Quem dirigia carros a álcool na década de 1980 certamente se lembra do afogador, um botão ou alavanca que precisava ser puxado para injetar mais combustível no motor no momento da partida para que ele esquentasse e funcionasse de modo satisfatório. A evolução tecnológica tornou o afogador automático e impulsionou o sistema flex no início dos anos 2000 em que gasolina e etanol convivem no mesmo motor em qualquer porcentagem de um ou de outro. Essa configuração se transformou em um sucesso de vendas, mas ainda requer avanços principalmente em relação ao consumo do álcool, maior em 30% ao da gasolina. Uma desvantagem que começa a ser mais bem estudada em várias parcerias entre instituições de pesquisa e as indústrias automobilísticas e de autopeças.
“O conhecimento sobre a queima do etanol dentro do motor ainda é escasso”, diz o engenheiro Jayr de Amorim Filho, pesquisador do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), instalado na cidade de Campinas, em São Paulo. “Desde 2009 fazemos estudos fundamentais no plasma que se forma entre a centelha emitida pela vela e a combustão do etanol dentro do motor”, diz. “Já conseguimos propor algumas técnicas novas para entender melhor o que acontece no momento da descarga quando a queima do etanol se propaga no espaço, provoca reações químicas e libera energia para impulsionar o veículo.”
Os pesquisadores desenvolveram e conseguiram visualizar o que acontece dentro do motor por meio de uma fibra óptica acoplada à vela e que entra nas entranhas do motor. “É como um endoscópio”, diz Amorim. A fibra captura a luz emitida pela centelha. Depois ela é analisada para a detecção dos gases que se formam antes, durante e após a combustão. “Em nosso estudo, a vela emite centelhas a cada 10 milissegundos ou 100 pulsos por segundo e a luz nos traz informações sobre os gases que se formam na explosão dentro desses intervalos. Com isso, pretendemos, além de contribuir para a diminuição do consumo de etanol, diminuir a emissão de gases nocivos ao ambiente que já é menor em relação aos motores a gasolina.”
O trabalho da equipe de Amorim foi financiado por meio de um convênio entre a FAPESP e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) em um projeto vinculado ao Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) e conta com pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e do Departamento de Física do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), onde o pesquisador do CTBE começou os estudos com motores a álcool. Desde o início da pesquisa, a Bosch, fabricante de velas e sistemas automotivos para combustíveis – pioneira no desenvolvimento do sistema flex –, contribuiu com o fornecimento de material e agora está estudando uma parceria para a montagem de um laboratório no CTBE para estudos da queima do etanol. O grupo tem também parceria na área de combustão com a empresa Mahle, fabricante de peças para motores, com sede em Jundiaí (SP).
O melhor entendimento dos motores que funcionam a etanol também requer melhor entendimento do desgaste e atrito das peças que o compõem. “Embora já bem evoluídos, as motores flex que utilizam etanol apresentam maior desgaste de peças porque o álcool tem menor capacidade de lubrificação que a gasolina”, diz o professor Amilton Sinatora, professor da Escola Politécnica (Poli) da Universidade de São Paulo (USP). “Há alguns anos começamos a estudar o problema em trabalhos acadêmicos. O que nos incentivou foram relatos, em revistas como a 4 Rodas, de problemas de desgaste em válvulas e anéis dos motores, por exemplo”, diz Sinatora. A partir daí, ele começou a estruturar um projeto com o centro tecnológico da Mahle.
Gotas da explosão
Em gestação desde 2009, o projeto foi aprovado pela FAPESP em 2011 com outros parceiros: Fiat, Volkswagen, Renault e a Petrobras, que contribuirá nos estudos para levar a novos óleos lubrificantes para combater de forma mais específica o efeito do uso simultâneo de lubrificantes distintos nos motores flex. “A tendência nos últimos anos é a produção de motores mais leves, menores, mais potentes e que emitem menos poluentes. Agora procuramos motores que apresentem menos desgastes ao longo do tempo com o etanol.” A importância desses estudos reside também no fato de que não existem ainda estudos prolongados de motores flex com etanol fora do Brasil. “Esses estudos no exterior começaram há três anos”, diz. Ele coordena o projeto com a colaboração de equipes nas empresas e em mais duas universidades, a Universidade Federal do ABC, com o professor Humberto Yoshimura, e na Unicamp, com o professor Francisco Marques.
Medir o tamanho das gotas do spray em chamas de etanol com técnicas que utilizam laser faz parte do início de outro projeto relacionado a motores a álcool que pretende analisar novas possibilidades de combustão do biocombustível. “É uma pesquisa básica para o estudo da combustão do etanol”, diz o professor Guenther Carlos Krieger Filho, da Poli-USP. O projeto coordenado por ele faz parte do Bioen e tem origem no acordo de cooperação para desenvolvimento tecnológico entre a FAPESP, a Vale S.A, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará (Fapespa) e a Fapemig. O projeto deve terminar em 2015.
“Esses estudos são muito importantes porque o motor flex está no meio do caminho entre o motor a gasolina e o a álcool em termos de regulagem”, diz o engenheiro Waldemar Christofoletti, do comitê de veículos leves da SAE Brasil, entidade que reúne engenheiros automotivos e aeroespaciais. Para ele, o sistema flex é muito bom, mas está longe de ser um motor eficiente a álcool. “Acredito que a relação pode sair dos 30% de diferença no consumo para 15% no máximo, mas para isso é preciso incluir também software e hardware, ou componentes físicos e eletrônicos que formam o sistema de injeção de combustível”, diz Christofoletti.
Outro fator que tem alimentado o interesse das empresas em avanços para os motores a álcool é o programa do governo federal lançado em abril deste ano chamado de Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto). Ele vai conceder descontos no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a partir de janeiro de 2013, para fabricantes de veículos e de autopeças que comprovarem investimento em desenvolvimento tecnológico e eficiência energética.
Os Projetos
1. Etanol – Utilização do etanol como combustível: ignição a plasma de motores veiculares (nº 2008/58195-3); Modalidade Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia (Bioen); Coordenador Jayr de Amorim Filho – CTBE; Investimentos R$ 174.962,34 e US$ 149.501,85 (FAPESP)
2. Desafios tribológicos em motores flex-fuel (nº 2009/54891-8); Modalidade Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Coordenador Amilton Sinatora – USP; Investimentos R$ 975.435,65 e US$ 690.091,30 (FAPESP)
3. Estudo experimental e computacional de sprays turbulentos de etanol para aplicações em motores de combustão interna (nº 2010/51310-1); Modalidade Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia (Bioen); Coordenador Guenther Carlos Krieger Filho – USP; Investimentos R$ 123.551,15 e US$ 293.241,32 (FAPESP) e R$ 285.274,15 e US$ 293.241,32 (Vale)