No ápice da produtividade do Serviço de Desenho do Instituto Biológico, que funciona num imponente prédio rosado considerado um dos maiores expoentes do estilo art déco do país, na zona sul da capital paulista, 17 desenhistas produziam uma profusão de ilustrações de plantas, animais e suas doenças para dar visibilidade à pesquisa integrando artigos científicos, aulas e folhetos de divulgação, entre outros. “Havia uma camaradagem entre os pesquisadores, que em geral eram médicos, e os ilustradores”, conta a bióloga Márcia Rebouças, uma das autoras do Catálogo do acervo de ilustradores do Museu do Instituto Biológico, lançado em novembro. “Um dependia do outro para dar visibilidade ao seu trabalho, não havia uma percepção de que um fosse mais importante do que o outro.”
O acervo é resultado, em grande parte, do esforço de Silvana D’Agostini, contratada em 1977 como desenhista no serviço que então contava apenas com duas profissionais. O volume de trabalho vinha diminuindo e, quando as colegas se aposentaram, ela perseguiu outros rumos e se especializou em museologia. No final dos anos 1990 o Serviço de Desenho se extinguiu, quando Silvana passou à equipe do Museu do Instituto Biológico e, em seguida, ao Centro de Memória. Foi nesse contexto que começou a garimpar ilustrações em geral destinadas à lixeira e formar o conjunto que hoje conta com cerca de 2.500 desenhos de 37 ilustradores.
“A percepção desses originais como documentos históricos é recente”, explica. No passado, a maior parte era descartada depois de enviada à gráfica para compor publicações, ou acabava em pilhas de papéis sem importância na sala ou na casa de pesquisadores. Agora recuperadas e em parte expostas no livro recém-publicado, que pode ser retirado gratuitamente na própria instituição, essas obras trazem à tona a frutífera parceria entre ciência e arte. Silvana explica que, apesar do avanço da fotografia, a ilustração ainda é insubstituível pela possibilidade de ressaltar detalhes que interessam ao pesquisador, eliminando ruídos desnecessários, e de reunir em uma imagem todos os elementos que compõem uma descrição. “Muitas vezes nem é necessário legenda, tal a riqueza de detalhes.”
Silvana conta que os pesquisadores solicitavam os serviços de um dos desenhistas quando precisavam registrar alguma imagem de sua pesquisa e com frequência acompanhavam o trabalho apontando os detalhes relevantes. Era comum ilustradores terem mais afinidade com um tipo de objeto e formarem parcerias mais frequentes com algum cientista, embora pudessem variar de tema. A alemã Lilly Ebstein, por exemplo, na verdade funcionária da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), era colaboradora frequente de José Reis, que pesquisava doenças de aves no Instituto Biológico (além de profundamente empenhado em divulgação e educação científicas).
A variedade de técnicas e recursos correspondia à diversidade de objetos a serem retratados. “Usávamos aparelhos especiais para desenho como câmara clara e normógrafo, instrumentos ópticos como microscópios”, lembra Silvana, que antes de passar no concurso público estava habituada a técnicas completamente diferentes de desenho à mão livre. O material incluía nanquim, guache, lápis de cor, aquarela e pastel. “Apelávamos para a técnica mista com frequência, usando vários desses recursos para um mesmo trabalho”, conta, lembrando-se do desespero de uma das desenhistas ao pintar uma borboleta de asas iridescentes que mudavam de cor a cada vez que olhava. “Era azul, depois roxa, de repente era verde!” Por vezes as estruturas eram tão delicadas que não havia pena fina o suficiente e era preciso escurecer o papel e retirar a tinta com gilete, as antigas lâminas de barbear. “Mas só servia a Gillette preta, que depois deixou de existir; a de inox não funcionava.”
Além das publicações científicas, as ilustrações eram essenciais para a comunicação mais ampla que integra a razão de ser do Instituto Biológico, fundado em 1927 graças ao sucesso de uma comissão criada para elucidar e combater a praga da broca-do-café, que deixava ocos os frutos e ameaçava a safra (e a atividade econômica) paulista. Trata-se de um minúsculo besouro cuja larva entra na cereja do café por um furinho e come todo o interior do fruto, deixando a casca oca. Originária da África, a praga não tinha predador natural no Brasil. Numa ação precursora do controle biológico, termo ainda não usado na época, um funcionário do instituto foi a Uganda buscar a vespa predadora, para criar aqui e distribuir nos cafezais.
Mas nada disso surtiria efeito sem informar a população rural e os trabalhadores das plantações, que muitas vezes deixavam frutos contaminados no chão, onde as larvas se desenvolviam e acabavam infectando outras plantas. “Havia filmes projetados dentro de vagões de trem”, conta a bióloga Márcia Rebouças, que há 56 anos entrou no Biológico como estagiária e depois foi técnica de laboratório, pesquisadora, diretora do museu e fundadora do Centro de Memória. “O trem parava perto das fazendas e os proprietários e funcionários iam assistir aos filmes.” As publicações distribuídas incluíam as minuciosas ilustrações, mas também recorriam a humor e formas didáticas de expor as questões, como no livreto História de um bichinho malvado, feito para ser distribuído em escolas.
Hoje o acervo mantido por Silvana e Márcia pode ser consultado e vale tanto como arquivo histórico como ainda pode ser referência para ilustrar doenças de laranjais (outra praga enfrentada pela pesquisa ali realizada) e uma variedade de outros fins. Embora os departamentos de pesquisa não costumem mais ter ilustradores no corpo fixo, a atividade se mantém importante. “Usamos ilustrações com frequência, principalmente nas publicações que descrevem espécies novas”, conta a botânica Lúcia Lohmann, da USP. Mas ela explica que os desenhistas são contratados por trabalho e já não têm segurança de quando serão solicitados. Além de ser mais difícil viver apenas de ilustração científica, é provável que a relação esporádica deixe de lado a cumplicidade entre os profissionais ressaltada por Silvana. “Não queremos que a ilustração seja vista como acessória, mas como ferramenta fundamental e uma colaboração entre artista e cientista”, afirma.
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