Pedro Hamdan
A ciência tem muito a avançar no que diz respeito a tratar as doenças que afetam 20% da população nas regiões mais pobres do planeta. Enfermidades como a malária e a leishmaniose são conhecidas como doenças tropicais negligenciadas, já que a maior parte dos países pouco desenvolvidos está nos trópicos. Mas na verdade estão associadas à falta de recursos econômicos, ao acesso sanitário precário e ao mau atendimento da saúde: mesmo em regiões tropicais, só existem onde há pobreza. Combater essas doenças é ultrapassar a ciência e atacar as injustiças irremediáveis dos nossos tempos, como disse o químico Carlos Montanari, da Universidade de São Paulo (USP) de São Carlos, na abertura do sexto encontro do ciclo de conferências organizado pela FAPESP e pela Sociedade Brasileira de Química no âmbito do Ano Internacional da Química. “Minorar os estados das doenças tropicais negligenciadas é uma intervenção para promover mudança social”, completou.
Para perseguir esse objetivo além do cien-tífico, mesmo numa série de conferências sobre química, é também preciso cruzar as fronteiras das disciplinas tradicionais. De fato, as palestras do dia 14 de setembro reuniram um engenheiro eletricista eletrônico que virou físico, um químico industrial doutor em química orgânica e professor num instituto de física, e uma química especializada em biologia celular e molecular. Esses líderes na área de desenvolvimento de fármacos que apresentaram suas pesquisas ao público reunido no auditório da FAPESP foram, respectivamente, Glaucius Oliva e Adriano Andricopulo, ambos do Instituto de Física da USP de São Carlos, e Célia Garcia, do Instituto de Biociências (IB) da USP.
Ameaça mundial
Em consonância com o cargo atual de presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Glaucius Oliva se mostrou atento não só à pesquisa, mas também à formação de jovens – representados na plateia pelos já habituais alunos do Instituto Técnico de Barueri e por estudantes do Instituto de Educação Atenas, em Arujá. “Vocês são certamente o nosso maior patrimônio”, disse o físico, cuja gravata imitava um quadro-negro com fórmulas e cálculos escritos a giz.
Bem-sucedido no desafio de falar a uma audiência diversa, Oliva mostrou o impacto das doenças tropicais negligenciadas. “Elas cegam, desfiguram, estigmatizam e potencialmente matam”, alertou, ressaltando que neste momento cerca de 1 bilhão de pessoas estão infectadas com uma ou mais dessas enfermidades e outros 2 bilhões vivem em áreas de risco. No total, uma ameaça a metade da população mundial.
Ele contou que boa parte dos medicamentos em uso ainda hoje foi desenvolvida antes de 1950, quando os colonizadores europeus na África tinham motivos de sobrevivência própria para combater as doenças. O resultado do fim do período colonial é um arsenal antigo e extremamente limitado de fármacos, que se renovou pouco. Nas últimas décadas, o imenso investimento financeiro pela indústria farmacêutica no desenvolvimento de novas drogas não teve impacto expressivo para minorar o sofrimento das populações desfavorecidas.
Mas, mesmo que ainda chegue pouco à prática, a compreensão bioquímica das doenças teve avanços imensos de lá para cá, e é esse conhecimento que norteia o grupo comandado por Oliva no Centro de Biotecnologia Molecular Estrutural (CBME), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. Oliva comparou o encaixe entre as substâncias e os receptores nas células à diversidade de tomadas, preocupação de quem viaja ao exterior com o secador de cabelos na bagagem. “As tomadas brasileiras recentemente sofreram uma mutação e se tornaram resistentes aos aparelhos”, brincou, se referindo à mudança recente nas normas elétricas do país que torna os aparelhos antigos dependentes de adaptadores. É nesse conceito de encaixe que se baseia o desenvolvimento moderno de fármacos, muito diferente da tentativa e erro que norteou avanços históricos na medicina, como a descoberta da penicilina.
“Determinar a estrutura dos receptores é muito importante”, explicou. E é aí, com técnicas que permitem examinar e construir modelos de moléculas, que os físicos podem contribuir para o estudo das doenças. A partir do conhecimento básico dos organismos e das proteínas que causam as enfermidades, é possível localizar os alvos e encontrar moléculas para bloquear os receptores.
Um exemplo é a doença de Chagas: endêmica na América Latina, causa 43 mil mortes por ano entre os 18 milhões de infectados. E não há tratamento eficaz. Uma abordagem é procurar, na biodiversidade brasileira, moléculas que possam gerar um novo fármaco. Com modelos da estrutura de receptores-alvo na membrana do parasita ou das células do hospedeiro, os pesquisadores hoje sabem exatamente as propriedades necessárias num composto que inative esse receptor. É como um quebra-cabeça em que se procura, numa montanha de pequenas peças, uma que tenha, num lado, uma protuberância arredondada e reentrâncias em outros três, por exemplo. Na química, as propriedades procuradas nas moléculas são a capacidade de atrair ou repelir água, ou a tendência a se ligar a elementos específicos. “Podemos ver como uma molécula de planta se encaixa no sítio ativo do Trypanosoma cruzi para combater a doença de Chagas”, explicou.
Adriano Andricopulo, também associado ao CBME, fez coro. “Há uma urgência muito grande por um medicamento novo contra a doença de Chagas.” Um alvo possível, segundo ele, é a cruzaína, uma proteína importante em todo o ciclo de vida do parasita. Vários inibidores dessa proteína já estão descritos na literatura, mas até agora nenhum deu origem a um medicamento que possa entrar em uso disseminado. O mesmo vale para outras doenças, como tuberculose e malária: a equipe de São Carlos está em busca de proteínas-alvo para, em seguida, encontrar novos compostos que bloqueiem o seu funcionamento. Um estudo de triagem biológica automatizada em alta escala foi realizado em colaboração com a Pfizer, visto que os recursos da indústria farmacêutica são quase sempre melhores do que os dos laboratórios nas universidades. O objetivo, nesse caso, é buscar tratamentos para a malária por meio de ensaios experimentais que identifiquem compostos capazes de bloquear a tiorredoxina redutase, uma proteína de Plasmodium falciparum, o parasita causador de uma das formas dessa doença. “Todas as estratégias são possíveis, desde que se possa usar métodos modernos”, avisou.
Nesse arsenal moderno, os icônicos tubos de ensaio têm pouco espaço. Boa parte da busca de princípios ativos é hoje feita em modelos virtuais das proteínas e dos compostos promissores. Nessas representações tridimensionais em computador é possível fazer uma triagem virtual e avaliar se as moléculas visadas podem alterar a conformação da proteína ou impedir mudanças essenciais para seu funcionamento. Um quebra-cabeça, algo como o antigo jogo Tetris.
Mas o trabalho não acaba aí: não adianta encontrar um encaixe perfeito se o composto não consegue chegar à proteína-alvo. Alguns medicamentos podem ser administrados por via oral, por exemplo, outros só funcionam se forem injetados diretamente no sangue. Propriedades como absorção e biodisponibilidade, chamadas de farmacocinéticas, precisam ser levadas em conta quando se pensa em desenvolver medicamentos. “O efeito terapêutico envolve não apenas o princípio ativo, mas também a combinação de propriedades farmacocinéticas”, resumiu Andricopulo. Pensando nisso e numa iniciativa para potencializar o trabalho feito por grupos de pesquisa diversos, os pesquisadores de São Carlos estão montando uma base de dados, disponível gratuitamente na internet, com as propriedades farmacocinéticas e físico-químicas de centenas de compostos.
Biologia da malária
Outra abordagem transcende a análise molecular e considera também o seu contexto biológico. Com esse olhar, Célia Garcia mostrou como um caminho para combater a malária pode estar na conjunção entre a bioquímica e as biologias molecular e celular do ciclo de vida do parasita que a causa, o plasmódio. Depois de injetado no sangue pelo mosquito anófeles, esse organismo microscópico se instala no fígado durante uma fase, antes de invadir os eritrócitos – os glóbulos vermelhos do sangue.
Na busca por descobrir como o plasmódio se reproduz, o grupo revelou uma troca de informações intensa entre parasita e hospedeiro indicadora da existência de receptores muito específicos na membrana das células. É como se houvesse um interfone entre os plasmódios e os glóbulos vermelhos, mostrou Célia, cuja equipe é pioneira em desvendar esse tipo de sinalização.
Ao longo dos anos, o grupo do IB está aumentando o conhecimento dos fatores que tornam a invasão bem-sucedida. Buscar o código para essa comunicação no material genético foi um desafio: não se tinha pistas para a função de 60% do genoma do Plasmodium falciparum, sequenciado em 2002. Com ajuda da bioinformática, os pesquisadores encontraram quatro genes que determinam receptores – chamados de serpentina – da membrana do parasita que funcionam como antenas para a comunicação com o hospedeiro. “A célula do plasmódio precisa captar o que está fora”, explicou Célia. Mais recentemente, descobriram quais moléculas se ligam a dois desses receptores, um passo gigantesco para a pesquisa farmacêutica numa forma inovadora de tentar sabotar a comunicação essencial ao microrganismo invasor.
Mas não basta entrar nas células. “A relação entre o hospedeiro e o parasita é essencial para regular o ritmo da doença”, disse Célia. Essa relação é mediada pelo ATP (substância que funciona como combustível celular) e pela melatonina (hormônio que tem um pico de liberação à meia-noite). “O plasmódio percebe o ambiente dentro dos eritrócitos e sincroniza o ciclo de vida.” Sua equipe já identificou, e está estudando, duas proteínas do plasmódio que se ligam à melatonina. De posse desse conhecimento, a química do IB vem testando moléculas sintéticas que bloqueiam a ação da melatonina sobre o parasita, o que pode melhorar a ação dos antimaláricos.
Encontrar novos caminhos farmacológicos é importante porque a medicação disponível deixa a desejar. A atavaquona, por exemplo, medicamento usado para prevenção, é cara e precisa ser ingerida junto com alimentos gordurosos. “Em colaboração com Vitor Ferreira, da Universidade Federal Fluminense, encontramos um composto mais eficiente e mais barato”, especificou Célia, pensando em caminhos inovadores para desenvolver medicamentos.
Em conjunto, as três palestras abriram uma janela sobre como a biologia, a química e a física interagem para entender e combater doenças. E revelaram uma complexidade que deixa pistas sobre os motivos da lentidão no desenvolvimento de curas.
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