Durante sete anos, biólogos e veterinários de São Paulo e do Rio Grande do Sul recolheram 528 pinguins-de-magalhães nas praias do extremo sul do país. A maioria estava viva, embora muitos tão debilitados que morreram logo depois; outros já estavam mortos, em decomposição. Em laboratório, fizeram a identificação do sexo e verificaram que as fêmeas eram a maioria dos animais mortos e dos que morreram durante a reabilitação, possivelmente por estarem mais fracas que os machos. A inesperada constatação representava uma possível explicação para o excedente de machos nas colônias de pinguins dessa espécie, um fenômeno bastante conhecido, mas nunca devidamente esclarecido.
Muitos pinguins também estão morrendo por causa da malária aviária, uma doença que preocupa os especialistas porque as mudanças do clima podem aumentar a distribuição geográfica dos mosquitos que a transmitem em áreas próximas às colônias das aves. A malária aviária tem sido uma ameaça também para pinguins mantidos em cativeiro ou em reabilitação, já que muitos animais chegam com baixa resistência a infecções. Em 2007, a malária infectou quatro dos cinco pinguins-de-magalhães — todos fêmeas — do zoológico de São Paulo; dois morreram em consequência da malária e os outros três por outras causas. Hoje a Sabina Escola Parque, de Santo André, é o lugar com o maior número de pinguins dessa espécie na Grande São Paulo — ali são 23, talvez sejam 24 neste ano, se nascer o primeiro filhote*. Depois de quatro anos de trabalho, os biólogos e veterinários que cuidam do aquário parecem ter encontrado as melhores condições para o desenvolvimento do ovo fecundado.
Os pinguins-de-magalhães (Spheniscus magellanicus) têm em média 70 centímetros de altura, podem pesar até 5 quilogramas (kg) e são comumente identificados por um colar de penas brancas no pescoço coberto de penas pretas. Outra peculiaridade: não gostam do frio, diferentemente de outras espécies, como o famoso pinguim-imperador, com até 1,20 metro, 35 kg e manchas amareladas ao redor da cabeça. Todo ano os pinguins-de-magalhães formam colônias — muitas vezes com mais machos do que fêmeas —, se reproduzem e têm filhotes em regiões secas ao sul da Argentina e do Chile. Estima-se que a população de pinguins-de-magalhães seja de aproximadamente 3 milhões de indivíduos, distribuídos em colônias com até 100 mil casais. Em abril, quando a temperatura cai e o alimento se torna escasso, centenas de pinguins pulam na água, atrás de cardumes de peixes, e começam um trajeto errático de milhares de quilômetros ao longo de meses, rumo ao norte, pelas águas frias da corrente das Malvinas.
Muitos morrem no mar, outros chegam vivos ao litoral brasileiro. Alguns se afastam tanto do bando que já foram vistos até no litoral do Ceará. Os encontrados nas praias do Rio Grande do Sul quase sempre estão mortos ou quase mortos, de tão exaustos. “Em geral, os pinguins que sobrevivem à viagem estão desidratados e hipoglicêmicos, não conseguem sequer erguer a cabeça”, relatou Ralph Vanstreels, pesquisador da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP). “Alguns, cobertos de óleo que vaza de navios, apenas esperam para morrer.”
O petróleo é uma das principais causas de morte desses animais. Na costa da província de Chubut, na Argentina, ao lavar os tanques, os navios petroleiros descartam os resíduos no oceano, causando a morte de 20 mil pinguins adultos todos os anos. Outros pinguins morrem porque ingerem lixo que chega ao oceano. Pesquisadores do Rio de Janeiro encontraram restos de plástico no estômago e no intestino de 15% dos 175 pinguins-de-magalhães encontrados mortos na Região dos Lagos, litoral do Rio.
Coletados de 2002 a 2009, os 528 pinguins-de-magalhães que Vanstreels examinou podem dar algumas respostas sobre os hábitos e a mortalidade dos animais durante a migração anual. Ele e os técnicos do Centro de Reabilitação de Animais Marinhos da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) percorriam em média 200 quilômetros por dia, a bordo de uma caminhonete, coletando animais na praia próxima à lagoa dos Peixes, no município de Rio Grande. Os pinguins vivos eram colocados em gaiolas e levados para o centro de reabilitação, onde eram lavados, alimentados e medicados. Os mortos seguiam para análise e identificação do sexo.
O sexo dos pinguins
Não é fácil diferenciar machos de fêmeas, à primeira vista muito semelhantes. Vanstreels dá como exemplo o bico dos machos, levemente mais largo e apenas alguns milímetros maior que o das fêmeas. Com os animais mortos, é ainda mais difícil, por causa do estado de decomposição — alguns não tinham mais bico. Nesses casos, os pesquisadores usam marcadores genéticos ou simplesmente abrem o bicho para ver testículos ou ovários.
Dos 409 animais encontrados vivos na praia, 211 morreram e, destes, mais da metade (126) era fêmea. Entre os 118 encontrados mortos, 88 eram fêmeas. Os pesquisadores acreditam que o fato de aparentemente morrer mais fêmeas do que machos durante a migração deve prejudicar o crescimento das populações de pinguins dessa espécie. Como os pinguins são monogâmicos, é provável que muitos fiquem sozinhos. Na Argentina, segundo Vanstreels, já foram vistos machos sem parceiras, criando conflitos com os que formavam casais e muitas vezes quebrando os ovos dos ninhos.
Vanstreels e seu orientador de doutorado, José Luiz Catão-Dias, acreditam que o maior número de fêmeas encontradas mortas se deve a diferentes estratégias de busca por alimento adotadas por machos e fêmeas durante a migração. Quando há mais peixe, todos caçam da mesma forma, em regiões mais superficiais do mar. As diferenças aparecem quando o alimento se torna escasso. Segundo Vanstreels, os machos devem mergulhar à procura de peixes de regiões mais profundas, enquanto as fêmeas se mantêm mais à superfície, em rondas amplas. Por nadar em uma área maior, explica Catão-Dias, elas poderiam estar mais sujeitas à contaminação por petróleo que os machos.
A pesca excessiva de peixes pequenos como sardinhas e anchoítas, as espécies prediletas dos pinguins-de-magalhães, pode ser uma das causas da escassez de alimento que os força a nadar mais fundo, no caso dos machos, e mais longe, no caso das fêmeas. Pesquisadores da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, verificaram que pinguins jovens encontrados mortos nas praias tinham muito pouca gordura sob a pele e, no estômago, apenas restos de moluscos de baixo teor nutricional.
Pode ser também que as fêmeas já saiam debilitadas das colônias, suspeitam os pesquisadores. Em visita às colônias de pinguins na Patagônia, Vanstreels e Catão-Dias observaram que os filhotes machos tomam das fêmeas a comida que os pais haviam levado para toda a prole. “É possível que as fêmeas estejam deixando as colônias numa condição física pior que a dos machos”, cogita Vanstreels. Ainda não se sabe quantos pinguins deixam as colônias todos os anos, nem quantos conseguem voltar.
No zoológico
A bióloga Karin Kirchgatter, atualmente no Laboratório de Malária da Superintendência de Controle de Endemias da Secretaria da Saúde de São Paulo, foi uma das responsáveis pelo diagnóstico dos pinguins infectados com malária aviária em 2007 no zoológico de São Paulo. A veterinária Marina Galvão Bueno, hoje no Instituto Mamirauá, no Amazonas, coordenou o tratamento dos animais. Segundo Karin, antes de apresentarem os primeiros sinais, alguns pinguins foram diagnosticados com uma inflamação causada por bactérias nos pés, provavelmente desenvolvida porque passavam bastante tempo fora d’água, como forma de evitar o contato com mosquitos transmissores de doenças. Por essa razão, ela diz, foram liberados para nadar à noite – e foi quando foram infectados pelo parasita da espécie Plasmodium relictum, transmitido pelos mosquitos do gênero Culex, de hábitos noturnos. “Os pinguins que conseguimos tratar a tempo e não morreram de malária morreram, entre outras causas, de aspergilose pouco tempo depois”, diz Karin, se referindo à infecção pulmonar causada por um fungo.
Meses após os primeiros sinais de malária, os cinco pinguins estavam mortos. Depois disso, o zoológico preferiu não manter outros animais dessa espécie por causa do elevado risco de infecções. “Qualquer lugar ou planta que acumule água pode funcionar como um criadouro de mosquitos”, diz Karin, que coordena um projeto de identificação de plasmódios em aves do zoológico. Sob sua orientação no Instituto de Medicina Tropical da USP, a bióloga Carolina Chagas coletou cerca de 800 amostras de sangue de quase 100 espécies de aves e identificou uma espécie de protozoário, Plasmodium nucleophilum, diferente da que causou a morte dos pinguins e igualmente fatal.
Vanstreels e Catão-Dias encontraram outra espécie pouco comum, Plasmodium tejerai, em dois pinguins-de-magalhães que morreram em 2009 em um centro de triagem de animais silvestres de Santa Catarina. Até então o parasita tinha sido identificado apenas uma vez, há mais de 30 anos, em aves da Venezuela.
Estudos como esses indicam como lidar melhor com os pinguins-de-magalhães e evitar que as doenças cheguem às colônias: depois de tratados nos centros de reabilitação, os animais são soltos novamente no mar. “A liberação dos pinguins na natureza deve seguir critérios mais rigorosos quanto ao estado de saúde do animal, impedindo que os indivíduos infectados sejam liberados e favoreçam a transmissão de patógenos entre os animais da colônia”, diz Catão-Dias. “Quanto menos tempo esses animais ficarem em recuperação, menores serão as chances de serem infectados.”
Projetos
1. Malária aviária e pinguins no Brasil: estudo epidemiológico e patológico de uma enfermidade com potencial risco à conservação da avifauna (nº 10/51801-5); Modalidade Projeto Temático; Coord. José Luiz Catão-Dias/FMVZ-USP; Investimento R$ 665.198,08 (FAPESP).
2. Plasmodium spp. em aves silvestres da Fundação Parque Zoológico de São Paulo: identificação de espécie por microscopia e código de barras de DNA (nº 12/51427-1); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coord. Karin Kirchgatter/Sucen-SES/SP; Investimento R$ 52.328,50 (FAPESP)
Artigos científicos
BUENO, M. G. et al. Identification of Plasmodium relictum causing mortality in penguins (Spheniscus magellanicus) from São Paulo Zoo, Brazil. Veterinary Parasitology. v. 173, n. 1-2, p. 123-27. 2010
VANSTREELS, R. E. T. et al., Female-biased mortality of Magellanic Penguins (Spheniscus magellanicus) on the wintering grounds. Emu. v. 113, n. 2, p. 128-34. mai. 2013
* O 24º pinguim-de-magalhães da Sabina Escola Parque nasceu no último dia 29 de dezembro.
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