O vírus zika pode ter entrado no Brasil em meados de 2013, quase um ano e meio antes de os primeiros casos começarem a ser registrados no país. Até então, o Ministério da Saúde estimava que o vírus havia aportado em território nacional entre 2014 e 2015, o mesmo período em que se começou a detectar um aumento nos casos de microcefalia — um tipo de malformação congênita em que os bebês nascem com a cabeça menor que o esperado para o tempo de gestação —, sobretudo na região Nordeste. Em um estudo publicado nesta quinta-feira (24/3) na revista Science, um grupo internacional de pesquisadores, do qual participam brasileiros dos institutos Evandro Chagas e Adolfo Lutz e da Fundação Oswaldo Cruz, sugere que o vírus, até pouco tempo atrás considerado inofensivo, entrou no Brasil em único evento. Uma vez aqui, encontrou condições favoráveis para se espalhar rapidamente, segundo os pesquisadores. A disseminação no país possivelmente começou em algum momento entre os meses de maio e dezembro de 2013, período que coincide com a realização de eventos esportivos de grande porte, como a Copa das Confederações, e o aumento no trânsito de pessoas pelo país.
As conclusões baseiam-se em análises de dados genéticos do vírus e epidemiológicos de pessoas infectadas por ele. Ao combiná-los com informações geográficas e temporais, os pesquisadores recuperaram as origens e os possíveis padrões de dispersão do vírus. No estudo, eles extraíram amostras de zika de sete indivíduos de várias regiões do país, todas colhidas em diferentes meses de 2015. Em seguida, sequenciaram o material genético do vírus.
A partir daí, para estimar o período em que o microrganismo entrou no Brasil, os pesquisadores construíram uma árvore filogenética com todos os genomas disponíveis em circulação nas Américas. “Em conjunto com uma técnica chamada de relógio molecular, conseguimos reconstruir no tempo como as relações entre esses genomas se estabeleceram”, explica o virologista Renato Pereira de Souza, do Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo, e um dos autores do estudo. Essa técnica, segundo ele, possibilita calcular o momento em que dois vírus próximos divergiram entre si. “Esses dados servem como indicadores do tempo em que existia um ancestral comum entre essas linhagens. Dessa forma, foi possível calcular o momento provável que o zika entrou no país.” O grupo, coordenado pelo biomédico português Nuno Faria, do Departamento de Zoologia da Universidade de Oxford, já havia usado essa mesma técnica em 2014 para identificar o ponto a partir do qual o HIV — vírus causador da Aids — se disseminou na África (ver Pesquisa FAPESP On-line).
O sequenciamento do material genético do zika revelou um genoma com cerca de 10,7 mil nucleotídeos compondo uma fita simples de ácido ribonucleico (RNA) com genes capazes de expressar dez diferentes proteínas. As análises filogenéticas, por sua vez, sugerem que a variedade que circula no Brasil e em outros países da América do Sul é a mesma originária da Polinésia Francesa, que registrou um surto de infecção por zika em novembro de 2013 que se estendeu até meados de 2014. Os resultados reiteram algo que há algum tempo alguns pesquisadores já suspeitavam. O vírus deixou as florestas de Uganda, na África, por volta de 1945, e circulou pelo planeta nas décadas seguintes, passando pela Ásia até chegar à Polinésia Francesa em 2013, de onde alcançou o Brasil (ver Pesquisa FAPESP nº 240).
Antes desse estudo, suspeitava-se de que o zika havia sido introduzido no país por indivíduos infectados, sobretudo da África, que vieram ao Brasil para dois grandes eventos esportivos em 2014: a Copa do Mundo de futebol e uma competição internacional de canoagem, no Rio de Janeiro — este último teve a participação de atletas da Polinésia Francesa. Os resultados apresentados agora pela equipe de Faria, porém, reforçam a ideia de que o vírus zika, na verdade, deve ter entrado no Brasil durante a Copa das Confederações — evento-teste da Copa do Mundo —, realizada entre os dias 15 e 30 de junho de 2013.
Os pesquisadores chegaram a essa conclusão ao confrontar os resultados da análise genética do vírus com informações de voos provenientes de países nos quais houve surtos de infecção por zika entre 2012 e 2014. A partir de fins de 2012, aumentou o número de pessoas vindas desses lugares desembarcando no Brasil: a média era de 3.775 passageiros por mês no início de 2013 e de 5.754 em 2014. “O vírus pode ter permanecido indetectável por cerca de um ano até os primeiros casos começarem a ser reportados, em maio de 2015”, diz Nuno Faria. Ele e Souza sugerem que o fato de a maioria das infecções não provocar sintomas pode ter contribuído para que o zika se espalhasse pelo país quase sem ser percebido. Além dos casos assintomáticos, há outra complicação. Nas vezes em que surgem sintomas estes são muito parecidos com os provocados pelos vírus da dengue e da febre chikungunya, o que pode ter dificultado e até atrasado a identificação dos primeiros casos de zika.
Os dados, segundo Faria, são importantes e “podem servir de base para outros estudos com o objetivo de entender melhor a relação entre o vírus e a microcefalia e outras malformações congênitas”. No entanto, ele diz, ainda são insuficientes para determinar por onde exatamente o vírus entrou no Brasil. O Ministério da Saúde estima que entre 443 mil e 1,3 milhão de brasileiros já podem ter tido zika, sobretudo na Bahia, o estado com maior número de casos registrados. De 2000 a 2014, o ministério registrou a média anual de 164 casos de microcefalia. De outubro de 2015 a fevereiro deste ano, o número de casos confirmados alcançou 583.
Artigos científicos
FARIA, N. R. et al. Zika virus in the Americas: early epidemiological and genetic findings. Science. v. 351, n. 6280, p. 1-9. 25 mar. 2016.
SALVADOR, F. S. Entry routes for Zika virus in Brazil after 2014 world cup: new possibilities. Travel Medicine Infectious Disease. fev. 2014.
MUSSO, D. Zika Virus Transmission from French Polynesia to Brazil. Emerging Infectious Diseases. out. 2015.