Luiz Gama foi um personagem tão extraordinário quanto complexo, a começar por suas qualificações: abolicionista, republicano, poeta, advogado, jornalista e maçom. Pertenceu a uma geração que preparou a derrocada do Segundo Império no Brasil, no século XIX. Com a pena e a oratória, embrenhou-se na luta contra os conflitos da época, tais como as relações entre Igreja e Estado, Monarquia e República, raça e nação. Tomava o partido das causas libertárias e havia um sentido pessoal nessa escolha: Gama foi escravo, que tinha sido vendido por seu pai quando criança. Quase adulto, conseguiu conquistar a liberdade. Autodidata, extraiu de sua dramática e épica história de vida força e obstinação para libertar mais de 500 escravos.
Esse personagem batiza logradouros por todo o país, sobretudo em São Paulo, onde foi maior a sua atuação, mas ainda é pouco conhecido. Conhecê-lo, estudá-lo e iluminá-lo tem sido uma tarefa de pesquisadores como Ligia Fonseca Ferreira, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Autora de uma tese de doutorado sobre a vida e obra do ex-escravo defendida na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle, Ligia é negra e assume a responsabilidade de estudar um personagem com quem guarda relações mais complexas que a de um pesquisador neutro diante de seu objeto. “Às vezes, minimiza-se, quando não se invisibiliza, o trabalho dos pesquisadores negros a respeito de personagens históricas negras que afirmaram esta condição”, afirma.
A contribuição de Ligia para a compreensão de Luiz Gama é ímpar. Ela organizou a reedição crítica das Primeiras trovas burlescas & outros poemas de Luiz Gama (Martins Fontes, 2000) e Com a palavra, Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011). De formação em letras, com ênfase na área de língua e literatura francesa, Ligia tomou conhecimento do abolicionista quando realizava pesquisa na Sorbonne sobre a literatura negra no Brasil entre 1987 e 1988. Gama era ninguém menos que o pioneiro. Mas diante da fragmentada documentação sobre o poeta, e já mirando um doutorado, a solução foi percorrer bibliotecas, centros de estudos e até sebos de livros. O que encontrou não foi pouco.
As Primeiras trovas burlescas de Getulino foram publicadas em 1859, em São Paulo, àquela altura uma província de poucos leitores, escassos escritores e parcas tipografias e livrarias. O livro continha 22 poemas de sua autoria e três do político e professor de direito José Bonifácio, o Moço. A escolha do pseudônimo “Getulino”, derivado de “Getúlia”, território do norte da África, já indicava o posicionamento de um autor de origem africana, adentrando o restrito círculo de letrados, privilégio de brancos. Dois anos mais tarde, ele reedita a obra no Rio, na mesma gráfica que imprimia romances de José de Alencar. Na segunda edição, “correcta e augmentada”, publicou 39 poemas, dos quais 20 inéditos.
No Brasil escravocrata, escrever e ser lido eram duas formas de se manter próximo do poder. Procure se colocar no lugar de um ex-escravo, no início dos anos 1860. Imagine então usar seus escritos para satirizar os políticos e os costumes, parodiar as instituições arcaicas, criticar os “doutores” e trazer à tona os temas da corrupção, do preconceito racial, do embranquecimento dos mulatos que renegavam as raízes e do anticlericalismo. Segundo a pesquisadora, Luiz Gama fez isso com essa obra. Ao publicar em 2000 uma versão compilada com a produção poética integral do abolicionista, Ligia abriu um frutífero campo de estudos.
Luiz Gama nasceu em 21 de junho de 1830 em Salvador, filho de uma africana livre, a “altiva” Luiza Mahin, e de um fidalgo de origem portuguesa e membro de uma importante família baiana. O abolicionista jamais revelou o nome do pai que o vendeu como escravo. Foi entregue ao negociante e contrabandista Antônio Pereira Cardoso, que, sem conseguir revendê-lo, acabou ficando com o garoto de 10 anos. Gama aprendeu a ser copeiro, sapateiro, a lavar e engomar, e a costurar. Sete anos mais tarde, conviveu com o estudante Antônio Rodrigues do Prado Junior, que lhe ensinou as primeiras letras. Em 1848, “havendo obtido de forma ardilosa e secretamente provas inconcussas de sua liberdade”, segundo seu próprio relato, foge da casa de Cardoso.
Apenas dois anos antes de sua morte, em 25 de julho de 1880, Luiz Gama envia carta a Lúcio de Mendonça, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, revelando fatos inéditos de sua biografia. Ligia encontrou esse documento na Biblioteca Nacional, no Rio. “É um dos poucos relatos da vida de um ex-escravo no Brasil. Na história dos negros e das letras brasileiras, não há equivalentes das memórias de escravos, tão frequentes nos Estados Unidos”, diz. Esse texto é fundamental para compreender como Gama se tornou uma voz influente nos movimentos abolicionista e republicano.
A esse documento se soma uma carta anterior, de 26 de novembro de 1870, também na Biblioteca Nacional e publicada por Ligia no livro Com a palavra, Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas – obra que traz uma seleção de mais de 40 textos de Gama, vários inéditos, e também cerca de 30 ilustrações, além de seis ensaios da autora. O destinatário da carta era José Carlos Rodrigues, fundador de O Novo Mundo, primeiro periódico em português publicado nos Estados Unidos. O abolicionista fala sobre o movimento republicano no Brasil e sobre a loja maçônica América, fundada por ele e um grupo de liberais que contava, entre seus membros notáveis, com Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. “Asseguro-te que o partido republicano, graças à divina inépcia do sr. D. Pedro II, organiza-se seriamente em todo o império”, escreveu. Mas, segundo Ligia, defendia que a instauração de uma República deveria vir acompanhada da Abolição. A convicção era tamanha que ele abandonou a Convenção de Itu (1873), ao encontrar cafeicultores contrários à emancipação dos escravos na fundação do Partido Republicano Paulista.
Naquele momento, Luiz Gama já era uma personalidade. Em 1864, havia fundado, ao lado do caricaturista italiano Angelo Agostini, o Diabo Coxo, primeiro periódico humorístico ilustrado da capital paulista. Dois anos depois, colaborou no semanário Cabrião, também com Agostini e Américo de Campos. Em polêmicos artigos, criticava com veemência o regime escravocrata e passava a sofrer perseguições políticas. Sua ira se voltava contra o uso abusivo do Poder Moderador e o próprio imperador dom Pedro II, cuja imagem havia sido abalada na Guerra do Paraguai (1864-1870).
Em 1869, Luiz Gama obteve autorização para exercer a profissão de advogado em primeira instância, mesmo ano em que funda o Clube Radical Paulistano com outros membros da Loja América. Com sólidos argumentos, Gama revela a fragilidade do sistema judiciário. De acordo com a pesquisadora, além das críticas, tratou de inovar no plano jurídico, como quando desenterrou a Lei de 7 de novembro de 1831, que extinguiu o tráfico negreiro, para conseguir libertar africanos comercializados depois dessa data. Em um processo de 1869, entrou em choque com um dos principais juízes da capital, Rego Freitas, a quem exigiu que “respeita[sse] o direito e cumpri[sse] seu dever, para o que é pago com o suor da nação”. O discurso de Gama continua atualíssimo.
Foi também proprietário e redator do semanário político e satírico O Polichinelo (1876). A imprensa e a maçonaria foram fundamentais para o ativismo de Gama, porque lhe franquearam espaço para defender os ideais republicanos e o apoiaram na libertação dos escravos. No século XIX havia outros negros abolicionistas, como os jornalistas Ferreira de Menezes e José do Patrocínio ou o engenheiro André Rebouças, mas nenhum deles vivenciou o drama da escravidão. Pode-se comparar o brasileiro só a abolicionistas americanos, como os ativistas Frederick Douglass, autor de The life of an american slave (1845), ou Booker T. Washington, autor de Up from slavery (1901).
Gama manifestava admiração pelos Estados Unidos, para ele “o farol da democracia universal”. Um modelo exemplar: república federativa, de cidadãos livres e iguais, e ancorada nos ideais iluministas da liberdade, igualdade e fraternidade. Incomodava ao abolicionista o fato de que o Brasil se mantinha como única monarquia das Américas e última nação escravagista do Ocidente. A pesquisadora não deixa de questionar, no artigo “Representações da América nos escritos de Luiz Gama”, a ser publicado na Revista de Estudos Afroasiáticos, a ausência de alusões por parte de Gama aos conflitos raciais e à segregação dos negros nos Estados Unidos pós-escravista.
Ligia chama atenção para o fato de ele jamais ter mencionado Joaquim Nabuco em seus escritos, numa recíproca quase verdadeira. Isso decorreria do fato de que o também líder na luta antiescravista era filho de Nabuco de Araújo, ex-presidente da província de São Paulo e denunciado por Gama por sua conivência com a escravização ilegal de africanos. Gama, provavelmente cansado de esperar pela libertação dos africanos, defendia a incitação de um movimento popular, já que, para ele, se a insurreição é um “crime”, a “resistência” afigura-se como “virtude cívica”. Já Joaquim Nabuco estava convencido de que a Abolição deveria ser feita pela via parlamentar.
Luiz Gama morreu em 1882, antes de testemunhar a libertação dos escravos e o fim do Império. Para a pesquisadora, ele foi poupado de ver a República nascer de um golpe militar, constatar que os ideais de igualdade entre os homens não foram aplicados e que a campanha imigrantista tinha, entre seus propósitos, embranquecer o Brasil para eliminar os traços da estigmatizada e incômoda presença africana no país.
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