Segunda empresa do mundo em número de clientes num mesmo país, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) só perde para a chinesa Beijing Enterprises Water Group. A empresa, que fornece água para 363 municípios do estado de São Paulo, num total de 27,9 milhões de pessoas, começou em 2009 uma mudança no campo tecnológico. No ano seguinte foi criada a Superintendência de Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação com o objetivo de gerar e prospectar tecnologia tanto para a própria companhia como para todo o setor de saneamento. “Existe uma carência específica para saneamento. Hoje muitas das tecnologias são apenas adaptadas para essa área”, diz a engenheira civil Cristina Zuffo, gerente do Departamento de Prospecção Tecnológica e Propriedade Intelectual da Sabesp.
“A nossa ideia é desenvolver novas tecnologias e induzir os fornecedores a atenderem o setor de saneamento com os produtos gerados nesse processo”, diz Cristina. Até 2009, a empresa tinha projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de forma tímida, sem estrutura no âmbito corporativo para esse fim. As iniciativas eram descentralizadas e pontuais. O processo de criação do núcleo na Sabesp teve a assessoria do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) num projeto coordenado pelo professor Sérgio Salles. Também foi realizado um estudo de prospecção tecnológica sobre saneamento em revistas especializadas e em bancos de artigos científicos, além de saber o que as empresas no Brasil e no mundo estão fazendo nesta área.
Pedro HamDanAntes mesmo que o núcleo de tecnologia da empresa estivesse pronto a Sabesp fez um acordo de cooperação com a FAPESP para apoiar projetos de pesquisa para a área de saneamento por meio do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). O valor da primeira chamada que convidou os pesquisadores de instituições de pesquisa paulistas a apresentarem projetos foi de R$ 10 milhões, sendo R$ 5 milhões da Sabesp e R$ 5 milhões da Fundação. Das 49 propostas, 9 foram selecionadas dentro de temas escolhidos pela empresa como economia no saneamento, eficiência energética, tratamento de esgotos, entre outros. Uma segunda chamada deve ter os projetos escolhidos anunciados nos próximos meses também no valor total de R$ 10 milhões.
Um dos temas previstos para os projetos é destinado a colaborar com um dos grandes desafios da empresa, a diminuição da perda de água, principalmente devido a rachaduras nas tubulações da rede de distribuição. A Sabesp em 2012 deixou de ganhar 25,7 % a mais no faturamento com esse problema. Em 2013, até novembro, deixaram de ser contabilizados 31,4% de água, índice apurado na diferença entre os macromedidores, geralmente instalados na entrada de grandes reservatórios de distribuição, e os micromedidores, que são os hidrômetros residenciais ou comerciais. A companhia estima que 66% das perdas foram principalmente de vazamentos e os 34% restantes relativos a fraudes, falhas em medidores, usos sociais que consistem no fornecimento para favelas, dentre outros. O índice de desperdício atingiu 29,5% em 2007 e a previsão da empresa é de chegar a 13% em 2019, dentro dos padrões internacionais. Diminuir o desperdício é uma forma também de contribuir para o abastecimento em períodos de falta de chuva, como aconteceu em janeiro deste ano na Região Metropolitana de São Paulo.
A detecção das perdas por vazamento pode ser mais bem diagnosticada para, além de melhorar o faturamento, contribuir para evitar a chamada escassez hídrica. Para a Região Metropolitana de São Paulo não sofrer desse problema, a empresa começará neste ano uma obra que vai trazer água da represa Cachoeira do França, no município de Ibiúna, a 70 quilômetros da capital.
Tradicionalmente, em todo o mundo, quando há suspeitas de vazamento, notado, por exemplo, com as diferenças de volume de água apurado nos reservatórios setoriais e o volume recebido pelos clientes, um funcionário vai até o local onde existe a suspeita de vazamento munido de um geofone. O equipamento é formado por um sensor que, apoiado no chão, capta as vibrações do solo e depois envia para um amplificador e para um fone de ouvido. Um técnico treinado para usar esse equipamento ouve os sons captados sob o piso de um quintal ou de uma rua, por exemplo, e se houver um ruído que indique ruptura ou vazamento, uma equipe da companhia de saneamento vai até o local abrir o terreno e fazer o reparo.
“Se a água aflora à superfície, é mais fácil identificar o local, mas se for no interior do solo a água vai para o lençol freático. Com o geofone, a localização do vazamento depende da habilidade do operador, que deve ter em volta menos barulho possível. Por isso grande parte desses testes são feitos à noite”, diz Cristina. Mas como avançar nessa tarefa e dar maior precisão tanto ao trabalho de busca de vazamentos como na garantia da necessidade do serviço de reparo? O professor Linilson Padovese, do Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), apresentou como proposta a criação de um software que pudesse ajudar os técnicos e a empresa nessa área. Para isso, seria necessário ter um banco de sinais característicos dos problemas apresentados na rede de distribuição e que são conhecidos dos operadores do geofone. “Como não havia esse banco de sinais gravados porque os equipamentos disponíveis são analógicos, nós mudamos o foco no projeto para desenvolver primeiro um equipamento de coleta e gravação digital de sinais”, diz Padovese, que já tinha experiência anterior em sensoriamento vibroacústico em máquinas industriais e na aplicação de métodos de processamento de sinais para detecção de defeitos. “Decidimos criar um equipamento que permitisse digitalizar, gravar e georreferenciar os sons escutados pelos técnicos. Dessa forma, a empresa poderá montar um banco de dados com os sinais digitais, todos marcados com a localização com GPS. Além disso, com a finalidade de baratear o equipamento e tornar a tecnologia mais simples e de fácil utilização, decidiu-se utilizar smartphones como plataforma de base do geofone.”
Infográfico: Ana Paula Campos / Ilustração: Pedro HamdanPadovese lembra que embora a escuta, feita por técnicos em campo, seja realizada mediante a utilização de filtros de sinais, a gravação digital é feita com o sinal bruto, sem nenhuma filtragem. Dessa forma os sinais poderão ser estudados e reprocessados pelos técnicos da empresa, de maneira off-line, utilizando os filtros padrões ou outras técnicas de processamento de sinais e reconhecimento de padrões que permitam melhorar o processo de diagnóstico. Com a formação do banco de dados, será possível num futuro próximo até o desenvolvimento de softwares de diagnóstico automático, aumentando assim a eficiência do processo de pesquisa de vazamentos na rede da Sabesp.
“O ideal é diminuir a dependência da avaliação de apenas um técnico”, diz Padovese. “Para entender os problemas da empresa nós conversamos com os técnicos, o que nos fez direcionar melhor o projeto.” O pesquisador conta que não foi possível, no âmbito do projeto atual, desenvolver um sensor do tipo geofone. Eles utilizam os sensores dos geofones encontrados no mercado. O hardware de condicionamento analógico de sinais e digitalização foram desenvolvidos durante o projeto, além de um aplicativo para plataforma iPhone, da Apple. Os primeiros testes em campo devem começar ainda em fevereiro e vão se estender até julho. O projeto está sendo financiado pelo acordo FAPESP-Sabesp e já resultou em uma possível patente que está para ser depositada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Ela trata de uso do smartphone em sistemas de geofone e outras modificações técnicas que eles implementaram para produzir e gravar os sinais digitais em campo.
Outro produto inovador que deve sair dos projetos entre a Sabesp e a Poli-USP financiados pela FAPESP é um microlaboratório eletrônico para medir em tempo real a quantidade de fósforo na água, seja de mananciais ou de estações de tratamento. “O fósforo é um nutriente e sua presença em grande quantidade nos locais de captação de água indica a presença de carga orgânica – possivelmente de esgotos, muitas vezes clandestinos”, diz Cristina. O fósforo funciona como um nutriente para as algas. O monitoramento dessas espécies precisa ser feito com regularidade porque a alta proliferação pode prejudicar o tratamento de água potável e trazer prejuízos para a empresa. Atualmente, o monitoramento dos mananciais demora muito tempo. É preciso colher amostras de água, muitas vezes com barcos, e levá-las para serem analisadas em laboratório. “Isso demora muito”, diz Cristina.
O que o grupo do professor Antônio Carlos Seabra, do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Poli, propôs foi um monitoramento autônomo e em tempo real com um equipamento do tamanho de um cartão de crédito preso a uma boia. Baseado nos sistemas de tecnologia Lab on a chip, o sistema é uma tendência atual de pesquisa de análises químicas e clínicas, em que se faz a miniaturização de equipamentos com utilização de menos amostras e reagentes. “Transferimos o laboratório para um cartão do tamanho próximo ao de crédito e um pouco mais espesso”, diz Seabra, que contou também no projeto com a colaboração do grupo da professora Dione Morita, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Poli. “Utilizamos técnicas de microfabricação e conhecimento de análises químicas”, diz Seabra.
O dispositivo possui microcanais em seu interior por onde a água e os reagentes percorrem até chegar a um ponto dentro do cartão onde um conjunto de leds ilumina a amostra e a luz transmitida é captada por um sensor. “Por exemplo, uma determinada reação pode gerar uma coloração azul e, conforme a intensidade da cor, é possível analisar a quantidade de fósforo”, explica Seabra. O trabalho do sensor é preparar a amostra, combiná-la com reagentes e analisar a intensidade luminosa em um comprimento de onda absorvido por moléculas específicas da reação. A entrada de água e de reagentes é controlada por microbombas e microválvulas que captam o líquido do ambiente. O dispositivo também expele a amostra e faz a própria limpeza do sistema. “Deveremos disponibilizar o aparelho para fazer medições de hora em hora conforme demanda da Sabesp”, diz Seabra. O microlaboratório pode ser instalado em uma boia ou em uma base na estação de tratamento. As informações colhidas são repassadas aos técnicos da empresa por sistemas wireless. Na boia também existe um recipiente que armazena os reagentes injetados no aparelho.
“Estamos empenhados agora em fazer um protótipo que vamos entregar à Sabesp para os primeiros testes em campo e também diminuir a quantidade de amostra usada no aparelho. Hoje utilizamos 800 microlitros [medida relativa à milionésima parte do litro] e acreditamos que possamos atingir os 20 microlitros”, diz Seabra. A menor utilização de amostra reflete também na diminuição da quantidade de reagentes e consequentemente de custos operacionais.
Para fazer o corpo do microlaboratório os pesquisadores utilizam uma cerâmica maleável que lembra um plástico. Depois de várias camadas prensadas ela se torna rígida. A confecção dos canais é feita com uma máquina a laser comprada dentro do projeto FAPESP-Sabesp por US$ 250 mil. “A largura dos canais precisa ter uma perfeição de menos de 0,1 milímetro”, diz Seabra. “Queremos passar à empresa um produto reprodutível industrialmente e confiável.” Pelo menos uma patente já está certa para depósito no INPI. É a integração do microssensor de pH da água que teve uma solução inédita de adaptação no fluxo interno do microlaboratório.
As patentes pela USP são feitas em conjunto com a Sabesp e FAPESP com a titularidade dividida entre as três instituições. Várias possibilidades cercam o destino dessas novas tecnologias. Elas podem ser licenciadas ou vendidas para empresas já estabelecidas no setor ou gerar novas empresas start-ups. A Sabesp pode também montar até uma outra empresa para produção e venda do equipamento. “O importante é desenvolver o mercado de produtos para saneamento no país”, diz Cristina.
Um dispositivo desenvolvido pelos engenheiros do núcleo de tecnologia da empresa que deve integrar o portfólio de produtos inovadores é um biofiltro para purificar o gás emanado das estações de tratamento de esgoto (ETE) e estações elevatórias de esgotos, responsável por um odor ruim e prejudicial aos moradores do entorno dessa unidade. “Ele foi feito com materiais recicláveis e sem consumo de produtos químicos”, conta Cristina. O biofiltro é composto de turfa formada por restos vegetais, madeira e casca de coco, além de uma camada de brita. Ele é instalado dentro de um contêiner onde recebe o gás por meio de dutos. A aspersão de água no interior do contêiner faz com que bactérias presentes nos materiais oxidem o gás. Um protótipo está em funcionamento em fase de testes já com bons resultados na ETE do bairro de São Miguel Paulista, na capital. “Está praticamente pronto para uso e alguém terá que produzi-lo em escala”, diz Cristina.
A guinada tecnológica da empresa tem também como meta a expansão dos negócios e participação na área de saneamento não somente no Brasil, mas no exterior. Empresa de economia mista, a Sabesp tem 50,3% de suas ações em poder do governo estadual paulista e o restante pulverizado no mercado de ações nas bolsas de valores de São Paulo e de Nova York, nos Estados Unidos. A receita líquida em 2012 foi R$ 10,7 bilhões com 7,7 milhões de ligações de água e 68 mil quilômetros de redes de distribuição de água e 46 mil de esgoto. A companhia já tem uma base de operações no Panamá e em alguns países da América Central, aonde quer levar o conhecimento adquirido. Também tem parcerias com empresa de saneamento dos estados do Espírito Santo e Alagoas.
Projetos
1 Sistema especialista para detecção e diagnóstico de vazamentos em redes urbanas de distribuição de água (FAPESP-Sabesp) (n° 2010/50773-8); Modalidade Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisador responsável Linilson Rodrigues Padovese/USP; Investimento R$ 103.805,40 (FAPESP).
2 Uso de microlaboratórios autônomos para monitoramento de fósforo em tempo real (FAPESP-Sabesp) (n° 2010/50744-8); Modalidade Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisador responsável Antônio Carlos Seabra/USP; Investimento R$ 263.388,80 e US$ 373.855,47 (FAPESP).