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Economia

Eficiência sobre trilhos

Companhia Paulista de Estradas de Ferro foi uma exceção no setor ferroviário brasileiro

Acima, a estação de Rio Claro, uma das mais importantes da linha que liga Jundiaí ao noroeste paulista

Carlheinz Hahmann – coleção Eduardo J. J. Coelho Acima, a estação de Rio Claro, uma das mais importantes da linha que liga Jundiaí ao noroeste paulistaCarlheinz Hahmann – coleção Eduardo J. J. Coelho

Nos cerca de 100 anos em que os trens foram o principal meio de transporte do Brasil, o país se transformou rapidamente. De 1854 até meados do século passado, as estradas de ferro conectaram regiões até então isoladas, mudaram as feições das cidades, expandiram a economia cafeeira, colaboraram para a industrialização e viram nascer as primeiras organizações sindicais. Mesmo assim, a história das ferrovias brasileiras foi de crises, diz o economista Guilherme Grandi, professor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). A exceção, em termos de eficiência, foi a Companhia Paulista de Estradas de Ferro.

Um motivo dos contínuos percalços do transporte ferroviário no Brasil é que, desde o início, o setor ferroviário precisou da interação constante, mas nem sempre harmoniosa, entre o capital privado – estrangeiro e nacional – e o setor público. Poucos investimentos se revelaram rentáveis e aos poucos os governos estaduais e federal tiveram de tomar o controle de ferrovias abandonadas pela iniciativa privada. Foi também um mercado quase sempre subordinado aos destinos dos produtos que transportava, como o café em São Paulo e a borracha no Norte, e por isso dependente dos destinos desses outros setores. Essas características levam o também economista Ivanil Nunes, pós-doutorando na FEA-USP que estudou esse tema, a definir a história das ferrovias brasileiras como um “laboratório aberto para entender as relações entre o Estado e as elites no Brasil”.

No livro Estado e capital ferroviário em São Paulo (Alameda Editorial), que se originou da pesquisa de doutorado de mesmo título, realizada com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Grandi analisa a última empresa ferroviária privada do país antes das privatizações dos anos 1990. A Companhia Paulista de Estradas de Ferro, fundada em 1868, ligava Jundiaí a cidades como Campinas e Rio Claro. Era caso único de sucesso empresarial no sistema ferroviário, com superávits operacionais, investimentos na formação de pessoal, capital aberto, aquisição de concorrentes e uma imagem positiva perante o público. Mesmo assim, a empresa sucumbiu às mudanças sociopolíticas de um Brasil que se industrializava e urbanizava rapidamente entre as décadas de 1950 e 1960. Com a expansão das rodovias e a pressão salarial dos sindicatos, o negócio da ferrovia começou a perder a viabilidade. Ela foi adquirida pelo governo paulista em 1961.

Pátio da estação da Companhia Paulista em Campinas na década de 1940

década de 1930, Acervo Museu da Companhia PaulistaPátio da estação da Companhia Paulista em Campinas na década de 1940década de 1930, Acervo Museu da Companhia Paulista

“Em certo sentido, pode-se dizer que esse foi o momento em que acabou a era ferroviária no Brasil, se entendermos que foi quando o setor privado nacional saiu completamente desse mercado”, pondera Grandi. É fácil determinar quando a chamada “era ferroviária” começou: em 1854, com a inauguração do primeiro trecho de estrada de ferro pelo Barão de Mauá (o empresário Irineu Evangelista de Sousa), com 15 quilômetros, ligando o porto de Mauá à localidade de Fragoso, na baixada Fluminense. É difícil, porém, definir quando essa era, de fato, terminou.

A expansão da malha chegou ao fim na década de 1940, a estatização progressiva do sistema prolongou-se pelas duas décadas seguintes, e ao longo dos anos 1980 o transporte de passageiros perdeu relevância. Por outro lado, aponta Ivanil Nunes, o peso total da carga transportada por trens no Brasil não chegou a cair, graças a um processo de racionalização. Expandiu-se enquanto se enxugava ainda mais a rede de trilhos e a estrutura administrativa, passando de 30 bilhões de toneladas-quilômetros úteis (tku, medida correspondente ao transporte de 1 tonelada útil – isto é, descontado todo peso que não seja o da mercadoria – pela distância de 1 quilômetro) em 1970 para 120 bilhões de tku em 1990. No mesmo período, as rodovias passaram de 124 bilhões para 313 bilhões de tku. O sistema ferroviário brasileiro era rentável no momento em que as duas grandes estatais do setor, a Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA, fundada em 1957) e a Ferrovia Paulista S/A (Fepasa, fundada em 1971), foram privatizadas e arrendadas a várias companhias, ao longo da década de 1990.

Desde a iniciativa pioneira do Barão de Mauá, no século XIX, a expansão ferroviária era essencialmente de capital privado, estrangeiro (principalmente inglês) e nacional, servindo à necessidade de escoar a produção agrícola de uma economia voltada sobretudo à exportação. Mas a presença do Estado era muito forte, principalmente por meio da chamada garantia de juros, pela qual os empresários poderiam estar certos de re-cuperar uma determinada margem de seu capital, mesmo que o investimento se revelasse menos rentável. As empresas deveriam reembolsar o dinheiro a mais que receberam do governo quando o negócio se mostrasse pujante, mas a única empresa a devolver a diferença dos juros foi a Companhia Paulista, em 1877.

Trem de carga, típico da década de 1930

coleção Rafael Prudente CorrêaTrem de carga, típico da década de 1930coleção Rafael Prudente Corrêa

Elite do café
Vinculado às oligarquias agroexportadoras, o setor ferroviário gozava de um grande poder de influência sobre os governos ao longo do Império e da Primeira República (1889-1930). Segundo Grandi, a Companhia Paulista era particularmente influente, sobretudo nesse período, dominada diretamente pela elite cafeeira, principalmente paulista. A perda dessa influência, com a mudança no bloco do poder ao longo do século XX, foi determinante para sua derrocada. A oligarquia cafeeira à qual a empresa estava vinculada perdeu parte de seu poder, levando consigo os interesses da ferrovia. Consequentemente, outros problemas ganharam relevo, como a estrutura tarifária, que dava excessiva importância ao peso transportado. Carregar mercadorias volumosas, mas leves, como o algodão, era pouco rentável, assim como a execução de alguns serviços obrigatórios, como o transporte de mudanças e correios.

Outra dificuldade da empresa veio do setor trabalhista. Ferroviários das empresas estatizadas vizinhas, como a Sorocabana e a Noroeste, recebiam salários maiores do que os da empresa privada. Em tempos de grande mobilização social, uma greve prolongada em 1961 revelou que a saúde financeira da empresa não era tão forte quanto parecia. Havia dívidas acumuladas que comprometiam os números operacionais positivos, constantes até 1959, dois anos antes da estatização. A perda de relevância das ferrovias na matriz de transporte brasileira tem diversas causas, dentre elas o crescimento da importância do transporte rodoviário e o modelo de cálculo das tarifas. O serviço de passageiros jamais foi rentável e acabou praticamente extinto com a racionalização operacional das linhas, principalmente no período da RFFSA e da Fepasa.

Frequentemente o Plano de Metas do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961) é citado como fator de aceleração do modelo rodoviário em detrimento do ferroviário. Mas os pesquisadores, embora reconheçam o papel de Juscelino, também consideram essa responsabilização exagerada. “Houve em vários países, mesmo na Europa e nos Estados Unidos, a redução de malhas ferroviárias, até para fins de aumento da rentabilidade”, afirma o historiador Eduardo Romero de Oliveira, da Faculdade de Turismo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus experimental de Rosana. “Estradas de ferro criadas no século XIX, quando não havia outro meio de transporte, ficaram obsoletas com o aumento de novos meios de transporte de passageiros, como automóvel e avião.”

Apesar dos incentivos ao transporte rodoviário entre as décadas de 1950 e 1970, que incluíram a atração de fabricantes de veículos multinacionais, Oliveira defende que o diagnóstico segundo o qual esses estímulos seriam causadores da derrocada das ferrovias “é uma avaliação posterior, feita a partir dos anos 1970”. Segundo Grandi, nos Planos Nacionais de Viação, formulados ao longo dos anos 1930 e 1950, as ferrovias foram gradualmente perdendo importância, mas sempre estiveram presentes. A escolha consciente por enfatizar as estradas de rodagem teria sido apenas um elemento entre outros na transição do modelo de transportes brasileiro.

Livro
GRANDI, G. Estado e capital ferroviário em São Paulo. São Paulo: Alameda, 2013, 326 p.

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