Eduardo CesarAviões com espaços muito reduzidos, ruído e vibrações em excesso, temperatura e iluminação desagradáveis, qualidade do ar precária e poucas opções de entretenimento transformam qualquer viagem em uma experiência estressante mesmo quando não há turbulência e em voos de curta duração. Em jornadas mais longas, o conforto ou a falta dele faz toda a diferença para quem precisa chegar ao seu destino pronto para trabalhar, fazer turismo ou encarar outro trecho de viagem. As companhias de aviação sabem que para tornar mais agradável o período confinado na cabine é preciso melhorar as condições do ambiente e fazer diagnósticos e estudos detalhados de cada um dos problemas. O resultado mais visível desse esforço no Brasil para aperfeiçoar as novas gerações de aviões foi a inauguração, em abril, do Centro de Engenharia de Conforto (CEC), fruto de um projeto da Embraer em associação com as universidades de São Paulo (USP), Federal de Santa Catarina (UFSC) e Federal de São Carlos (UFSCar), com apoio da FAPESP e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
O laboratório de conforto, como é conhecido, tem cerca de 300 metros quadrados e reproduz uma sala de embarque com finger (passarela que dá acesso ao avião) montado na Escola Politécnica da USP, em São Paulo, no Laboratório de Engenharia Térmica e Ambiental (Lete). A parte principal da estrutura representa a cabine de um jato modelo 170 ou 190, com 30 assentos, instalada dentro de uma câmara de pressão que reproduz as condições de voo. É único no Brasil e um dos poucos no mundo, semelhante ao do Institute for Building Physics, parte do Fraunhofer Institutes, perto de Munique, na Alemanha. “Faremos ensaios integrados dentro dele para verificar como os parâmetros da pressão do ar na cabine, de ruído, vibração, ergonomia, temperatura e iluminação influenciam na percepção de conforto do passageiro”, explica Jurandir Itizo Yanagihara, coordenador do Lete e do projeto “Conforto de cabine”. “O objetivo é melhorar o interior das aeronaves e proporcionar níveis superiores de bem-estar aos passageiros”, diz Jorge Ramos, diretor de Desenvolvimento Tecnológico da Embraer.
A comodidade a bordo transformou-se numa das prioridades das companhias aéreas há alguns anos. No início da aviação comercial o importante era o avião não cair – e as aeronaves não primavam pelo conforto. Depois o interesse voltou-se para a economia. Nos últimos 10 anos outros atributos se tornaram relevantes. O conforto passou a ser reconhecido como um diferencial no mercado de aviação civil e hoje agrega competitividade ao setor. A Embraer, a terceira maior fabricante de jatos comerciais do mundo, com uma receita líquida de US$ 5,8 bilhões em 2011, não poderia deixar de investir nesse aspecto. A Airbus (receita líquida de US$ 140,5 bilhões) e a Boeing (US$ 68 bilhões) vêm na frente. “Todas as grandes companhias do setor estão olhando para o mesmo lugar, dentro das particularidades de cada segmento”, lembra Jorge Ramos. “Pesquisa com passageiros de voos de diversas aeronaves no Brasil feita em 2009 pela UFSCar com a Agência Nacional de Aviação Civil indicou que as principais reclamações relativas à cabine foram espaço pessoal, apoios para pés e braços, inclinação da poltrona, ruído, vibrações e espaço do bagageiro”, diz André Gasparotti, gerente responsável pelo projeto na empresa.
Embora só agora o novo laboratório esteja completamente pronto, os pesquisadores das três universidades já vinham colaborando com a Embraer há vários anos sobre esses itens apontados na pesquisa da UFSCar e também sobre outros, talvez até mais importantes. Jurandir Yanagihara, da USP, por exemplo, trabalhou em parceria com a empresa em 2003 e 2004 no desenvolvimento de um modelo computacional do sistema respiratório para estudar o efeito da descompressão no corpo humano em grandes altitudes. “O sucesso desse software aliado a outro projeto sobre previsão de estresse térmico utilizando um modelo do sistema térmico humano ajudou a aprofundar a cooperação com a Embraer, resultando no atual projeto”, conta o coordenador. Membros daquela equipe, como Mauricio Silva Ferreira, professor da Poli/USP, também participam do “Conforto de cabine”.
Quando a companhia decidiu formatar um grande projeto sobre conforto, as equipes da USP, UFSCar e UFSC foram consultadas, aceitaram participar da parceria multidisciplinar e distribuíram entre si as tarefas de pesquisa – em linhas gerais, pressão de cabine, ergonomia, vibroacústica e ambiente térmico – de acordo com as especialidades de cada grupo. Embraer e USP, por meio de Yanagihara, solicitaram então financiamento à FAPESP no âmbito do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), concedido em 2008. Posteriormente, fizeram o mesmo com a Finep (ver os valores na ficha do projeto).
Estudos isolados
Na primeira fase do projeto os diversos fatores que compõem o conforto do avião foram estudados de forma isolada. Na segunda fase, que começa em maio, o novo laboratório com a cabine dentro da câmara de pressão – chamada de mock-up – será usado para ensaios integrando todos os subprojetos para chegar a parâmetros melhores que os atuais. Um bom exemplo disso é o modelo para avaliação do conforto de pressão. Hoje sabe-se que, para a segurança dos passageiros, as aeronaves civis em operação mantêm uma altitude de cabine de até 8 mil pés (2,4 mil metros) acima do nível do mar. Como os aviões podem chegar facilmente a mais de 40 mil pés (12,1 mil metros), o ar dentro da cabine é pressurizado. O modelo feito pela equipe de Yanagihara leva em conta a troca de gases que ocorre na orelha média (a parte interior, que se liga ao labirinto) e permite prever a que taxas de variação de altitude (pressão) dentro da cabine o passageiro sente ou não desconforto. “Há um trabalho experimental que está sendo feito nessa área por nós, que deve mudar alguns desses parâmetros”, diz o pesquisador da Poli. Os modelos usados ainda hoje na indústria aeronáutica datam de 1937, 1958 e 1967 e são conservadores. “Nos nossos estudos, ainda em curso, achamos limiares muito diferentes do que se encontra na literatura científica.”
Os trabalhos sobre vibração e ruído dentro da aeronave, normalmente feitos de modo separados, foram realizados de forma associada. O pesquisador responsável pelo subprojeto de vibroacústica é Samir Gerges, um engenheiro aeronáutico egípcio naturalizado brasileiro, professor da UFSC. Gerges é um dos mais antigos colaboradores da Embraer. Antes mesmo da privatização da empresa já dava cursos e consultoria para funcionários da empresa. A participação no projeto “Conforto de cabine” com a USP e a UFSCar é uma continuidade de suas pesquisas, que visam diminuir o ruído até o nível aceitável para o passageiro. “Reduzir excessivamente o barulho e as vibrações não é algo recomendável até do ponto de vista da segurança”, diz. “As pessoas têm de perceber que estão num ambiente diferente da cama de casa.”
A equipe liderada por Gerges trabalha para quantificar a situação real de ruído e vibrações na cabine e elabora um modelo computacional de predição. Com essa ferramenta será possível conseguir resultados mais rápidos e baratos para evitar ruídos e vibrações desconfortáveis. O modelo pode ser usado para fazer modificações no projeto de futuras cabines e indicar novos materiais e dispositivos que atenuem o problema. As maiores fontes de barulho estão nas turbinas, no fluxo de ar pela fuselagem e nos sistemas de ar-condicionado, hidráulico e pneumático.
O subprojeto relacionado à ergonomia partiu, como os outros, de um modelo conceitual. Para entender quais eram os principais problemas, a equipe de Nilton Menegon, do departamento de engenharia de produção do Centro de Ciências Exatas e de Tecnologia da UFSCar, fez entrevistas em 36 aeroportos brasileiros. Foi montado um questionário para analisar o que os pesquisadores chamam de pré-voo, com questões sobre o grau de conforto dentro do avião, respondido por 377 passageiros. “Se eles têm problemas antes de embarcar, como overbooking ou muito tempo em filas, isso acaba por influenciar na sensação de conforto que será sentida na aeronave”, explica Menegon. Numa segunda etapa foram realizadas mais 291 entrevistas durante o voo para se saber, entre outras coisas, qual o grau de dificuldade da realização de atividades dentro da cabine, como ler, escrever, interagir com os comissários, alimentar-se, repousar e ir ao banheiro.
Os pesquisadores também observaram como os passageiros agiam – primeiro fazendo anotações digitais e depois filmando. “O objetivo foi estabelecer um curso de atividades realizadas durante as fases de embarque, cruzeiro e desembarque, identificar a distribuição dessas atividades ao longo do voo, além de quantificar todas essas ações”, explica Marina Greghi, da equipe de Menegon, uma psicóloga especializada em ergonomia que se doutorou este ano com uma tese sobre conforto de passageiros em aviões. “As observações sistemáticas também visaram identificar os comportamentos visíveis dos passageiros como gestos, posturas, ações sobre os dispositivos e comunicações, por exemplo.”
O material de filmagem foi armazenado em um site para ser visto pelos passageiros que aceitaram participar do processo de reconstituição dos dados, que consistiu em uma entrevista por telefone ou via internet para aprofundar as análises contrapondo-se a visão do pesquisador à do passageiro. Com todo esse material foi possível criar um banco de imagens e estatísticas e desenvolver um software para análise das atividades das pessoas em ambiente restrito a partir do registro e análise postural baseada em um protocolo de observação. Com o software é possível reconstruir, de modo digital, as ações do passageiro e com essas informações gerar o que os pesquisadores chamam de envelopes de posturas, que ajudam a determinar a área e o volume ocupado pela pessoa ao realizar as atividades. “Os envelopes podem ser utilizados no projeto para análise do espaço na cabine e da ação de seus ocupantes, de forma a identificar se é possível ou não fazer determinada atividade naquele local”, diz Marina. Batizado de Ilios Pose, o software em questão gerou uma patente. Nilton Menegon conta que o próximo passo será dado no mock-up do laboratório de conforto, onde haverá repetição dos procedimentos realizados, agora em ambiente controlado e integrado aos outros subprojetos.
Cereja do bolo
O mesmo ocorrerá com todos os subprojetos. Os estudos relacionados à psicofisiologia permitirão esclarecer a relação entre a percepção de bem-estar mental e fisiológico do passageiro e o desconforto na cabine, explica Renato Ramos, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e professor do programa de pós-graduação em psicologia da saúde da Universidade Metodista de São Paulo. Entreter-se com uma atividade mental pode diminuir a sensação de desconforto e afetar até mesmo a experiência de passagem do tempo durante a viagem e medir objetivamente este efeito é um dos objetivos do projeto. “É como se o passageiro estivesse tão entretido com um livro que chegasse ao final da viagem e dissesse, ‘Nem vi o tempo passar’”, diz o pesquisador. Uma parte do projeto foi realizada com voluntários utilizando realidade virtual para avaliação do grau de envolvimento do indivíduo com determinada tarefa. Nos testes já realizados, ele é monitorado, por exemplo, com relação à frequência cardíaca e a forma como ele explora visualmente o ambiente. Na segunda fase os experimentos serão feitos também no mock-up para ver o que poderá ser aproveitado na melhora do conforto.
No subprojeto microclima o passageiro deverá ter opções para buscar a melhor sensação térmica dentro da cabine. Os dispositivos individualizados de insuflamento de ar, que hoje estão acima da poltrona, deverão ser multiplicados e mais bem controlados, mas sem afetar quem estiver ao lado. Também as poltronas poderão ter sistemas de resfriamento ou aquecimento interno. Na primeira parte dos estudos, realizados pela equipe de Arlindo Tribess, professor da Poli/USP, foram utilizados manequins com sensores de temperatura e fluxo de calor. Um modelo do sistema térmico humano integrado ao software de mecânica dos fluidos computacionais permitirá realizar previsões da reação do corpo humano ante mudanças do ambiente térmico sem a necessidade de testes com pessoas. Segundo Mauricio Silva Ferreira, da Poli/USP, que desenvolveu a ferramenta, a iniciativa é inédita no mundo.
O controle da iluminação na cabine será investigado para se conhecer a real influência da cor no conforto. “Há relatos na literatura científica indicando que a luz quente, próxima do vermelho, seria adequada para atividades como alimentar-se, enquanto a luz fria teria um efeito relaxante, bom para repousar”, diz Yanagihara. Só será possível saber se as luzes coloridas realmente funcionam depois dos ensaios no mock-up. “Se houver comprovação dessa hipótese, poderemos até sugerir novas cores dependendo das atividades dentro da cabine.”
A cereja do bolo do projeto está na repetição dos estudos descritos acima a serem realizados no laboratório de conforto. Desta vez os testes ocorrerão de modo integrado com cerca de mil voluntários nos ensaios que começam em maio. O requisito é ser saudável, já ter viajado de avião pelo menos uma vez e ser morador de São Paulo ou região. Para se inscrever basta acessar www.lete.poli.usp.br/confortodecabine. Um piloto, representado por um pesquisador, dará as boas-vindas e instruções, como ocorre na realidade, e será contratado um comissário de bordo para trabalhar na cabine. Em três momentos durante o voo simulado os voluntários/passageiros farão avaliações sobre o conforto local.
A construção do laboratório foi necessária por não ser possível fazer as experiências usando os aviões da Embraer. “Uma aeronave real já traria as restrições de seu próprio projeto, o custo seria muito alto e a disponibilidade limitada”, diz André Gasparotti. É provável que a nova geração de jatos já traga alterações na cabine que tornem cada vez mais agradável a experiência de voar.
O Projeto
Conforto de cabine: desenvolvimento e
análise integrada de critérios de conforto (nº 2006/52570-1); Modalidade Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Coordenador Jurandir Itizo Yanagihara – Poli/USP; Investimentos R$ 3,2 milhões (FAPESP) e R$ 4,5 milhões (Embraer) e R$ 4,3 milhões (Finep) e R$ 2,9 milhões (Embraer)