Roberto Salmeron, 90 anos, é um brasileiro muito especial. Cientista com uma larga e brilhante folha de serviços prestados à física de partículas elementares desde que, em 1938, integrou em São Paulo o grupo de física de raios cósmicos liderado por Gleb Wataghin, ele gastou todo o ano de 2010 escrevendo Homens que nos ensinaram a concepção do mundo. Para facilitar a tarefa, tinha em mãos anotações de aulas e resumos das muitas conferências que fizera ao longo dos anos abordando o trabalho desses pais fundadores, digamos assim, da ciência tal qual a reconhecemos neste começo de século XXI.
O resultado concreto desse esforço é um livro com 13 pequenos e inspiradores perfis biográficos escritos num texto envolvente, que costura com rigor e sensibilidade dados do trajeto intelectual, episódios pessoais e traços marcantes do caráter das personagens escolhidas. Assim, o autor consegue oferecer aos leitores belos e por vezes inesperados retratos dos biografados, amorosamente desenhados para provocar um novo olhar sobre o sentido dessas vidas e, quem sabe, estimular novas vocações científicas no Brasil. Sim, porque com esse trabalho de divulgação científica lançado em outubro último, no Rio de Janeiro e em Brasília, o professor Salmeron espera falar especialmente com os jovens, como parece ter tido sempre prazer em fazer, oferecendo-lhes uma visão combativa e apaixonante da entrega pessoal à pesquisa em ciência, ainda que se trate de caminho marcado também por sacrifícios e imensos obstáculos.
A lista dos Homens que nos ensinaram a concepção do mundo é aberta por Copérnico, Aristóteles e Ptolomeu e encerrada com Einstein. Salmeron trata todos os seus eleitos com a seriedade e o respeito que as contribuições dadas por esses cientistas para a melhoria da vida do homem na Terra, para o avanço do conhecimento e as configurações contemporâneas da sociedade humana, motivam e justificam. Mas é a Newton e, mais ainda, a Faraday que ele reserva as porções mais generosas de sua admiração pelos homens de ciência. Em conversa descontraída durante sua recente estada no Brasil, explicou com simplicidade algumas razões dessa preferência. “Newton foi ao mesmo tempo um grande matemático, um grande físico e um grande astrônomo – um gênio. Quanto a Faraday, espanta-me o quanto ele foi capaz de fazer pelo avanço do conhecimento, tendo a vida marcada na origem por extrema pobreza, com pais analfabetos e o pai dependendo de seu trabalho de ferrador de cavalos para sustentar a família”, disse.
Na verdade, também Isaac Newton nasceu numa família que estava longe de poder oferecer um ambiente favorável ao cultivo de talentos especiais de suas crianças. “Não teve ancestrais notáveis; seu pai não sabia nem assinar o nome – como o pai de William Shakespeare – e o tio e o primo também eram analfabetos. Não havia nada na família que pudesse indicar que o menino teria um brilhante futuro intelectual. Poderia ter acontecido que, em circunstâncias diferentes de sua vida, Newton jamais tivesse aprendido a ler ou a escrever”, registra Salmeron na página 88 de seu livro. Mas as circunstâncias foram torcidas pelo imponderável e por isso o biógrafo pode fazer adiante registro inteiramente diverso: “Em 1665 e 1666 tinha, portanto, 22 e 23 anos. Foi nesse curto intervalo de tempo que seu gênio eclodiu com uma força única, elaborou os fundamentos da obra gigantesca que iria realizar em vários campos, matemática, óptica, mecânica, atração universal, cosmologia e astronomia” (página 94). O autor encerra seu olhar a Newton perguntando-se, “Qual a força da natureza que faz com que uma criança cujos pais e tios eram analfabetos se revelasse um gênio?” (página 102).
Léo RamosCom Faraday, a questão da origem familiar e do primeiro ambiente em que viveu toma cores ainda mais dramáticas. “Michael Faraday”, diz Salmeron, “foi um dos personagens mais fascinantes e mais impressionantes das ciências, de todas as ciências. Oriundo de uma família miserável da maior pobreza da Inglaterra de fins do século XVIII e início do século XIX, tendo frequentado somente alguns anos de escola elementar para aprender a ler, a escrever e a contar, sem nenhuma instrução formal, tornou-se grande físico e grande químico, o maior físico experimental de todos os tempos. Talvez o maior cientista experimental de todas as ciências, de todos os tempos” (página 115). Com essa introdução entusiasmada escrita por um cientista com a autoridade de Salmeron, ele mesmo personagem admirável da ainda jovem história da ciência brasileira, impossível é não seguir até o fim a trajetória da vida, das descobertas e da formidável influência de Faraday sobre o desenvolvimento posterior da ciência.
Mas para além das declaradas preferências e afinidades do autor, merece referência especial, até por sua concepção singular dentro da estrutura geral do livro, o capítulo final, dedicado a Einstein. Nele, para destacar o papel fundamental da ciência na estrutura e nas relações de poder da sociedade contemporânea, além das agudas questões éticas que o fazer científico propunha na primeira metade do século XX, Salmeron optou por reproduzir alguns trechos da correspondência relevante trocada entre Einstein e Freud, em 1932, sobre o porquê da guerra, além de trechos do manifesto contra as armas nucleares que Bertrand Russell e Einstein lançaram em 23 de dezembro de 1954, assinado por respeitados cientistas de vários países. Em meio ao clima tenso da Guerra Fria, os cientistas alertavam que “Ninguém sabe até onde poderia se estender a nuvem mortal de partículas radioativas, mas as pessoas mais autorizadas são unânimes em dizer que uma guerra na qual se utilizassem bombas H poderia marcar o fim da humanidade” (página 193). O capítulo dedicado a Einstein, entretanto, não termina com esse tom sombrio, mas com a luminosidade e a graça que vêm de cartas de crianças endereçadas ao mais popular dos cientistas até hoje. Uma pequena e deliciosa amostra: “Caro senhor Einstein, sou uma pequena menina de 6 anos. Vi o seu retrato no jornal. Penso que o senhor deve cortar o cabelo, assim o senhor terá melhor aparência. Cordialmente, Ann” (página 195). Eram cartas que Einstein, aliás, carinhosamente respondia.
No prefácio de Homens que nos ensinaram a concepção do mundo, o físico Rogério Cezar Cerqueira Leite, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos fundadores do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), instituição importante da qual Salmerom foi um consultor decisivo, observa que o autor do livro “elege, como não poderia deixar de ser, tendo em vista sua própria natureza ética, a ‘força de caráter’ de seus personagens como elo, que costura os episódios individuais entre as personalidades de sua épica descrição dos homens que arquitetaram a sociedade moderna” (página 12).
De certa forma, é dessa natureza ética que nasce este novo livro de Salmeron, assim como dela nasceu A universidade interrompida: Brasília 1964-1965, cuja segunda edição, revista, foi lançada também pela editora da Universidade de Brasília (UnB) em 2007. A essa natureza também se vincula certamente todo o seu importante trabalho na ciência, que envolve dos chuveiros penetrantes de raios cósmicos a experimentos especiais com fótons. E é a ela que se liga especialmente sua incessante atividade no campo da educação, no Brasil ou na França, onde ele vive há muitos anos. Para ouvir e ver o depoimento do próprio Salmeron a esse respeito, sem prejuízo da leitura de seu mais novo livro, sugerimos que o leitor vá ao site de Pesquisa FAPESP. A revista já tinha publicado em 2004, na edição número 100, uma entrevista pingue-pongue desse cientista de quem o Brasil só deve se orgulhar, mas queríamos que ele falasse de novo com nossos leitores. Ele o fez, por quase três inesquecíveis horas, das quais editamos o vídeo de aproximadamente 20 minutos, um documento para ser preservado com todo o cuidado.
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