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Lei da Biodiversidade

Impasse burocrático desacelera pesquisas com material genético

Falta de regulamentação de nova legislação da biodiversidade dificulta trabalhos em instituições científicas e empresas

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Eduardo Cesar Bromélia da Mata Atlântica, bioma que interessa a empresas que produzem fármacosEduardo Cesar

Cientistas e empresas que fazem pesquisa com material genético de plantas, animais e microrganismos reclamam que um impasse burocrático criou um obstáculo inusitado para seu trabalho, impedindo a remessa de amostras para estudo no exterior e a publicação de resultados científicos baseados nesse material. Ocorre que a nova Lei da Biodiversidade (nº 13.123) entrou em vigor em novembro de 2015 sem que fosse regulamentada. Isso criou um vazio jurídico, impedindo que órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) apreciem pedidos dos pesquisadores, como faziam antes. Novas autorizações para iniciar pesquisas também estão suspensas.

Em janeiro, Luís Fábio Silveira, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), recebeu um e-mail do Ibama que negava uma solicitação do pesquisador para enviar amostras de tecidos a um laboratório nos Estados Unidos, onde seria feito o sequenciamento genético do material biológico de aves. Como justificativa, o Ibama explicou estar “sem amparo legal no que diz respeito aos procedimentos de emissão de autorização de exploração para material biológico com finalidade de pesquisa”. “Diante do exposto, até que seja publicado o decreto regulamentador, estamos impossibilitados de emitir qualquer autorização de exportação que tenha como finalidade a pesquisa científica”, informou o e-mail.

Silveira afirma que o entrave pode atrasar pesquisas que precisam dos resultados dos sequenciamentos para serem concluídas, prejudicando também alunos bolsistas envolvidos nesses estudos. “Interromperam, do dia para a noite, toda a nossa pesquisa. É inadmissível que não se tenha pensado em regras para a transição de uma legislação para outra”, critica. O pesquisador diz ainda que alunos que estão no exterior com bolsa do programa Ciência sem Fronteiras também dependem de amostras para a conclusão de suas teses. “Eles não têm ideia de quando isso vai ocorrer.”

Maria Izabel Gomes, responsável pela Coordenação de Geração de Conhecimentos dos Recursos Faunísticos e Pesqueiros do Ibama, reconhece que a situação atrapalha o trabalho de vários pesquisadores no país. “Sabemos que não podemos parar a ciência brasileira, mas por enquanto o procedimento oficial é o de não emitir autorizações”, afirma. De acordo com ela, o Ibama enviou três ofícios ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) perguntando o que fazer enquanto a regulamentação da lei não avança. “Ainda não tivemos nenhuma resposta”, diz Maria Izabel.

A química de produtos naturais desperta o interesse de empresas...

Eduardo Cesar Frutos como o cupuaçu são estudados pela indústria de cosméticosEduardo Cesar

O problema teve início após a sanção da nova legislação pelo governo federal, em maio do ano passado. Havia um prazo de 180 dias para a lei entrar em vigor. Nesse período, a Casa Civil da Presidência da República preparou uma minuta do decreto de regulamentação a ser publicado em novembro, quando a lei começaria a vigorar.

O texto do decreto, contudo, não agradou setores que se envolveram na elaboração da lei. Algumas entidades, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), manifestaram-se contrárias à forma como a regulamentação foi apresentada. Uma das preocupações é com a parte que obriga o pesquisador brasileiro a fazer um cadastro para usar bancos de dados mundiais, públicos, de sequência de DNAs e de proteínas. A necessidade desse cadastro não constava no texto da lei, de acordo com a SBPC.

“A lei busca simplificar a pesquisa. No entanto, da forma como querem regulamentá-la, as medidas não atendem às necessidades reais do país”, diz Helena Nader, presidente da instituição. “Aquele decreto de regulamentação não era bom para ninguém, não refletia o debate efetuado com a sociedade civil em diferentes ocasiões e não atendia às necessidades da ciência”, diz Helena, sugerindo que o MMA procurou criar mecanismos de controle que não estavam na lei.

Outras entidades, como o Instituto Socioambiental, alegaram que a elaboração do decreto de regulamentação foi pouco participativa, excluindo questões de interesse dos agricultores familiares e das comunidades tradicionais e indígenas. A Casa Civil voltou atrás e decidiu adiar a publicação do decreto. O problema é que ao entrar em vigor no dia 17 de novembro, a lei revogou uma medida provisória de 2001, que regulava o acesso ao patrimônio genético para fins de pesquisa no país. Sem a regulamentação e com o antigo arcabouço legal revogado, criou-se uma situação incomum, em que instituições de pesquisa e empresas ficaram sem amparo legal para obter autorizações.

Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) esbarram nesse mesmo obstáculo. “Estamos em um limbo jurídico”, diz Manuela da Silva, assessora da vice-presidência de Pesquisa e Laboratórios de Referência da Fiocruz. Segundo ela, além de não terem permissão para enviar amostras ao exterior, os pesquisadores sentem-se inseguros em publicar e divulgar resultados de pesquisas baseados em recursos genéticos brasileiros. Isso porque os resultados finais ou parciais só podem ser divulgados em meios científicos ou de comunicação após o cadastro das pesquisas – o que, no momento, não é possível, considerando que ainda não há um sistema de cadastro eletrônico disponível.

Manuela alerta que esse percalço tem afetado até mesmo pesquisas sobre o vírus zika, em um momento em que pesquisadores brasileiros participam de consórcios internacionais para investigar a doença. “Sem a regulamentação da lei, torna-se ilegal a remessa para o exterior de amostras biológicas humanas, tais como sangue ou placenta contaminados com o vírus, que é patrimônio genético nacional, e que será isolado por instituições estrangeiras”, explica.

que estabelecem parcerias com universidades

Eduardo Cesar Pesquisas que dependem do sequenciamento genético para avançar, como as de pragas que atacam a lavoura, podem ser afetadas pelo impasseEduardo Cesar

Autoridades dos Estados Unidos e da Organização das Nações Unidas (ONU) declararam recentemente que o Brasil não está compartilhando amostras e dados suficientes relacionados ao zika. “Até que a lei seja implementada, somos legalmente proibidos de enviar amostras para fora”, disse Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, em reportagem publicada pelo portal G1 no dia 4 de fevereiro. Assim como o Ibama, a Fiocruz também encaminhou um ofício ao MMA, cobrando uma posição. A instituição ainda aguarda uma resposta. Embora não tenha amparo legal, a fundação esforça-se para continuar colaborando com as entidades internacionais. “Trata-se de uma questão de saúde pública”, afirma Manuela.

Representantes do setor industrial relatam dificuldades parecidas. “Empresas que produzem fármacos e cosméticos aguardam uma definição. Sem as autorizações, ficam impossibilitadas de realizar pesquisas com produtos naturais”, diz Elisa Romano, especialista em política e indústria da Confederação Nacional da Indústria (CNI). “Após a nova lei ser sancionada, algumas companhias trataram de solicitar acesso ao patrimônio genético enquanto ainda estava valendo a legislação anterior, de 2001. Fizeram isso pois já temiam que a regulamentação do novo marco legal fosse atrasar.”

“Estamos de mãos atadas para novos projetos e ilegais para a realização das pesquisas em andamento, já que a licença do CNPq que tínhamos anteriormente não procede mais”, sublinha Vanderlan Bolzani, pesquisadora do Instituto de Química de Araraquara, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e vice-coordenadora do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. Boa parte do trabalho do centro, diz ela, baseia-se na química de produtos naturais que despertam o interesse de empresas para estabelecer parcerias com a universidade.

Para o diretor do Departamento de Patrimônio Genético do MMA, Rafael Marques, os casos citados nesta reportagem configuram envio de amostras para a prestação de serviços no exterior, em que a responsabilidade sobre o material é de quem extrai as amostras no Brasil. “Nesses casos entendemos que nem a pesquisa nem o envio deveriam ser paralisados”, afirma Marques. Mas ele reconhece que, sem a regulamentação, o grau de indefinição atinge não apenas pesquisadores, mas o próprio Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), ligado ao ministério.

“A legislação anterior dava competência ao CGEN e a outros órgãos. Não há o que falar sobre órgãos responsáveis hoje. Precisamos ter o decreto para que tenhamos essas competências bem definidas”, explica. Nos próximos dias será feita a divulgação de uma nova minuta do decreto de regulamentação, que ficará aberta para consulta pública. “Isso permitirá que outros entendimentos sobre a minuta possam ser agregados e que finalmente possamos publicar um decreto aprimorado”, diz Marques.

 

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