Paulo CavalcantiEm seu O 18 de brumário de Luís Bonaparte, Marx, citando a observação de Hegel de que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem duas vezes, completou: “Esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Marx não frequentou a estante de Machado de Assis, no Cosme Velho, mas foi com esse espírito que Machado de Assis revisitou as visões do humano de Shakespeare. “As muitas referências machadianas ao bardo não eram meros ornamentos, mas aprofundavam revelações sobre os personagens. Como em Dom Casmurro, onde elementos da tragédia Otelo, invertidos, revelam a farsa da versão carioca do ‘mouro’, Bentinho, perdido em meio à sociedade patriarcal do século XIX”, explica Adriana Teles, autora do pós-doutorado A presença de Otelo em Dom Casmurro: a problemática do trágico em Machado de Assis, com apoio da FAPESP.
Assim, apesar de Otelo servir de argumento para Dom Casmurro, o romance machadiano não tem o teor trágico da peça. Marx estava certo: a segunda vez é como farsa. “Para Machado, subverter o trágico era mostrar a cara real da sociedade moderna, onde conflitos humanos se pautam por regras de sobrevivência e o comportamento social é mediado pela conveniência. Esse é um mundo que não comporta mais as questões de honra e caráter das tragédias shakespearianas”, observa Adriana. O dramaturgo inglês foi a grande influência literária do “bruxo”, ao longo de toda a sua vida, como ele mesmo confessou em vários escritos: “Não se comenta Shakespeare, admira-se”; ou, “quando não houver império britânico ou república norte-americana, haverá Shakespeare; quando não se falar inglês, falar-se-á Shakespeare”. Especialistas já rastrearam mais de 200 citações do bardo (a pesquisa de Adriana revelou outras mais), de 1859, quando era um aprendiz de crítico com 20 anos, até 1908, ano de seu último romance, Memorial de Aires, e de sua morte. Logo, poucos quiseram ler Dom Casmurro como um “pastiche” de Otelo, apesar das pistas “descuidadas” deixadas pelo narrador. A “traição” do modelo é importante para entender o tema real do livro, que, aliás, não é a traição.
Mas durante seis décadas, entre 1900 e 1960, quando a feminista americana Helen Caldwell desmascarou num ensaio (O Otelo brasileiro de Machado de Assis) a falta de confiabilidade e os ardis do narrador do romance, nenhum crítico brasileiro ou estrangeiro colocou em xeque as alegações de Bentinho sobre Capitu. Até hoje, com poucas exceções, continuam os esforços para “provar” a traição. “Que, aliás, nunca esteve no centro das preocupações machadianas. O livro é uma análise sutil dos fantasmas masculinos no âmbito do patriarcalismo, em que Machado ironiza os pendores românticos e trágico-patéticos da cultura brasileira, em verdade permeada por um espírito antitrágico”, afirma a crítica literária Kathrin Rosenfield, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora da pesquisa A ironia de Machado em Dom Casmurro (2007). Esse “distanciamento” entre discurso e realidade “renasce” como farsa. “Bentinho quer para si um drama trágico e com grandeza, como uma tragédia shakespeariana, mas sua atitude fraca só evidencia o abismo entre o trágico de Otelo e o dramalhão que ele encena”, concorda Adriana.
Para a pesquisadora, essa subversão não afasta Machado de Shakespeare, mas os aproxima. “O caráter de ruptura com parâmetros instituídos orienta a criação de ambos. Shakespeare quebra as unidades de tempo, espaço e ação. Machado inverte a tragédia, incorpora o drama ao romance e, assim, mescla os gêneros, à semelhança do inglês, reforçando que o trágico tem cores cômicas”, analisa a pesquisadora. Otelo não hesita. Bentinho titubeia o tempo todo, é influenciado por tudo e por todos ao seu redor, tem arroubos melodramáticos e pueris, mas não tem coragem de levar seus planos adiante desde menino.
Dominado pela mãe, que fez a promessa de pô-lo no seminário, fantasia encontrar o imperador na rua para pedir que interceda por ele junto à matriarca. É a moça quem age e o faz agir, imaginando meios reais de driblar a mãe, o que suscita o narrador a soprar no ouvido do leitor comparações com a pérfida Lady Macbeth. Percebe “amar” Capitu quando ouve, atrás da porta, comentários de José Dias. O casamento, enfim, acontece, mas apenas após uma demorada espera pela aprovação familiar. “Coerente com essa personalidade, Bentinho, mais tarde, corroído pelo ciúme, mostra-se incapaz de uma ação apaixonada. Não é um Otelo, extremado, mas um ser contido, larvar. Suas atitudes são violentas apenas na intenção, que guarda para si”, nota Adriana.
Paulo CavalcantiContraste
O herói de Machado carece de aspirações e ações, o que esvazia o caráter trágico de sua existência. “Quando ele vai ao tea-tro e assiste a Otelo, vemos o contraste entre a vontade do herói de Shakespeare e a falta dela no brasileiro. Bento deixa o teatro querendo matar e morrer, mas não faz nada. O romance mostra um herói ridicularizado pela própria referência que faz ao trágico, incapaz de separar a distância entre seu universo civil-burguês da tragédia do mouro”, diz a pesquisadora. Assim, o aproveitamento que Machado faz de Shakespeare é irônico e a intertextualidade se afirma pela negação, pela analogia e contraste com a trajetória de Otelo. Apesar de sua admiração pelo bardo, o “bruxo” retoma sua tragédia para subverter o que a sustenta. “O que se vê é o homem burguês carioca do século XIX, distante da grandiosidade heroica, recluso em uma existência amena e banal, satisfeito com sua capacidade de se esconder ou camuflar conflitos e sem vontade ou ímpeto de ação.” Incapaz da violência de Otelo, apesar de motivado pelo que vê no palco, não assassina Capitu, mas opta pela morte “apropriada” ao bom-tom de sua classe social, exilando-a na Europa.
“Ao contrário da peça, em que a verdade vem à tona, isso não acontece no romance. Os personagens já estão mortos e Bentinho tem ao final apenas a sua verdade. Por não ter uma revelação, como Otelo, acredita que agiu como deveria. Machado coloca o narrador numa posição quase ridícula de afirmar o caráter trágico de uma existência que não consegue ser trágica”, analisa Adriana. Seu drama é ser parte de uma modernidade em que todos são privados da verdade e levados a pensar que esta é fruto de leituras parciais de fatos potencialmente ambíguos. “Ele se recolhe e não se confronta a não ser em sua intimidade e num espaço que domina. Bento passa a conviver com seu conflito sempre em acomodação. Ao invés da suspensão do conflito em um confronto apaixonado, ele convive com ele de forma calculada e com sangue-frio, que permite a ele ignorar as cartas da esposa e desejar a morte do filho por lepra. A dialética da dúvida permanece.”
Para a pesquisadora, Otelo explode o mundo em busca da verdade, enquanto Bentinho não tem a vontade de encontrá-la. Só resolve contar os fatos quando todos estão mortos e ele finalmente aprendeu a conviver com o que o oprime. “Mantendo a aparência civil-burguesa, o público acanhado da época, encarnado em Dom Casmurro, suprime a verdade, seja qual ela for, asfixiando a alma e a ação nos fantasmas nebulosos do ressentimento. Os contemporâneos de Machado não desconhecem os conflitos, mas evitam identificá-los. O narrador machadiano é ambíguo ao subverter a cordialidade e compactuar com ela, ao mesmo tempo que analisa e ironiza, com total discrição, a misoginia patriarcal”, observa Kathrin.
“Dom Casmurro resume um longo relacionamento entre Machado e Shakespeare, o ápice de um movimento em que os romances machadianos iniciais da retidão feminina e do caráter moral cedem espaço às narrativas de protagonistas masculinos questionáveis em seus padrões ambivalentes de percepção ética”, avalia o sociólogo José Luiz Passos, professor da Universidade da Califórnia e autor de Machado de Assis: romance com pessoas (Edusp, 2007). “O romance é o ápice dessa relação do escritor com a literatura inglesa, uma relação incomum, para a época, com a produção europeia. O resultado foi uma maior ênfase no desenvolvimento psicológico do personagem e nas emoções morais dos narradores, traço que diferenciou sua obra das demais tendências entranhadas na ficção brasileira”, observa.
Paulo CavalcantiRealismo
“Para Machado, os princípios burgueses típicos do romance romântico não refletiam o processo social brasileiro. Em termos de realismo, esses dilemas já estavam presentes há anos no teatro, muito à frente do romance nos anos 1871, em sua ânsia de representar uma realidade racional”, avalia Passos. Vale lembrar que a educação estética de Machado se deu em sua participação como crítico de teatro entre 1855 e 1865. “Falar do engano foi um ponto importante como o teatro realista e o romance machadiano lidaram com a questão da representação da ação humana”, considera Passos.
“Mas, até 1871, Machado e o resto do país só tiveram conhecimento de Shakespeare por meio da leitura e da representação de versões francesas das peças do inglês, que deformavam seu conteúdo, adequando-o ao bom-tom neoclássico, apesar dos esforços do ator João Caetano em conferir uma ‘violência’ vital às versões ‘diluídas’ de obras como Otelo”, fala João Roberto Faria, professor titular de literatura brasileira da Universidade de São Paulo (USP). “Apenas naquele ano, em que passou pelo Brasil a companhia italiana de Ernesto Rossi, é que o escritor teve acesso mais direto ao universo do bardo.” “Shakespeare está sendo uma revelação para muita gente”, escreveu Machado, deixando claro que se incluía nesse grupo e experimentara a grande diferença entre ler e ver uma peça encenada.
“Não é à toa que Bentinho confessa que, até ir ao teatro para assistir a Otelo, nunca vira a peça antes. Assistir à tragédia o abala a ponto de tirá-lo de si, revelando o potencial do trágico como encenação. É um notável aproveitamento do teatro dentro do romance, movimentando um gênero dentro de outro”, nota Adriana. As ações, a partir de então, decorrem diretamente do teatro. Mesmo a visão do desfecho de Otelo não altera o sentimento de Bentinho, que continua na incoerência de suas conclusões. A ponto de ele lamentar o fim de Desdêmona, mas perguntar: “Que faria o público se ela deveras fosse culpada, tão culpada quanto Capitu?”. Ou seja, se a mulher de Otelo o tivesse mesmo traído, os espectadores ainda apreciariam o espetáculo?
“Isso o faz desistir de matar Capitu, porque sua morte seria ‘justa’ e a justiça não é um ‘espetáculo trágico’ como ele deseja encenar. Pensa então em se matar”, fala a pesquisadora. A ideia de um cenário montado é levada ao extremo, com cuidado de retirar do “palco” tudo o que pudesse banalizar um efeito final grandioso: antes de se “matar”, Bentinho recolhe um livro de Plutarco e se mostra preocupado em como os jornais iriam descrever a cor de suas calças. “Ele se esforça em criar uma situação à altura de um herói trágico, mas a banalidade cotidiana reduz tudo ao ridículo. Ele monta o cenário, ensaia o texto, mas a ação não acontece. A tragédia em Dom Casmurro fica restrita ao palco, à encenação a que ele assiste. Ela reflete os sentimentos intensos do personagem, mas, na realidade, não há espaço para ação, pelo menos não no mundo desse personagem machadiano”, nota Adriana. “Ser e parecer, dialética fundamental em Machado, é, no fundo, a dialética entre ser e representar, entre rosto e máscara, entre autenticidade e dissimulação”, analisa Faria. Eis a questão.
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