“A parede celular das plantas tem um código?” A pergunta, com um quê de retórica, é o título de um artigo publicado em 1º de novembro na revista científica Plant Science por uma dupla de botânicos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), o professor Marcos Buckeridge, especialista em fisiologia vegetal, e Eveline Tavares, que faz estágio de pós-doutorado na instituição. Segundo a dupla, a resposta é sim: um código, por eles chamado de glicômico, fornece as instruções para que a parede – uma camada flexível, geralmente rígida que serve de apoio estrutural e proteção a certos tipos de células – apresente uma dada arquitetura, mais ou menos rígida ou resistente, por exemplo.
Se a genômica estuda os genes e a proteômica trata das proteínas, a glicômica analisa o papel dos carboidratos, moléculas orgânicas compostas de carbono, hidrogênio e oxigênio. Esse grupo, também denominado sacarídeos, inclui os açúcares, o amido e a celulose. A parede celular representa entre 50% e 60% da biomassa dos vegetais e é rica em carboidratos complexos (os polissacarídeos celulose, hemiceluloses e pectinas), além de proteínas estruturais e lignina, polímero que lhe confere rigidez. “A forma com que os monossacarídeos, os carboidratos mais simples, se juntam e formam os polissacarídeos, moléculas maiores, presentes na parede celular das plantas não é aleatória”, afirma Buckeridge. “Ela contém informação importante sobre como a parede se estrutura e como pode ser decomposta.”
Um código é um conjunto de regras que estabelece uma correspondência entre dois mundos independentes e formados por elementos distintos: o dos signos, da informação básica, e o do significado, da informação codificada. Um terceiro elemento, os adaptadores, faz a ponte entre os dois mundos e confere um sentido ao código. “O significado de um signo pode ser um processo, uma ação ou até uma estrutura que tenha um papel biológico”, afirma Eveline. Um paralelo entre o código glicômico e o código mais conhecido da biologia, o genético, pode ser útil para entender a proposta dos pesquisadores da USP.
O DNA é composto por uma sequência de nucleotídeos, que podem ser de quatro tipos, as bases nitrogenadas adenina (A), citosina (C), guanina (G) ou timina (T), mais o monossacarídeo desoxirribose e um fosfato. Os nucleotídeos são os signos do código. Por meio da ação de enzimas, eles se juntam e ocorre a síntese (adaptador) de uma molécula maior, o próprio DNA. Os genes, que são formados pelos nucleotídeos e se encontram agrupados em longas sequências de DNA (cromossomos), representam o significado do código. Cada gene tem uma função biológica distinta e é responsável por produzir uma certa proteína. “Os nucleotídeos isolados têm propriedades completamente diferentes das exibidas pela molécula de DNA, ainda que esta seja composta por aqueles”, diz Buckeridge.
A mesma lógica governaria o funcionamento do código glicômico. Nesse caso, os signos seriam os monossacarídeos, as formas mais simples de carboidratos, como a glicose, a frutose e a galactose. Um grupo de enzimas promove a união dessas pequenas moléculas de açúcares e ocasiona a síntese (adaptador) de moléculas maiores, os polissacarídeos, que funcionam – agora vem o significado – como reserva energética (amido) ou componente estrutural da parede celular das plantas.
Há três tipos conhecidos de parede em vegetais. Cada variante é caracterizada por uma combinação distinta de três classes de polissacarídeos principais, celulose, pectinas e hemiceluloses. As distintas combinações e quantidades dessas grandes moléculas de carboidratos geram estruturas com arquiteturas particulares e, portanto, diferentes propriedades químicas e mecânicas. “A exemplo da relação entre os nucleotídeos e o DNA, os monossacarídeos são moléculas com propriedades totalmente distintas das dos polissacarídeos presentes na parede celular”, diz o botânico. Até hoje, 14 tipos de monossacarídeos foram isolados como blocos constituintes dos polissacarídeos que formam a parede de vegetais.
Etanol de segunda geração
A proposta de um código glicômico capaz de regular as características da parede celular das plantas deriva dos trabalhos em bionergia feitos pelo pesquisador nos últimos 20 anos. O botânico da USP, que publicou um primeiro esboço sobre o tema em um artigo impresso em 2014 no periódico BioEnergy Research, é um conhecido estudioso das possibilidades de obtenção do chamado etanol de segunda geração, biocombustível que seria extraído da quebra da parede celular das plantas, ou seja, do bagaço de cana-de-açúcar, do sabugo de milho ou da própria madeira.
Diferentemente dos açúcares simples – os monossacarídeos – presentes no suco da cana, que estão prontos para fermentar e se transformar em etanol, os polissacarídeos do bagaço da cana estão estocados em uma estrutura praticamente inacessível. As enzimas encarregadas de fazer a hidrólise, a quebra de polissacarídeos não fermentáveis em monossacarídeos fermentáveis por meio da adição de água, não conseguem penetrar na parede celular e fazer seu trabalho de desconstrução. “A teoria sobre o código glicômico é uma proposta muito interessante”, diz o bioquímico Edivaldo Ximenes Ferreira Filho, do laboratório de enzimologia da Universidade de Brasília (UnB). “No caso da bionergia, entender melhor como a parede celular de plantas como a cana se forma pode ser útil para aprendermos a desconstruir essa estrutura e produzir etanol de segunda geração.”
Projeto
Uso da abordagem de biologia de sistemas para desenvolver um modelo de funcionamento em plantas (nº 2011/52065-3); Modalidade Programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) e Acordo FAPESP-Microsoft Research; Pesquisador responsável Marcos Buckeridge (IB-USP); Investimento R$ 547.964,97.
Artigo científico
TAVARES, E. Q. P. e BUCKERIDGE, M. S. Do plant cell walls have a code? Plant Science. 1º nov. 2015.