Todos os dias, sob a ação da radiação ultravioleta, o pigmento da pele, a melanina, pode se fragmentar e formar compostos químicos bastante reativos capazes de danificar a estrutura da molécula de DNA, mantida no núcleo das células, e desencadear o desenvolvimento de câncer de pele. O mesmo pode acontecer sob a ação de radicais livres e outras substâncias carcinogênicas. Essas lesões, se não são reparadas, produzem mutações genéticas que, ao gerar células defeituosas que se multiplicam descontroladamente, podem causar várias formas de câncer. O motivo de o material genético não se desintegrar por completo em um verdadeiro caos químico é a existência de um sofisticado e complexo sistema molecular que o monitora e repara. Os três vencedores do prêmio Nobel de Química, anunciados nesta quarta-feira, 7, pela Academia Real Sueca de Ciências ajudaram justamente a elucidar os mecanismos que reparam os danos sofridos constantemente pelo material genético, conhecimento que promete contribuir para o desenvolvimento de novas terapias anticâncer.
O sueco Thomas Lindahl, 77 anos, do Instituto Francis Crick e do Laboratório Clare Hall, do Reino Unido, mostrou que o material genético decai a uma taxa que deveria tornar impossível a vida na Terra. De acordo com seu estudo, cada uma das células humanas sofre perda de bases, blocos que compõem o DNA, 10 mil vezes ao dia, a uma temperatura de 37 graus Celsius. Também identificou os mecanismos de reparo por remoção de bases, que se contrapõe constantemente ao colapso do DNA. O norte-americano Paul Modrich, 69 anos, do Instituto Médico Howard Hughes e da Universidade Duke, nos Estados Unidos, demonstrou como a célula corrige erros da divisão celular por um mecanismo conhecido como mismatch repair, que reduz a frequência de erros quando o DNA se replica. O turco naturalizado norte-americano Aziz Sancar, 69 anos, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, verificou como as células reparam os danos causados pelos raios ultravioletas, o que também vale para danos causados por várias substâncias mutagênicas. Defeitos nesse mecanismo estão por trás do câncer de pele após exposição ao Sol.
“Esse é o primeiro Nobel para trabalhos sobre reparo de DNA”, diz o geneticista Carlos Menck, coordenador do Laboratório de Reparo de DNA do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). “É uma descoberta de pelo menos 50 anos que contou com a participação de muita gente.” Segundo ele, o comitê do Nobel escolheu representantes das três linhas de pesquisa mais conhecidas em reparo de DNA, mas não únicas — uma das regras da premiação é que não pode haver mais de três agraciados. Para ele, porém, outros pesquisadores poderiam ser candidatos ao prêmio. O geneticista paulista cita o norte-americano Philip Hanawalt (ver entrevista aqui), que em 1963 publicou o primeiro artigo científico explicando o mecanismo de reparo. Em 2012, o grupo de Menck verificou por meio de um sensor que a radiação ultravioleta do tipo A (UV-A) — que os protetores solares protegem bem menos que a do tipo B (UV-B) —, mais energética que a A, também pode causar lesões no DNA (ver Pesquisa FAPESP especial 50 anos).
Nas categorias científicas do Nobel, Aziz Sancar foi o primeiro premiado nascido na Turquia. Em conversa por telefone com Adam Smith, do site do Nobel, ele disse que o funcionamento desse mecanismo ajuda a proteger contra o câncer, mas também protege as células cancerosas contra o ataque de substâncias usadas na rádio e na quimioterapia. “Muitas das drogas anticâncer danificam o DNA, e a capacidade das células cancerígenas de repará-lo não pode influenciar o tratamento do câncer”, explicou. “Queremos entender como esses mecanismos de reparo funcionam a um nível de detalhamento que nos permita prevenir o surgimento de células cancerígenas em situações em que as células são expostas a sessões de radioterapia, por exemplo”, disse Lindahl.
Para Menck, essa linha de pesquisa contribuiu para entender melhor como o câncer surge e como o organismo envelhece. “Mulheres que têm mutação nos genes BRCA, que também participam de reparo de DNA, por exemplo, têm altas chances de desenvolverem câncer de mama”, explica. “Se pegarmos células cancerosas nas quais falta uma via de reparo, como acontece nessas mulheres, e inibirmos outra via de reparo, matamos a célula.” Um medicamento usando esse princípio, que pode ter benefícios para boa parte dos tipos de câncer de mama, está em fase de testes e, segundo Menck, em vias de ser aprovado. “Boa parte dos cânceres de mama se comportam como se tivessem deficiência de BRCA, mesmo que não envolvam mutação no gene.”
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