Podcast: Oswaldo Truzzi
No final do século XIX, a Sociedade Promotora da Imigração – criada por fazendeiros do interior paulista com a finalidade de fomentar a chegada de imigrantes para atuar no cultivo de café – e o governo de São Paulo fizeram acordos com o governo italiano para trazer pessoas que substituíssem a mão de obra escrava na cafeicultura. Havia interesse da Itália em aliviar as próprias pressões sociais por meio da emigração. Principalmente nas zonas rurais, o país enfrentava uma crise de desemprego por causa do processo de industrialização. Em 1886 a população de São Paulo, segundo dados compilados pelo Núcleo de Estudos da População da Universidade Estadual de Campinas (Nepo-Unicamp), era de 1,2 milhão. Os imigrantes representavam 4,74% desse total. A maioria era de italianos, com 13.490 (37%), espanhóis 9.853 (27%) e alemães 4.838 (13%). Dos 4,1 milhões de estrangeiros que entraram no Brasil entre 1886 e 1934, 56% se estabeleceram no estado de São Paulo, também com os italianos em maior número.
Em 1902, o governo da Itália cortou as subvenções das passagens aos imigrantes após concluir que as condições de trabalho nas fazendas de café brasileiras não eram boas. Mesmo assim, segundo o censo de 1920, havia 389 mil italianos no estado, dos quais 308 mil fora da capital. Os italianos representavam então 48% dos estrangeiros no estado, seguidos dos espanhóis (21%) e dos portugueses (20%). A população estadual era de 4.592.188, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do mesmo ano. Ainda segundo o IBGE, entre 1870 e 1920, os italianos corresponderam a 42% do total de imigrantes no país, totalizando 1,4 milhão de pessoas.
Nas fazendas, os italianos trabalhavam lado a lado com imigrantes de outros países – como Portugal e Espanha – e também com ex-escravos e seus descendentes que permaneceram nas áreas rurais após a libertação. Os imigrantes procuravam, logo de início, diferenciar-se da população de origem negra, identificada com o trabalho escravo. E o contato dos italianos com outras nacionalidades e etnias foi um dos impulsos para vir à tona uma identidade comum – uma italianidade –, já que no Brasil não eram identificados pelas suas origens regionais. Em vez de calabreses, romanos, napolitanos ou vênetos, eram chamados de italianos.
Os estudos de Truzzi são os primeiros a revelar um panorama de todo o interior paulista, que recebeu 70% dos imigrantes italianos para o Brasil”, afirma Angelo Trento, professor italiano aposentado de história da América Latina na Universidade Oriental de Nápoles, na Itália. Pesquisas anteriores sobre a imigração italiana já abordaram os grandes centros urbanos, as áreas rurais e cidades do interior. Truzzi consultou jornais, registros civis, câmaras municipais, acervos de associações comerciais e museus de imigrantes das cidades de São Carlos, Araraquara, Catanduva, Bauru, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e Franca, além de ter recorrido a estudos realizados por outros pesquisadores sobre Jaú, Limeira, Jaboticabal, Rio Claro, Descalvado, Bebedouro e Pedrinhas.
Truzzi propõe que esses imigrantes construíram o sentimento de pertencimento a uma nação de origem antes mesmo do que seus conterrâneos na Itália. A unificação italiana ocorreu pouco antes da grande imigração para o Brasil. Até então a Itália era composta por vários reinos, com sistemas monetários e políticos próprios. O reino do Piemonte-Sardenha, mais rico e industrializado e com interesse em ampliar mercado e influência, liderou a guerra pela unificação italiana. Apesar de o reino da Itália ter nascido em 1861, o processo só se concluiu após os conflitos que resultaram na anexação de Veneza (1866), Roma (1870) e, bem depois, Trento e Trieste (1918). Truzzi defende que a resistência de certas partes do território da península em tomar parte do projeto de nação teria postergado a construção do sentimento de italianidade na Itália, enquanto no Brasil esse processo teria se iniciado logo nos primeiros anos do século XX.
A diversidade cultural italiana se refletiu no Brasil. Segundo a historiadora Rosane Siqueira Teixeira, pós-doutora em ciências sociais pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, nas primeiras décadas da imigração somente uma minoria letrada falava a língua vernácula, idioma nativo de um país. Independentemente disso, o sentimento de pertencer a uma origem comum foi mais forte. “Estar em um lugar cheio de ‘outros’ propicia a construção de um ‘nós’”, afirma o historiador João Fábio Bertonha, professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá (PR), que concorda com o argumento de que o sentimento de pertencer a uma nação italiana nasceu no Brasil, com a ressalva de que havia também um sentimento nacional em plena construção na própria Itália. Ele considera que já havia uma identidade protonacional entre esses imigrantes, estimulada pelo processo de unificação.
Após o contato com populações de diferentes nacionalidades nas plantações de café, Truzzi explica que parte dos italianos migrou para as cidades após a crise agrária de 1930 – quando o aumento da produção de café coincidiu com uma redução das exportações – e a proximidade física estimulou a união entre os imigrantes, colaborando com o processo de construção do sentimento de italianidade. Nas cidades, os italianos já atuavam em ofícios como os de ferreiro, mecânico, maquinista, carpinteiro, serralheiro, pedreiro, latoeiro e funileiro. Imigrantes de várias origens praticamente monopolizaram tais funções, favorecidos pela fidelidade da clientela conterrânea e pelo preconceito em relação à população brasileira de baixa renda, formada por antigos escravos e moradores da área rural, que eram vistos como despreparados. Truzzi afirma que os estrangeiros e seus descendentes ocuparam o vazio decorrente de uma estrutura social anterior polarizada entre senhores e escravos. “Como a economia estava em crescimento, havia oportunidades para os imigrantes se inserirem sem ter de disputar espaço”, conta o pesquisador.
A afirmação como grupo se manifestou com a criação de associações, fossem as mutualistas, que ofereciam serviços de atendimento à saúde, ou as esportivas e culturais. Paralelamente, surgiu uma imprensa étnica, que publicou periódicos em italiano a partir da década de 1880. Esses jornais veiculavam notícias da Itália e assuntos de interesse dos imigrantes no Brasil, atuando como porta-vozes dos anseios da comunidade, entre eles melhores condições de trabalho nas fazendas. Outro fator citado por Truzzi foi a rede de representantes consulares que, por iniciativa do governo italiano, foi instalada em cidades médias do interior paulista a partir dos primeiros anos do século XX. Tais representantes formavam um elo com o vice-consulado de Campinas, que por sua vez se dirigia ao consulado na capital e tal rede foi criada porque mais de 3/4 dos italianos residiam em áreas do interior. “Os periódicos em italiano e as escolas fundadas no Brasil a partir das primeiras décadas do século XX, que adotavam o italiano vernáculo, tiveram papel fundamental para enfraquecer os vínculos regionalistas e unificar a língua italiana. Quando Benito Mussolini assumiu o poder, em 1922, despendeu um enorme esforço para efetivar a língua italiana dentro e fora da Itália”, diz Rosana.
A partir de 1937, com o advento do Estado Novo, Getúlio Vargas quis incentivar o nacionalismo brasileiro, inibindo a existência de associações de caráter étnico. Vargas estimulou a criação de sindicatos e associações de classe, que promoviam a convivência entre trabalhadores, independentemente de sua procedência. Por constatarem que a exaltação da identidade italiana não caberia no novo contexto político-econômico brasileiro, os imigrantes e descendentes teriam deixado de enfatizar os laços com a antiga pátria. Por meio de pesquisas nas câmaras municipais das cidades estudadas, Truzzi observou a presença, a partir de 1948, de italianos e descendentes no cargo de vereador, o que sugere um processo de ascensão social e integração à sociedade brasileira.
Segundo Angelo Trento, pesquisas recentes indicam que a descoberta da italianidade no estrangeiro se deu de forma diferente em outros países da América. Nos Estados Unidos, por exemplo, o governo se esforçava para americanizar os imigrantes. Por conta disso, a italianidade foi construída como forma de defesa, e os italianos permaneceram mais tempo fechados em suas comunidades.
Com alguns grupos de imigrantes, como os japoneses, ocorreu o contrário dos italianos. Em relação ao sentimento de pertencimento à nação, o governo japonês cultivou a identidade nacional entre os cidadãos desde o século XVII, afirma Shozo Motoyama, docente no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). O nacionalismo foi revigorado com o advento do período Meiji em 1868, quando os governantes forjaram o mito da origem divina do monarca. Com a vitória nipônica na Guerra Sino-japonesa (1894-1895) e na Guerra Russo-japonesa (1904-1905), essas convicções foram reforçadas, e com isso os imigrantes vindos para o Brasil desde os primeiros anos do século XX tinham forte identificação nacional. No entanto, a distância e a dificuldade de comunicação com o país de origem motivaram uma abertura à cultura local, permitindo a formação de uma cultura japonesa mais flexível e híbrida no Brasil.
Livro
TRUZZI, O. Italianidade no interior paulista – Percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Unesp, 2016, 138 p.