Léo RamosDurante uma reunião em sua sala no início de janeiro, o psiquiatra Euripedes Constantino Miguel interrompeu por uns segundos a conversa, subiu em uma cadeira e alcançou no alto de uma estante os dois grossos volumes do livro Clínica psiquiátrica, que editou em 2011 com dois outros professores do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP). “Aqui está condensada a contribuição de nosso grupo para a compreensão e o tratamento do transtorno obsessivo-compulsivo”, afirmou, enquanto depositava na mesa os dois calhamaços com 2.500 páginas e quase seis quilos de papel. Nas edições mais recentes do Congresso de Clínica Psiquiátrica, médicos e psicólogos que participaram da sessão Como eu trato receberam os exemplares do livro e uma senha para fazer um curso on-line de educação continuada coordenado pela equipe de Miguel. “No primeiro ano houve 1.200 inscritos, no segundo 2 mil e neste esperamos ter 4 mil”, disse. A publicação dessa e de outras duas obras – Medos, dúvidas e manias, relançada em 2012, e Compêndio de clínica psiquiátrica, deste ano – e a oferta do programa de formação continuada foram a maneira que ele e seu grupo encontraram de fazer chegar ao maior número possível de especialistas em saúde mental do país o conhecimento mais recente produzido por pesquisadores brasileiros sobre uma doença complexa, desafiadora e, quase sempre, torturante: o transtorno obsessivo-compulsivo ou, simplesmente, TOC.
Nos últimos cinco anos o grupo liderado por Miguel publicou ao menos 70 artigos científicos apresentando uma série de avanços que ajudam a conhecer melhor as características mais frequentes do transtorno obsessivo-compulsivo e os outros distúrbios psiquiátricos que podem acompanhá-lo ao longo da vida, agravando-o. Com o auxílio de técnicas de neuroimagem, os pesquisadores obtiveram evidências de que as duas formas de tratamento internacionalmente recomendadas para amenizar os sintomas do TOC – a terapia cognitivo-comportamental e o uso de antidepressivos – atuam de maneira distinta no cérebro, em ambos os casos interferindo na atividade do circuito neuronal supostamente envolvido no problema. Eles também demonstraram que uma alternativa extrema, uma cirurgia cerebral que interrompe permanentemente a comunicação entre partes desse circuito neuronal e no Brasil só é feita de modo experimental, ajudou a controlar os sintomas no TOC de alta gravidade, em que nem terapia nem medicação haviam surtido efeito, em metade dos casos.
Outra contribuição relevante, talvez até a mais interessante para quem tem TOC, é a constatação de que, nos casos leves e moderados, o resultado do tratamento com medicação é semelhante ao efeito da psicoterapia – no TOC, os medicamentos mais usados são os antidepressivos inibidores de recaptura de serotonina e a forma de psicoterapia preferencial é a terapia cognitivo-comportamental. O importante, dizem os pesquisadores, é tratar o problema de forma continuada. O acompanhamento de 158 pessoas com TOC por dois anos deixou claro que os sintomas regrediam mais com o aumento da duração do tratamento. “Esse trabalho mostra que, independentemente do tratamento adotado no início, o importante é mantê-lo, porque a melhora leva tempo para aparecer”, afirma a psiquiatra Roseli Shavitt, uma das autoras do estudo e coordenadora do Projeto Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo (Protoc) da USP. “O TOC é uma doença crônica para a qual não existe solução fácil”, comenta Juliana Diniz, outra psiquiatra da equipe. “Para surtir resultado, o tratamento leva no mínimo meses; com frequência, anos; e não é incomum que dure a vida toda”, conta.
infográfico: ana paula campos; ilustração: pedro hamdanConhecido por estranhezas e exageros como os cometidos pelo personagem de Jack Nicholson no filme Melhor impossível – ele lavava as mãos o tempo todo, usando um sabonete novo a cada vez, e evitava encostar nas pessoas por receio de se contaminar –, o TOC é um problema psiquiátrico relativamente frequente. Estudos feitos em vários países indicam que o problema atinge de 2% a 3% das pessoas, proporção que pode variar de acordo com a região ou a metodologia da pesquisa. Esse índice, porém, pode ser até um pouco mais elevado. A equipe da psiquiatra Laura Andrade, também da USP, conduziu há alguns anos um levantamento em que foram entrevistados pessoalmente cerca de 5 mil moradores da Região Metropolitana de São Paulo. Publicado em 2012, o estudo detectou que 4% dos participantes haviam apresentado sintomas obsessivo-compulsivos no ano anterior ao levantamento – taxa bastante expressiva, ainda que inferior à de depressão (11%) e à de diferentes formas de ansiedade (19%).
Pensamentos indesejados
Mas o TOC não é apenas comum. Pode ser também mais grave e mais complexo do que o retratado no cinema. Quem tem TOC é continuamente atormentado por pensamentos indesejados (obsessões) que invadem a mente e, por mais que se tente evitá-los, geram muita ansiedade, além de medos irracionais, como o de ser contaminado por algum vírus ao tocar uma maçaneta, ou dúvidas atrozes, como a de ter deixado aberto o registro de gás do fogão. Na maior parte dos casos, mas nem sempre, as obsessões são seguidas por uma necessidade incontrolável de repetir certos rituais mecânicos e mentais (compulsões) – por exemplo, lavar as mãos até sangrarem, verificar dezenas de vezes o registro do fogão ou contar números ou rezar – que ajudam a tranquilizar. Esses pensamentos e rituais costumam consumir várias horas do dia. Os manuais de diagnóstico médico classificam como TOC quando esse tempo é superior a uma hora, com ou sem sofrimento intenso. Em boa parte dos casos, eles interferem no desempenho do trabalho e no convívio com a família e na relação com os amigos. É uma situação bem diferente da vivida por quem é asseado e gosta de estar sempre com as mãos limpas ou por pessoas que são cautelosas e voltam para verificar se a porta de casa está mesmo fechada ou ainda por quem é organizado e prefere manter as camisas no guarda-roupa ordenadas por cores.
Do ponto de vista médico, o que atualmente se conhece como TOC começou a ser estudado com mais rigor no século XIX na França, na Alemanha e na Inglaterra sob diferentes nomes. E já foi “explicado sucessivamente como um transtorno da vontade, do intelecto e das emoções”, conta o psiquiatra e historiador peruano German Berrios, da Universidade de Cambridge, no livro Uma história da psiquiatria clínica, publicado em 2012 pela editora Escuta. À medida que desenvolvia sua teoria sobre o funcionamento da mente, o médico austríaco Sigmund Freud buscava explicações para o mecanismo psicológico que a psicanálise chama de neurose obsessiva. Inicialmente, Freud interpretou a neurose obsessiva como um conflito entre o consciente e o inconsciente, resultado da repressão do desejo sexual. Diferentemente da histeria, em que a energia podia saltar misteriosamente da mente para o corpo e, por exemplo, causar a paralisia de um membro, na neurose obsessiva essa energia permaneceria na esfera psíquica. Mais tarde, em 1907, quando começou a atender a um paciente chamado Ernst Lanzer, caso que ficou conhecido como o homem dos ratos, Freud percebeu que, além da energia sexual, a neurose obsessiva também tinha forte componente de agressividade, explica o psicanalista Renato Mezan, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Essa conclusão teria auxiliado o médico austríaco a criar todo um modelo de desenvolvimento psíquico.
Bottom-up e top-down
Hoje a medicina explica o TOC a partir de uma visão mais neurobiológica. Para os médicos, o TOC é consequência da interação de fatores genéticos, neurobiológicos e ambientais. Essa interação altera o funcionamento de circuitos que conectam áreas mais externas do cérebro, regiões do córtex ligadas ao processamento das emoções, do planejamento e ao controle das respostas de medo, a áreas internas como os núcleos da base e o tálamo, que integram informações emocionais, cognitivas e motoras, regulando a resposta ao ambiente. No TOC, a troca de informações entre essas áreas, mediada principalmente pelo neurotransmissor serotonina, estaria desregulada. Estudos feitos com roedores e com seres humanos já sugeriam que tanto os antidepressivos que agem sobre a serotonina quanto a terapia cognitivo-comportamental modificam o funcionamento desse circuito. Mais recentemente o psiquiatra Marcelo Queiroz Hoexter, da equipe de Euripedes Miguel, em parceria com o grupo de Geraldo Busatto Filho, também da USP, conseguiu os indícios mais consistentes já obtidos de que os tratamentos modificam não só o funcionamento, mas a estrutura de algumas regiões cerebrais.
infográfico: ana paula camposHoexter selecionou 38 pessoas com TOC que jamais haviam sido tratadas e, depois de uma seleção aleatória, as encaminhou para um grupo de terapia ou de uso do antidepressivo fluoxetina. Trabalhando em parceria com o grupo de Rodrigo Bressan, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadores de Harvard, ele comparou imagens cerebrais feitas por ressonância magnética no início do estudo e depois de três meses de tratamento e verificou que um dos núcleos da base – o putâmen – havia aumentado de volume nas pessoas que tomaram a medicação e melhoraram. “Acreditamos que a fluoxetina altere a plasticidade neuronal, aumentando a conectividade dos circuitos neuronais dessa região e, consequentemente, seu volume”, diz.
Para ele, esses resultados, somados aos de outros trabalhos, sugerem que a medicação promove uma alteração morfológica que começa nas regiões mais profundas do cérebro e caminha para as mais superficiais, como o córtex – padrão conhecido como bottom-up. Já a terapia cognitivo-comportamental faria o contrário, influenciando primeiro a remodelagem da região cortical, ligada à consciência, e depois de áreas mais profundas (top-down). “Como o acompanhamento foi de apenas três meses, não conseguimos medir alterações no volume do córtex”, explica Hoexter. “Há indícios de que elas ocorram mais lentamente.”
Em alguns casos gravíssimos, nos quais nem a psicoterapia nem a medicação surtem efeitos, os pesquisadores brasileiros têm adotado uma medida mais radical para interromper o funcionamento desse circuito: uma cirurgia experimental em que usam radiação para lesar uma região milimétrica da cápsula interna, feixe de fibras que conectam os núcleos da base ao tálamo (ver Pesquisa FAPESP nº 98). Nos últimos 10 anos o psiquiatra Antônio Carlos Lopes, da equipe da USP, vem acompanhando 17 pessoas com TOC refratário, que não haviam respondido a diversos medicamentos nem a anos de terapia, e passaram pela cirurgia. Cerca de metade apresentou uma melhora significativa depois da operação, que causou poucos efeitos colaterais – em geral, dor de cabeça frequente, que era controlada com anti-inflamatórios, de acordo com estudo submetido para publicação numa revista científica de alto impacto. Segundo Lopes, os resultados indicam que nem mesmo a cirurgia é curativa. “Ela parece funcionar mais como um potencializador dos efeitos da medicação e da terapia cognitivo-comportamental”, conta Lopes.
Complexo e heterogêneo
Diante de resultados nem sempre animadores dos tratamentos, Miguel e seu grupo seguem tentando compreender o TOC. Desde 2003 ele coordena uma rede formada pelos principais especialistas do país em TOC – hoje quase 70 colaboradores de sete instituições integram o Consórcio Brasileiro de Pesquisa em Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo, o C-TOC – que estudam as características desse problema na nossa população com o objetivo de tentar compreender sua origem e como tratá-lo de forma mais adequada. Num esforço possivelmente inédito na psiquiatria brasileira, os pesquisadores do C-TOC realizaram entrevistas minuciosas que em média duravam quatro horas com 1.001 pessoas com TOC atendidas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul.
Analisando as informações dessa amostra, a maior já reu-nida no mundo, eles verificaram que apenas 8% das pessoas com TOC apresentavam exclusivamente sintomas de obsessão e compulsão, o que chamam de TOC puro. Na maioria dos casos, o TOC apareceu acompanhado de pelo menos mais um problema psiquiátrico ao longo da vida: 68% dos participantes do estudo sofriam também de depressão e 63% de outros transtornos de ansiedade, os distúrbios mais frequentes na população geral. Quase 35% apresentavam sinais de fobia social, que se caracteriza pelo medo excessivo de estar em público.
A constatação de que o TOC puro é exceção, e não regra, forneceu aos pesquisadores uma pista de por que nem sempre os tratamentos funcionam como o esperado. A presença de doenças extras – os médicos as chamam de comorbidades – indicaria um grau de comprometimento maior do cérebro como um todo e dos circuitos possivelmente associados ao TOC. Numa comparação com o que ocorre nas doenças cardiovasculares, Miguel conta que ter TOC puro seria o equivalente a “ter hipertensão, mas não ser obeso nem ter diabetes”, algo pouco frequente na vida real. Para ele, esse comprometimento maior do sistema nervoso ajuda a explicar por que a proporção de pessoas com TOC que melhora quando submetidas aos tratamentos – as diretrizes internacionais indicam a realização de terapia cognitivo-comportamental, o uso de antidepressivos que atuam sobre o neurotransmissor serotonina ou a associação de ambos, que costuma ser mais eficaz – é menor do que projetavam estudos iniciais.
Pesquisas anteriores que testaram cada um desses tratamentos isoladamente indicavam que até 60% dos pacientes melhoravam, taxa que era um pouco mais positiva quando a terapia era associada à medicação. Mas esses trabalhos em geral haviam sido realizados com pessoas que apresentavam a forma pura do TOC. Quando avaliou esses tratamentos em pessoas com uma ou mais doenças psiquiátricas associadas ao TOC, o grupo brasileiro viu que a taxa de resposta caía à metade: 30% melhoravam com terapia, 30% com antidepressivos e cerca de 50% com a associação dos dois tratamentos. “A existência de comorbidades é o principal fator que permite predizer se a pessoa responderá ao tratamento”, explica Miguel. “Nesse sentido, elas são mais importantes do que o tipo de sintoma obsessivo-compulsivo que a pessoa apresenta do que a forma de tratamento a que se submete e do que a existência de outros casos de TOC na família [indicador de predisposição genética para o problema].”
Com base nesses resultados, agora se sabe que, em algumas situações, tratar a comorbidade é tão importante quanto combater os sintomas do TOC. É que a depressão, a ansiedade pura e a fobia social, transtornos companheiros do TOC, muitas vezes impedem as pessoas de começar o tratamento. “Às vezes, a depressão e a ansiedade são tão intensas que as pessoas não suportam fazer terapia em grupo [estratégia adotada no Protoc] nem usar medicação, porque os sintomas ansiosos podem se intensificar transitoriamente no início”, conta Juliana. Nesses casos, segundo os pesquisadores, é preciso combater o problema secundário antes de avançar contra o TOC.
Além de atrapalhar o início do tratamento, os outros transtornos mentais associados ao TOC podem prejudicar a resposta ao tratamento por levar as pessoas a interromper a terapia e o uso da medicação. Em trabalho publicado em 2011 na Clinics, Juliana comparou as comorbidades de um grupo de pessoas que completou 12 semanas de tratamento com as de outro que desistiu pelo caminho. Juliana constatou que os casos de ansiedade e fobia social eram bem mais comuns em quem abandonava o acompanhamento médico.
Alto risco
As comorbidades, descobriram os pesquisadores, também influenciam um desfecho que era pouco conhecido nos casos de TOC: o suicídio. A psiquiatra Albina Torres, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu, analisou informações de 582 pacientes e descobriu que 36% já haviam pensando em tirar a própria vida; 20% haviam planejado se matar e 11% tinham posto o plano em prática. Albina constatou também que o risco de planejar ou tentar cometer suicídio era mais alto entre as pessoas que, além do TOC, sofriam de depressão, transtorno de estresse pós-traumático (Tept) ou de transtornos do controle de impulsos. “O TOC sempre foi considerado um transtorno com baixo risco de suicídio”, conta Albina. “Vimos que não é bem assim.”
Os detalhes fornecidos pelos 1.001 pacientes brasileiros proporcionaram à psicóloga Maria Alice de Mathis investigar a evolução do TOC. Apresentados em 2012 no European Neuropsychopharmacology, os resultados sugerem que o TOC se trata mesmo de uma doença associada a eventos marcantes que ocorrem durante o desenvolvimento da criança. Em 58% dos casos, o TOC havia começado antes dos 10 anos. Quando analisou os dados de todos os pacientes em conjunto, Maria Alice notou que os sintomas obsessivo-compulsivos não eram os primeiros a se manifestar: em média, surgiam entre os 12 e 13 anos de idade. O problema que apareceu mais cedo foi o medo de ficar longe dos pais ou de casa, o chamado transtorno de ansiedade da separação, forma de ansiedade que surgiu, em média, por volta dos 6 anos de idade. Um pouco mais adiante, por volta dos 7,5 anos, surgiram os sinais do transtorno de déficit de atenção com hiperatividade ou TDAH (ver gráfico).
Ao confrontar os transtorno psiquiátricos apresentados na infância com as características do TOC no momento das entrevistas (muitos eram adultos), os pesquisadores chegaram a pelo menos duas conclusões importantes. A primeira é que as pessoas que na infância apresentavam sinais de ansiedade da separação e depois desenvolveram TOC corriam risco maior de sofrer também de transtorno de estresse pós-traumático se expostas a uma situação de ameaça (real ou imaginária) à vida. A segunda é que aqueles com sintomas de déficit de atenção com hiperatividade apresentavam probabilidade maior de desenvolver dependência química se experimentassem drogas como álcool, maconha ou cocaína. “Esses transtornos que apareceram mais cedo podem funcionar como marcadores de vulnerabilidade para outros transtornos mentais”, diz Miguel. “Se ficarmos atentos a eles, podemos evitar que outras complicações surjam”, diz.
Mais real
Segundo os pesquisadores, uma constatação que vem se confirmando nos últimos anos é a de que as comorbidades contribuem para complicar um quadro que, por si só, já é complexo. Em 2006 a psiquiatra Maria Conceição do Rosário apresentou em um artigo na revista Molecular Psychiatry as primeiras evidências consistentes de que, do ponto de vista dos sintomas, o TOC é uma doença bastante heterogênea: cada pessoa pode manifestar diferentes tipos de sintomas com intensidades que também variam. À época começavam a surgir estudos estatísticos tentando agrupar os casos de TOC segundo os 13 grupos (dimensões) de sintomas mais característicos – são 7 tipos de obsessão, que incluem o receio de agredir alguém ou medo de se contaminar, e 6 tipos de compulsões, como a de fazer verificações o tempo todo e manter tudo limpo ao redor.
Essa abordagem, chamada dimensional, reforçava duas observações da prática clínica. A primeira é que cada paciente é diferente do outro. A segunda, que os sintomas não são mutuamente exclusivos, já que muitas pessoas apresentavam mais de uma categoria de obsessões ou compulsões. Por exemplo, alguém com nível moderado de obsessão por simetria pode ter medo de contaminação mais intenso e não apresentar sinais relacionados ao receio de agredir outras pessoas. Durante o estágio que fez na Universidade Yale no grupo do psiquiatra James Leckman, reconhecido internacionalmente por seus trabalhos em saúde mental de crianças e adolescentes, ela começou a aprimorar a estratégia dimensional.
Com Leckman e Miguel, Conceição desenvolveu um método de avaliação – um questionário para o diagnóstico do TOC conhecido pela sigla DY-Bocs. Essa escala é a primeira que permite avaliar a gravidade dos sintomas de diferentes dimensões de modo individual. Além de agrupar os sintomas por semelhança, ela dá uma ideia mais precisa do grau de incômodo que causam, do quanto interferem na rotina e em que nível alteram a percepção que a pessoa tem de si própria. “Conseguimos criar uma representação do TOC mais próxima do que imaginamos que seja a realidade”, diz Conceição, que coordena a Unidade de Psiquiatria da Infância e da Adolescência na Unifesp e integra o C-TOC.
Ainda que esteja longe de representar toda a complexidade do TOC, esse forma de interpretar as manifestações do transtorno, segundo Conceição, vem ajudando os especialistas em saúde mental a repensar o objetivo do tratamento. “Em vez de ter por meta eliminar todos os sintomas, o objetivo passou a ser o de reduzir aqueles que mais atrapalham o indivíduo”, diz.
Apesar desses avanços, Miguel já pensa há algum tempo que o caminho para lidar com o TOC pode ser outro. Em vez de esperar que se manifeste para então combater seus sintomas, a saída seria tentar evitar que se instale. Como? Cuidando melhor das grávidas e das crianças, uma vez que há indícios fortes de que o TOC, assim como outros problemas psiquiátricos, é uma doença do neurodesenvolvimento. Pensando nisso, ele e o psiquiatra Luiz Rohde, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, iniciaram estudos em que as gestantes e seus filhos serão acompanhados por anos com o objetivo de identificar fatores que aumentem o risco de desenvolver TOC. “Queremos fazer na psiquiatria o que outras áreas da medicina, como a cardiologia, vêm fazendo há tempos”, afirma Miguel. “Identificar os fatores de risco para intervir precocemente e evitar que se desenvolva a doença.”
Um mapa dinâmico do cérebro
No pronunciamento que fez ao Congresso dos Estados Unidos em fevereiro abordando as prioridades nacionais, o presidente Barack Obama mencionou que pesquisadores estão mapeando o cérebro e afirmou que, para o sucesso desse empreendimento e de outros em ciência e tecnologia, os investimentos deveriam alcançar níveis não vistos desde a era da corrida espacial. Os pesquisadores leram nesse discurso um apoio ao projeto Mapa da Atividade Cerebral (Brain Activity Map).
Proposto em meados de 2012 por neurocientistas dos Estados Unidos e do Canadá em artigo publicado na revista Neuron, é um projeto no estilo Big Science, de iniciativas que envolvem grande parte da comunidade científica, além de instituições públicas e privadas, em torno de uma questão específica. No caso, das mais ambiciosas: compreender como o cérebro funciona.
Para isso, sugerem que se registre por certo tempo a atividade de cada neurônio de circuitos neuronais completos. É algo complexo, que envolve grandes desafios tecnológicos. As técnicas disponíveis hoje só permitem coletar informações de umas poucas células e essas redes podem envolver milhões de neurônios, cada um deles fazendo milhares de conexões. O funcionamento dessas redes, acredita-se, deve resultar de uma interação complexa, algo maior
do que a soma dos seus componentes.
Esse projeto exigiria esforço em grande escala e investimentos vultosos, semelhantes aos do sequenciamento do genoma humano, que, de 1990 a 2003, consumiu US$ 3,8 bilhões. Segundo o New York Times, espera-se que o projeto conste da proposta de orçamento que Obama deve enviar este mês para a aprovação do Congresso.
No artigo da Neuron, o grupo liderado por A. Paul Alivisatos, da Universidade da Califórnia em Berkeley, acredita ser uma tarefa factível, que pode ajudar a compreender melhor a atividade cerebral e como surgem algumas doenças. E, quem sabe, a chegar a formas mais eficientes de combatê-las.
Não há garantia de que o projeto, se aprovado e posto em ação, resulte nos sonhados avanços médicos.
Muitas promessas do genoma não se concretizaram, pois o funcionamento dos genes é mais complexo que o imaginado inicialmente. Mas se espera que, além de ampliar a compreensão sobre o cérebro, gere inovações e empregos – cada US$ 1 investido no genoma gerou US$ 141.
Outro projeto de porte nessa área ganhou um importante impulso na Europa. Em janeiro a Comissão Europeia selecionou o Projeto do Cérebro Humano (Human Brain Project) como um de seus projetos-bandeira: iniciativa ambiciosa e com metas visionárias que deve abrir caminho para inovação tecnológica e oportunidades econômicas.
Envolvendo a participação de 80 instituições da Europa, dos Estados Unidos e do Japão, esse projeto, previsto para durar 10 anos e custar € 1,19 bilhão, tem como objetivo reunir todo o conhecimento já produzido sobre o cérebro e, usando supercomputadores, recriá-lo virtualmente e reproduzir seu funcionamento.
Projetos
1. Instituto Nacional da Psiquiatria do Desenvolvimento: uma nova abordagem para a psiquiatria tendo como foco as nossas crianças e o seu futuro (2008/57896-8); Modalidade Projeto Temático; Coord. Euripedes Constantino Miguel Filho/IPq-USP; Investimento R$ 5.239.411,72 (FAPESP).
2. Caracterização fenotípica, genética, imunológica e neurobiológica do transtorno obsessivo-compulsivo e suas implicações para o tratamento (2005/55628-8); Modalidade Projeto Temático; Coord. Euripedes Constantino Miguel Filho/IPq-USP; Investimento R$ 1.622.015,67 (FAPESP).
Artigos científicos
DE MATHIS, M. A. et al. Trajectory in obsessive-compulsive disorder comorbidities. European Neuropsychopharmacology. 22 ago. 2012.
HOEXTER, M.Q. et al. Gray matter volumes in obsessive-compulsive disorder before and after fluoxetine or cognitive-behavior therapy: a randomized clinical trial. Neuropsychopharmacology. v. 37(3). p. 734-45. fev. 2012.
TORRES, A.R. et al. Suicidality in obsessive-compulsive disorder: prevalence and relation to symptom dimensions and comorbid conditions. Journal of Clinical Psychiatry. v. 72 (1). jan. 2011.
ROSÁRIO-CAMPOS, M.C. et al. The dimensional Yale – Brown obsessive-compulsive scale (DY-Bocs): an instrument for assessing obsessive-compulsive symptom dimensions. Molecular Psychiatry. v. 11. p. 495–504. 2006.
MIGUEL, E.C. et al. Obsessive-compulsive disorder phenotypes: implications for genetic studies. Molecular Psychiatry. v. 10. p. 258-75. 2005.