Em meio a avanços em equipamentos, fármacos, técnicas e procedimentos ligados à medicina, o protagonista central costuma ficar oculto: a química. Embora o assunto mereça muito mais tempo de discussão, uma boa porção foi apresentada no último conjunto de palestras do ciclo Ano Internacional da Química na sessão “A química inteligente a serviço da medicina”, coordenado por Leandro Helgueira, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP). O tema reuniu, em 9 de novembro, uma bancada formada quase exclusivamente por químicos: Luiz Henrique Catalani, do IQ-USP, Sidney Ribeiro, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, Etelvino Bechara, do campus de Diadema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Jerson Lima Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – o único médico do grupo.
A química de polímeros, responsável pela produção de produtos como plásticos, foi o foco de Luiz Henrique Catalani, que mostrou como é antigo o uso de substâncias que atuam em conjunto com sistemas biológicos em substituição a algum tecido, órgão ou função no corpo – conhecidas como biomateriais. “Esqueletos do Neolítico mostram que já se conhecia suturas há 32 mil anos”, exemplificou. E tem muito mais. Há 2 mil anos chineses, astecas e romanos já utilizavam ouro para reparar dentes e George Washington, presidente dos Estados Unidos entre 1789 e 1797, usava uma dentadura de marfim de rinoceronte.
Para que uma prótese seja funcional, é essencial pensar na relação adequada entre os tecidos hospedeiros e o biomaterial, uma propriedade conhecida como biocompatibilidade. “O ambiente in vivo não é estático”, lembrou Catalani, “é um processo dinâmico”. Em busca desse bom relacionamento, cada vez mais se analisam as propriedades químicas dos materiais desenvolvidos quando em contato com tecidos biológicos. É o caso do uso de teflon e poliéster em próteses de ligamentos, tendões e discos intervertebrais.
Um tipo de substância que seu grupo vem desenvolvendo no Laboratório de Biomateriais Poliméricos é a eletrofiação. Trata-se de fios em escala nanométrica produzidos por meio de uma injeção de carga elétrica que estira a substância aglutinada numa gota de solução de polímero. A possível aplicação desses fios é formar malhas na mesma escala das células, como um arcabouço em que elas se encaixam, servindo como substrato para a recuperação de tecidos.
Outro foco importante do laboratório de Catalani na USP são os curativos à base de hidrogel. “A ideia de que um curativo deve ser seco é errada”, explicou. O ideal é que seja úmido, leve, não abrasivo e altamente permeável, aderindo à pele sã e não ao ferimento. Não é pouca coisa, mas não termina necessariamente aí: as substâncias que compõem os nanogéis podem ter efeito fungicida e bactericida, contribuindo ainda mais para a cicatrização de ferimentos.
Os hidrogéis também são o foco do Laboratório de Materiais Fotônicos, coordenado por Sidney Ribeiro em Araraquara. É um material constituído por 98% de água e 2% de celulose com estrutura tridimensional nanométrica produzida por bactérias a partir de açúcar. A síntese por meio de microrganismos é uma alternativa importante devido ao impacto ecológico das usinas de celulose em termos de poluição e ocupação de terras com plantações de eucalipto. “A celulose extraída de plantas é um material eco amigável, mas desde que você esteja muito longe das áresa plantadas e da indústria produtora”, brincou.
O grupo vem conseguindo produzir membranas com espessura que pode variar de micrometros a centímetros. O resultado é um material transparente, com alta resistência mecânica e que pode ser usado como substituto da pele em curativos para feridas de difícil tratamento. O grupo trabalha também com materiais de segunda geração, enriquecidos com substâncias com propriedades medicinais como nanopartículas de prata ou própolis.
A proteína fibroína, principal componente da seda, domina outra linha de pesquisa tecida por Ribeiro. O Brasil é o terceiro produtor mundial desse fio extraído de casulos da lagarta Bombyx mori. Desses casulos é possível extrair a fibroína, que nas mãos dos pesquisadores dá origem a materiais tecnológicos com aplicações que vão da medicina à opto-eletrônica, como esponjas magnéticas e filmes transparentes luminescentes.
O grupo da Unesp está concentrado no uso de materiais luminescentes para imageamento em medicina. Elementos importantes para isso são as terras-raras, que podem levar a marcadores luminescentes mais eficazes para diagnóstico e terapia. Ribeiro sonha também com iluminadores solares e células fotovoltaicas. O primeiro cliente será a FAPESP, financiadora do estudo, ele brincou, olhando para a iluminação do auditório.
Organismo alterado
Um especialista em iluminação é Etelvino Bechara, pioneiro nos estudos de como e por que vagalumes emitem luz. Seu grupo na USP também explicou as manchas deixadas por libélulas na pintura dos carros: elas põem ovos atraídas pela luz polarizada pela resina, que seus olhos confundem com a superfície de um lago.
Mas foi um tema bem diferente que o químico – agora professor da Unifesp em Diadema – levou ao público do ciclo de palestras: os danos causados no organismo pelo envenenamento por chumbo, elemento comum em tintas usadas para pintar paredes, em baterias de carros e em brinquedos de plástico, para citar alguns entre inúmeros exemplos. Alguns registros históricos desse tipo de intoxicação foram o do compositor Ludwig van Beethoven, exposto a altos teores de chumbo por frequentar tipografias para controlar a impressão de suas partituras, além dos pintores Vincent van Gogh e Candido Portinari, atingidos pelas tintas que usavam em seus quadros.
Os efeitos são disseminados, porque o chumbo substitui íons de cálcio e de zinco em proteínas essenciais no organismo, inativando enzimas envolvidas no metabolismo aeróbico e na transmissão nervosa. A inibição de reações envolvidas na biossíntese de parte da hemoglobina também causa uma maior produção de ácido aminolevulínico (ALA), com estrutura muito semelhante à do ácido gama-aminobutírico (Gaba), uma substância essencial nas sinapses. O resultado pode incluir danos neurológicos e psiquiátricos sérios, como comportamento antissocial e delinquente. O estresse oxidativo causado pela intoxicação com chumbo também tem efeitos mutagênicos no DNA e gera mau funcionamento no fígado e nos rins. O ALA também induz a liberação do ferro estocado pela proteína ferritina, prejudicando a respiração celular, com perda de resistência física.
Sobre comportamento, Bechara contou sobre estudos com adolescentes presos por infrações criminosas. Ao medir os níveis de chumbo no organismo, pesquisadores descobriram uma chance quatro vezes maior de atitudes agressivas com maior incorporação do metal. Em busca de confirmar esses resultados internacionais, em 2005 ele participou da coordenação de um estudo que avaliou os níveis de chumbo em jovens da então Febem, hoje Fundação Casa. “A relação foi confirmada, mas os resultados não foram mais contundentes porque o projeto foi bloqueado por motivos não justificados”, afirmou.
O químico ainda não desistiu: continua estudando a associação entre chumbo e comportamento antissocial e pretende montar na Unifesp um centro de tratamento e prevenção à exposição. Por enquanto, já se sabe que o tratamento com quelantes e antioxidantes pode ajudar a minorar o estresse oxidativo causado pela intoxicação, mas muitos dos danos não podem ser revertidos.
Mas os efeitos nocivos no cérebro não vêm apenas de fatores externos, como mostrou Jerson Lima Silva. Alterações em estruturas de proteínas normais do organismo podem estar por trás de doenças neurodegenerativas e câncer. Neste último caso, o agente é a proteína p53, que é um fator de proteção contra a formação de tumores. Uma mutação que cause um dobramento incorreto, e portanto afete a sua estrutura, pode conduzir a um desequilíbrio no funcionamento dos genes e, em consequência, ao desenvolvimento de algum tipo de câncer, como vem sendo comprovado em vários estudos. Um efeito curioso relatado pelo palestrante é que a célula mutada parece ter um efeito sobre as outras, como se fosse um processo infeccioso, que também passam a se comportar de forma incorreta e proliferam de forma descontrolada.
Esse efeito infeccioso é também típico nas doenças causadas por príons, como as encefalopatias espongiformes popularizadas pela doença da vaca louca. Nesse caso, já foi demonstrado que a relação entre o príon – uma proteína alterada – e moléculas de água é essencial para a estabilidade estrutural. “Parece que é a hidratação que controla as doenças de conformação proteica”, contou Lima Silva, que vem buscando entender também a ação dos agentes genéticos – o DNA e o RNA – na criação dessas proteínas anômalas.
Em sintonia com o assunto discutido mais cedo no mesmo dia, ele lembrou que nos primórdios do estudo estrutural das moléculas está a britânica Rosalind Franklin, que não foi devidamente reconhecida por seu papel na elucidação da estrutura do DNA. “Agora temos técnicas muito diferentes e mais detalhadas, mas ainda restam problemas não resolvidos que atrasam o desenvolvimento de fármacos”, comparou.
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