Na década de 1950, os discos voadores, que ainda não se chamavam UFO, sobrevoavam a praça da Sé; a chegada da bomba de rádio, “com dez grs. do metal, pela primeira vez na América do Sul”, era saudada com uma manchete maior do que a greve dos funcionários contra o regime de oito horas; e os paulistas eram alertados de que “à altura de 63 mil pés o sangue ferve”, perspectiva terrível que atrasava a “batalha pela conquista de um novo mundo”. Num país em que ainda não havia revistas especializadas em divulgação científica e o rádio era o principal meio de comunicação de massas, a ciência corria solta pelas páginas do Diário da Noite, vespertino paulistano que pertencia a Assis Chateaubriand e era um dos mais importantes do poderoso império dos Associados.
“Como muitos na época, Chateaubriand tinha uma agenda de união nacional pela modernização do país. Para ele, isso passava diretamente pelo fim da ‘ignorância’ das massas populares, seja atacando o espiritismo e as religiões de origem africana, a que chamava de ‘macumba’, seja pela ciência que acabaria com o ‘atraso’ nacional”, explica a historiadora Mariza Romero, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “O Diário da Noite passou a divulgar informações científicas para leitores leigos e nada familiarizados com a tecnologia. O interessante é que o jornal não tinha uma página fixa ou um suplemento para isso, mas colocava a ciência no meio de seções de polícia, política, esportes e, muitas vezes, como manchete”, diz Mariza.
A pesquisadora, que já havia estudado a atuação do vespertino sensacionalista em questões religiosas, sociais e policiais em Inúteis e perigosos (Educ/FAPESP), agora analisa a sua pauta científica em Divulgação científica e imprensa popular. “Entre 1950 e 1960, o Diário da Noite conseguiu uma divulgação científica mais ampliada em termos de educação para as massas do que muitos dos cadernos e páginas especializadas que estavam aparecendo pela imprensa brasileira, mais formais, e que só chegavam a um público muito restrito.”
Financiado por empresários, industriais e fazendeiros paulistas, o vespertino de Chateaubriand, com feição sensacionalista desde sua fundação, em 1925, nos anos 50 contava com equipamentos de ponta, profissionais experientes, articulistas internacionais, reportagens de impacto e notícias de primeira mão, destacando-se as páginas policiais e os escândalos. Com uma tiragem de 70 mil exemplares e duas edições, tornou-se um dos jornais de maior circulação em São Paulo.
“O Diário da Noite criou um vínculo forte com as classes populares, que, com a redemocratização e o aumento do consumo, passaram a ser vistas, por um lado, como protagonistas da prática política e, por outro, como as camadas que precisavam ser tuteladas”, fala Mariza.
Assim, nota a pesquisadora, ao mesmo tempo que se dizia alinhado às reivindicações populares, “defensor do povo”, o vespertino se ligava aos setores da burguesia que se preocupavam com a emergência dessas massas. “Por causa do seu suposto vínculo com a população, o Diário da Noite não se voltava abertamente contra a luta das massas. Mas mostrava o tempo todo quem não tinha lugar no futuro que estava chegando e quem eram aqueles que apesar de sempre convidados a ‘entrar’ na modernidade estavam fora dela”, conta a historiadora.
A orientação desenvolvimentista dos governos após o Estado Novo apresentava para a sociedade a ciência como instrumento fundamental para conduzir o país ao progresso econômico e à tão almejada modernidade. Além disso, no Brasil dos anos 1950, as novidades tecnológicas como eletrodomésticos, automóveis, medicamentos e máquinas agrícolas chegavam ao incipiente mercado consumidor nacional. Era a ciência a serviço do homem, como diziam as propagandas: “Mil e novecentos técnicos altamente especializados criaram especialmente para você a ‘super máquina’ Vigorelli, aerodinâmica”, diz um anúncio de máquina de costura do Diário da Noite. Em outro, uma lata de tinta era saudada como “sensacional descoberta da química” e o leitor era convidado a “cientificar-se das excepcionais características” do novo produto.
“As ideias desenvolvimentistas empolgavam o Brasil na era JK e sobre este fundo ideológico mais amplo estava a ideia de que o desenvolvimento tecnológico possibilitaria abrir o único caminho para a real independência econômica do país”, observa Luisa Massarani, da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, em Um gesto ameno para acordar o país: a ciência no Jornal do Commercio (1958 – 1962), editado pela Fiocruz. Na primeira edição do suplemento, o seu coordenador, Walter Oswaldo Cruz, observou: “O Brasil não se desenvolverá sem técnicos, e técnicos são o produto humano da ciência”.
“A divulgação científica brasileira tem peculiaridades. Nunca houve grandes investimentos estatais em ciência e tecnologia e tampouco na educação científica, o que deixou para os meios de comunicação a tarefa de apresentar a ciência para uma população com baixo índice de alfabetização tecnológica”, observa Ana Maria Ribeiro de Andrade, pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), do Rio de Janeiro, e autora de A dinâmica da ciência na sociedade (Hucitec/Mast). “Assim, apesar de alguns esforços individuais, o sensacionalismo é a principal característica dessa divulgação. A construção dos fatos científicos aparece sempre envolta em mistérios, a genialidade está sempre presente em todas as descobertas e a história está quase sempre ausente”, avalia Ana.
No caso dos jornais de Chateaubriand,
lembra Mariza, havia uma mistura estranha de sensacionalismo e divulgação real como na manchete de primeira página: “Enxerga o jovem com os olhos do padre morto”. Com o título em letras garrafais, semelhante ao das reportagens sobre milagres, comuns no jornal, tudo fazia crer que se tratava de uma matéria sem nenhuma consistência. Mas o conteúdo da reportagem, que durou três dias, denota pesquisa, com informações precisas num texto bem escrito, aparentemente um verdadeiro paradoxo, que, no entanto, demonstrava ser uma boa estratégia para atrair o leitor.
Crianças
Em outra edição, o título avisa que cientistas brasileiros vão discutir os efeitos da bomba H. “Curiosamente, a chamada foi colocada bem acima da notícia de que ‘as crianças vão sofrer sem leite’ e, com certeza, na época chamou mais atenção do que a questão local das mães furiosas com a política”, observa a pesquisadora.
O caso da bomba H também revela a dualidade do jornal sobre a ciência, vista ao mesmo tempo como panaceia para os problemas do país, mas não isenta de muitos perigos. “Repercute entre os pesquisadores o documento dos sábios americanos”: a possibilidade de que a energia nuclear tivesse efeitos adversos levou o vespertino a conversar com professores da USP. Constrangido, um especialista como o físico Marcelo Damy afirma que “o assunto foge ao campo de sua especialidade” e se pronunciou “de forma geral contra o uso de armas atômicas para fins belicosos”. “José Goldemberg, da ‘Faculdade de Filosofia de São Paulo’, falou ‘ligeiramente’ à reportagem sobre os efeitos danosos da radioatividade.” “Muitos cientistas não gostavam de se ver associados a jornais como o Diário da Noite para não macular sua reputação”, nota Mariza. Essa fraca articulação entre a comunidade científica e o jornal permitiu que assuntos candentes na mistura de desenvolvimentismo e Guerra Fria decolassem.
Alguns literalmente, como os discos voadores, que frequentaram muitas capas do vespertino de Chateaubriand. “A imprensa brasileira foi incapaz de oferecer aos leitores informações suficientes para que eles pudessem reconhecer fenômenos celestes e objetos voadores corriqueiros. Sem um background científico, muitos ficaram à mercê das especulações de jornais sensacionalistas”, observa o historiador Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos, que pesquisou o tema em A invenção dos discos voadores. Guerra Fria, imprensa e ciência no Brasil (1947-1958). Por isso, nos matutinos, voltados para classe média e alta, como O Estado de S. Paulo ou a Folha da Manhã, não deram tanto espaço a esse tipo de questão, mais atentos à possibilidade de que se tratasse de uma questão bélica.
Em geral se divulgou a ideia de uma ciência grandiosa e inacessível ao cidadão comum, com muitos mitos e cientistas isolados em sua complexidade. “Era uma muralha entre ciência e leitor pela mitificação da atividade científica que, ao lado da idealização de figuras, não predispôs o brasileiro a estudar ciência”, avalia Ana.
“Creio que o Diário da Noite, pelo contrário, aproxima a ciência do leitor, justamente pelo uso de recursos jornalísticos mais populares e, inclusive diferentemente dos outros meios de divulgação científica, expressa também os medos e angústias contemporâneos com relação ao desenvolvimento científico. Ele contribui assim para desmistificar a ciência, o que, creio, é um dos diferenciais da minha pesquisa”, nota Mariza.
Assim, para a pesquisadora, o Diário da Noite ao se definir como porta-voz das massas populares pretende, através da divulgação científica, tirá-las da ignorância, promovendo os ideais de conforto, bem-estar e de felicidade, tão caros aos anos dourados, sendo a ciência uma das portas de entrada para a modernidade. “Por outro lado, ela é desmistificada quando o jornal denuncia seus riscos e perigos, e ainda entretém o imaginário coletivo quando trata de forma ambígua temas como o dos discos voadores”, nota a autora.
Projeto
Divulgação científica e imprensa popular. São Paulo e Rio de Janeiro nos anos 50 (2011/13246-2); Modalidade Bolsa no Exterior; Coord. Mariza Romero (PUC-SP); Investimento R$ 22.266,26 (FAPESP).