“Por que o ‘primitivo’, ou as ‘artes primeiras’ […], transforma-se no canto da sereia da modernidade? Por que Paris se converte no centro da produção estética ameríndia de Rego Monteiro, da afro-brasileira de Tarsila do Amaral ou de boa parte da pintura afro-uruguaia de Joaquín Torres García ou asteca de Diego Rivera?”, pergunta Jorge Schwartz em “Rego Monteiro, antropófago?”, um dos 14 ensaios que compõem Fervor das vanguardas. Arte e literatura na América Latina. Acredito que essa pergunta que fala da passagem pela Europa para poder voltar àquilo que é próprio, uma pergunta de índole estética, mas sobretudo política, junto à indagação reiterada acerca da presença de uma proposta utópica, entendida como um valor, nos projetos de escritores como Oswald de Andrade ou Oliverio Girondo, ou de pintores como a própria Tarsila ou Lasar Segall, ou de escritores/pintores como Xul Solar ou Torres García, é o que organiza e inquieta o olhar preciso e detalhado de Schwartz sobre as vanguardas históricas latino-americanas, em particular as brasileiras e rio-platenses. Uma preocupação que encontra respostas de diferentes matizes, mas que ilumina não somente a obra dos artistas das primeiras décadas do século XX, mas principalmente o lugar e a época a partir de onde o crítico escreve e observa.
A segunda pergunta da citação fala também não unicamente da necessidade dos vanguardistas latino-americanos de viajar ao “centro” para poder olhar sua própria realidade, mas da elaboração desses ensaios que encontram no deslocamento sua lógica e sua finalidade. Entre a escrita e a pintura, entre o castelhano e o português, entre o Brasil e a Argentina, entre Buenos Aires e São Paulo, especificamente, os ensaios são pensados como uma viagem que cruza e entrecruza mundos que, apesar de próximos, tiveram sempre contatos efêmeros e muitas vezes frustrados, como no caso de Lasar Segall, cuja viagem à capital argentina, planejada várias vezes, acaba não se concretizando; ou a viagem metafórica de Xul Solar, que aposta em criar uma língua – o neocriollo – que reúna o português e o castelhano e termina finalmente inventando um idioma com nuances místicas e apto somente para iniciados; ou a viagem feliz de Horacio Coppola, que chega ao Brasil para fotografar as esculturas de Aleijadinho e encontra-se com Manuel Bandeira.
A viagem aparece já em uma das cenas iniciais deste livro e é reiterada com alguns matizes em um dos três textos que Schwartz dedica justamente ao fotógrafo argentino Horacio Coppola. Destacada pelo próprio crítico como um ponto de virada em sua carreira em direção ao que chama “o estabelecimento de um sistema de equivalências entre palavra e imagem”, a cena que recupera uma recordação pessoal condensa múltiplos sentidos. De viagem por Valencia, onde havia sido convidado para ministrar um curso, Schwartz conta seu espanto ao ver pela janela do ônibus enormes banners que anunciavam “El Buenos Aires de Horacio Coppola”. A surpresa reside na dificuldade de associar o Coppola da exposição com o fotógrafo que na década de 1930 havia publicado duas imagens da capital argentina no Evaristo Carriego de Borges. Embora breve, ou justamente por essa razão, a lembrança imanta. Não apenas porque conserva o encantamento de um momento-chave, mas porque a lembrança presentifica um tipo de olhar educado não exclusivamente na contemplação da arte, mas também atento à cidade, sem a qual é impossível pensar o surgimento das vanguardas históricas.
Se, como mencionei, as obras que Schwartz interroga e coloca em diálogo são as de Oswald e Tarsila, Girondo, Lasar Segall, Rego Monteiro, Xul Solar, Horacio Coppola e Torres García, os textos incorporam também outras figuras contemporâneas, em particular a de Jorge Luis Borges, que entra e sai dos ensaios, seja como parceiro de caminhadas de Coppola, seja como o oposto e complemento de Girondo nas imagens de uma Buenos Aires perifericamente moderna. E é Borges que concede a Schwartz a zona mais intensa do título do livro. Fervor, uma palavra que vale tanto para o espanhol como para o português, assinala já previamente ao texto a posição do ensaísta, o entusiasmo que percorre os ensaios; mas não se trata de um fervor cego, e sim de uma inteligência que encontra na pergunta a forma precisa para a leitura.
Adriana Kanzepolsky é professora de literatura hispano-americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de Un dibujo del mundo: extranjeros en Orígenes (Beatriz Viterbo Editora, 2004) e coorganizadora de Em primeira pessoa. Abordagens de uma teoria da autobiografia (Annablume, 2009).
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