationBMC Psychiatry. v. 9, n. 17. abr. 2009.
MARTINS-DE-SOUZA, D. et al. Prefrontal cortex shotgun proteome analysis reveals altered calcium homeostasis and immune system imbalance in schizofrenia. European Archives of Psychiatry and Clinical Neuroscience. v. 259, n. 3, p. 151-163. abr. 2009.
MARTINS-DE-SOUZA, D. et al. Alterations in oligodendrocyte proteins, calcium homeostasis and new potential markers in schizophrenia anterior temporal lobe are revealed by shotgun proteome analysis. Journal of Neural Transmission. v. 116, n. 3, p. 275-289. mar. 2009.

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