Em algum lugar entre os séculos XIX e XX: crianças mortas, antes de serem enterradas, muitas vezes eram vestidas como pequenos soldados romanos, para que, seguindo crenças religiosas da época, chegassem ao céu prontas para exercer o papel de anjos protetores. Quando uma família ia à praia, as mulheres usavam saias longas e sombrinhas; os homens, calças, camisa e chapéu. E ao percorrer as ruas de uma São Paulo que crescia a todo vapor, vendedores de artigos para o lar adaptavam a moda de Paris para um dia a dia sob o sol. Esses são apenas três recortes de uma vasta memória que o Brasil ainda não tirou por completo do armário.
O que se vestiu no passado pode revelar um novo olhar sobre a identidade de um povo, com pistas espalhadas por álbuns fotográficos de famílias, pinturas de museus, cadernos de desenhos, textos literários e revistas antigas. As principais fontes do professor Fausto Roberto Poço Viana, do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), residem nesse tipo de registro. Desde 2007, ele empreende uma minuciosa busca de imagens e textos que possam estabelecer uma ponte entre indumentária e costumes.
O período escolhido para a pesquisa fica entre 1889 e 1930, anos que marcam na história do Brasil o início e o fim da República Velha. As tramas do café com leite é o título do trabalho, em referência às ramificações da já conhecida alternância de mineiros e paulistas na Presidência. Há a intenção de estender o projeto de pesquisa para épocas anteriores a essa.
A transição de uma vida essencialmente agrária para uma outra, que dava seus primeiros passos em direção à febre da urbanização, determina alguns dos traços desse retrato. Mas o apreço pela moda que vinha da França, e no caso dos homens também pelo estilo inglês, mais do que tudo, propagou por aqui um jeito de se vestir parecido com o de europeus, sobretudo das elites.
Essa importação de costumes não significa, para Viana, que o Brasil não tenha criado uma identidade própria. “Não acho que o fato de trazer uma roupa da França implique necessariamente a perda de uma identidade nacional. Pelo contrário. Se há quem fale que perdemos as cores locais por causa disso, eu digo, espere um pouco: perdemos há quinhentos anos então.”
Viana conta que boa parte do vestuário e de modelos de reprodução foi trazida por costureiras e alfaiates estrangeiros, ou ainda por uma elite cheia de dinheiro que fazia compras em Paris. “Até hoje eu peno para entender como é que essa gente aguentava usar essas roupas aqui nos trópicos”, ele diz, em referência a um estilo traçado basicamente para invernos mais rigorosos.
De qualquer forma, os produtos dessa importação eram adaptados. Em um retrato de 1905 que faz parte da coleção do pesquisador, em primeiro plano e com o largo da Misericórdia ao fundo, duas jovens mulheres passeiam de braços dados. Uma delas usa uma saia que deixa à mostra os tornozelos. “Isso é um pequeno escândalo para aquela época”, diz Viana. “Elas estão andando de braços dados pelas ruas, sozinhas, não há um homem ao lado delas, e estão dando risada. Estão mostrando que a próxima geração vai trazer novidades”, interpreta.
Saia curta demais
Na mesma foto, Viana aponta um detalhe. Há pregas na base da saia de uma delas. “Quando ela crescer, vai soltar essas pregas para a saia não ficar curta demais”, explica. Essa prática, continua ele, tornou-se comum em uma época em que o vestuário era considerado patrimônio, herdado dos avós inclusive.
Ao recuperar esse tipo de memória, diz Kathia Castilho, presidente da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Moda, doutora e mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP, As tramas do café com leite preenche algumas das inúmeras lacunas sobre o tema. “A moda e a indumentária no Brasil ainda são assuntos desconhecidos, falta pesquisa, sobretudo sobre épocas mais distantes.”
O passo a passo traçado para a realização do estudo, lembra Castilho, deve fornecer ainda referências para projetos futuros. “Ele revela locais, museus, bibliotecas e publicações que podem, mais para a frente, mobilizar quem se interessa por esse tipo de conhecimento”, aponta.
Entre as principais fontes de Viana estão o Museu Paulista da USP, o Museu de Itu, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Centro de Documentação do Exército, no Rio de Janeiro (para pesquisa de artigos militares) e o arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (para pesquisa de roupas religiosas). Fotos são sempre aliadas preciosas, com destaque para os trabalhos de Marc Ferrez (1843-1923), Militão de Azevedo (1837-1905) e Guilherme Gaensly (1843-1928). E pinturas também fornecem informações, como é o caso do quadro Caipira picando fumo (1893), de Almeida Júnior (1850-1899), que hoje pertence ao acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Fora do meio acadêmico, o estudo também pode cunhar um legado, fornecendo material para o mercado de confecções. “A moda é sempre cíclica. Está sempre ressignificando um determinado valor, atualizando valores históricos. Conhecer a nossa história certamente é algo enriquecedor”, conclui a pesquisadora.
Viana reitera, no entanto, que não é bem moda o que ele estuda. “Estudo indumentária. Moda é tudo o que surge a partir do processos de comercialização em escala industrial. Diz respeito a um modelo de produção. E o que me interessa é o que as pessoas vestem, não necessariamente moda”, explica.
Em outras palavras, interessa a Fausto, além dos manuais de corte e costura da época, o jeito descompromissado de um trabalhador da zona rural, que usa as calças arregaçadas para evitar carrapicho, como mostra uma foto de 1911 publicada no livro Lembranças de São Paulo, de Carlos Cornejo e João Emilio Gerodetti (Studio Flash Produções Gráficas, 1999).
Os pobres estão, na coleção reunida por ele, quase sempre descalços. E quando usam sapatos, muitas vezes, é possível notar que aquele mesmo calçado pode aparecer em uma outra foto, nos pés de outra pessoa retratada, o que dá margem a uma conclusão: alguns artigos eram emprestados somente para que o sujeito posasse para o retrato. O mesmo acontecia com bolsas e sombrinhas.
Para recuperar imagens de negros, a pesquisa segue outras pistas. Já no século XIX, alguns fotógrafos que se estabelecem no país acabam se especializando em fotografar escravos, não necessariamente para documentação de uma realidade. “Eles vendiam retratos do que era considerado exótico lá fora. Em algumas fotografias, é nítido, você vê os escravos num tal estado de depressão… Eles entendiam o que estava acontecendo com eles.”
Há registros também de negros vestidos tal qual aristocratas. As roupas, nesses casos, também eram emprestadas pelos seus senhores unicamente para que o retrato fosse feito. Mas há casos de famílias que conseguiram prosperar após a Lei Áurea (1888) e aparecem vestidas, mais tarde, em trajes sociais.
A pesquisa de Viana surgiu de interesse por assunto vizinho. Ele já havia realizado uma ampla pesquisa de mestrado sobre trajes de cena, sobretudo sobre figurinos de teatro, em um mestrado que, assim como o As tramas do café com leite, teve apoio com bolsa da FAPESP.
O estudo O figurino que surge através do trabalho do ator – Uma abordagem prática e outros projetos relacionados ao tema acabaram rendendo, inclusive, tema específico dentro da atual pesquisa para o As tramas do café com leite, que se subdivide nos seguintes tópicos: indumentária teatral, regional, de folguedos, das atividades sociais, das atividades profissionais e roupa íntima interior.
A classificação segue princípios de trabalho do Instituto Português de Museus, consultado por Viana em 2010, durante seu doutorado em museologia, realizado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia. O último item da classificação (sobre roupa íntima), diz Fausto, tem lhe causado dificuldades extras, principalmente porque, por hábito, roupas íntimas ou eram usadas até o desgaste completo, ou acabavam na lata do lixo.
Há, no entanto, uma fonte inesgotável para a recuperação de memórias mais íntimas: são os cartões-postais eróticos, que, na época, eram comercializados principalmente em bordéis. “Para minha sorte, naquela época, esse tipo de material nunca apresentava a mulher totalmente nua”, diz Viana. “A mulher era sempre fotografada com a roupa interior”, completa.
Os postais eram vendidos no cais do porto e atestam uma fama: “A cultura de que somos o país das delícias, de que o Brasil é um país de libertinos, para onde você vinha ter uma vida sexual ampla, é muito mais velha do que a gente supõe. O próprio Pero Vaz de Caminha [escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral] já mostra encantamento de encontrar aqui mulheres nuas”, considera Viana.
Os trajes eclesiásticos também ganham espaço, com atenção especial para as vestes previstas pelos códigos da Igreja Católica, embora entrem para a pesquisa referências aos mais variados tipos de religião – do candomblé, por exemplo. Fausto conta que as roupas da igreja foram estabelecidas nos anos 1100 e não mudaram até hoje, com pouquíssimas exceções. No Brasil, por exemplo, o traje cor-de-rosa não é usado na Páscoa, como acontece em Portugal.
Há padrões de confecções que dão pistas sobre a origem de cada peça. Algumas roupas com relevo, por exemplo, indicam o uso de uma técnica desenvolvida na França. Os desenhos eram recortados em tecido, aplicados sobre a roupa e, para o acabamento, bordava-se sobre eles, resultando em texturas.
A foto de uma capa pluvial mostra exatamente esse tipo de técnica. Revela também, por conta de um tecido pendurado na parte de trás da peça, que padres saíam pelas ruas debaixo de chuva para abençoar seus fiéis. Esse pano funcionava como uma cobertura para a cabeça, mas acabou, com o passar do tempo, perdendo função e ganhou uso decorativo.
Tempos de luto
Outra foto da coleção de Viana mostra a família da proprietária de terras Veridiana da Silva Prado (1825-1910). Um filho que morreu está representado por uma fotografia colocada em um porta-
-retrato, junto à família. E dona Veridiana, em primeiro plano, usa um pesado vestido preto. “Quando morria um filho, a mulher ficava de luto para o resto da vida. Isso só foi flexibilizado depois da década de 1930, quando o tempo de luto vai sendo reduzido”, conta Viana.
Esse tipo de retrato não revela com fidelidade quais roupas eram usadas no dia a dia, pois era condicionado a uma série de preparativos. Ou seja, vestia-se daquele jeito especialmente para fazer o retrato. Fotos in loco, como a de um grupo que passa em visita a uma estação de trem em construção, tem mais valor para Viana. “Nesse retrato [ele aponta para os homens parados em frente à obra] a gente consegue ler a roupa do dia a dia. Mas claro que não tem um pobrezinho aqui”, ironiza Viana, em referência à fartura de opções protagonizadas pelas classes mais abastadas.
No período retratado há ainda um fato histórico que determina uma série de mudanças. Com o início da Primeira Guerra Mundial, viagens para o exterior passam a ser pouco frequentes. Minguam também as importações de tecidos, que vinham sobretudo da Inglaterra e da França. Como consequência, começam a diminuir, no Brasil, o tamanho das roupas, que vão ganhando contornos mais leves. Na década de 1920 algumas mulheres, por exemplo, já passeiam pelas ruas mostrando braços e parte das pernas.
Para a conclusão da pesquisa, Viana pretende organizar uma exposição com réplicas de trajes históricos a partir de material aproximado. Trata-se de um formato já experimentado em Trajes em cena, que resultou em mostra de figurinos abrigada pelo Teatro Municipal de São Paulo em 2004, com reconstituições de peças históricas do século XX.
Durante a pesquisa do projeto As tramas do café com leite, Viana deparou ainda, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, com os registros feitos por uma pesquisadora chamada Maria Sofia Jobim Magno de Carvalho (1904-1968), uma série de encadernações que reúnem farto material sobre indumentária. Maria Sofia pertencia a uma família de aristocratas, formou-se professora e fundou, no Rio de Janeiro, o Liceu Império, escola de artes femininas, onde foi diretora por 20 anos. Com o nome artístico Sophia Jobim, passou a se dedicar a uma pesquisa que articulou assuntos sobre arte, pedagogia, roupas e costumes.
Sophia estudou no Carnavelet de Paris, no Metropolitan Museum de Nova York e no museu Benaki, em Atenas. Pesquisou arte bizantina no Museu Bizantino de Atenas e Grécia. Trabalhou ainda como desenhista de trajes para cinema, como os de Sinhá moça (1953), da Vera Cruz de São Paulo. Nas diversas viagens que realizou pela Europa, pelo Oriente Médio, pela Ásia e pelas Américas coletou peças antigas, joias, objetos de uso pessoal, assim como indumentárias típicas e regionais. “Ela era uma exímia desenhista, muito cuidadosa e minuciosa em seus registros”, diz Viana.
Os desenhos e os textos reunidos por ela em fichários dão agora material para novas pesquisas de Viana. Algumas raridades fogem tanto à época retratada pelo As tramas do café com leite como à restrição de falar sobre indumentária no Brasil. Também pelo volume e pela riqueza de material, resultam em um projeto à parte, Cadernos de Sophia, que propõe uma revisão desse acervo.
O Projeto
As tramas do café com leite (nº 2006/57161-2); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Fausto Viana – USP; Investimento R$ 95.636,00 (FAPESP)