Escolher o que comprar pode se tornar mais complicado do que examinar o rótulo dos produtos em busca de informações como certificação ambiental, presença de componentes alergênicos ou de ingredientes artificiais. Pensando nisso, os economistas ambientais Daniel Moran, da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia (NTNU), e Keiichiro Kanemoto, da Universidade Shinshu, no Japão, desenvolveram um mapa que relaciona os bens consumidos em um país ao impacto que sua produção causa no risco de extinção de espécies animais e vegetais em outros lugares do mundo. O trabalho foi apresentado em um artigo publicado esta semana (4/1) na revista Nature Ecology & Evolution. “Se as empresas fornecerem informações a respeito do impacto sobre espécies e cadeias de abastecimento em seus produtos, os consumidores poderão escolher bens mais favoráveis à biodiversidade”, sugere Kanemoto.
O estudo combina mapas disponíveis da distribuição de espécies e atribui os impactos sofridos por cada uma à indústria. A partir daí, liga a produção aos consumidores finais, criando uma rede internacional (clique aqui para ver o mapa). Dois animais amazônicos são apresentados como exemplo: o macaco-aranha-preto (Ateles paniscus) e o sapo Atelopus spumarius, ambos considerados vulneráveis na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas publicada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês). Para cada uma dessas espécies, o trabalho atribui por volta de 2% da ameaça a bens consumidos nos Estados Unidos, por meio de desmatamento e do avanço da agricultura.
Parece pouco, mas ao incluir mais espécies e dados na análise, os pesquisadores esperam que seja possível detectar níveis mais significativos de ameaça. “Em estudo anterior demonstramos que o comércio internacional está por trás de um terço das ameaças à biodiversidade”, diz o pesquisador japonês. “A contribuição deste artigo é visualizar no mapa o impacto de nosso consumo sobre as espécies.”
Outra particularidade revelada para o Brasil é que os maiores impactos desencadeados pelo comércio com os Estados Unidos não estão na floresta amazônica, mas nos rios da bacia do Amazonas (possível efeito da construção de barragens para geração de eletricidade) e no domínio do Cerrado, onde muito do ecossistema foi substituído por monoculturas e pasto. “Os mapas deixam claro que o Cerrado é hoje um hotspot de consumo global”, comenta o engenheiro florestal Fabio Scarano, pesquisador do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor executivo da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS). “A rápida conversão do Cerrado em áreas de produção agrícola, especialmente voltada para commodities de exportação, deve ao menos em parte explicar esse padrão”, diz. Segundo Scarano, a hipótese de que as demandas do comércio internacional podem ser vetores tão ou mais importantes de degradação ambiental e extinção de espécies que os vetores locais é importante e pouco abordada na literatura científica de viés mais conservacionista.
Para o biólogo norte-americano William Laurance, da Universidade James Cook, na Austrália, o artigo apresenta “uma análise interessante e com potencial para ajudar a identificar as pressões do comércio internacional que causam perda de biodiversidade no planeta”. Colaborador de longa data do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF) do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Laurance é um conhecedor das agressões que a floresta amazônica vem sofrendo. O pesquisador, que também está envolvido em organizações internacionais que promovem pesquisa e comunicação voltadas para políticas de proteção à biodiversidade, ressalta que há um interesse crescente no mundo em unir aspectos econômicos e ambientais.
Laurance, porém, aponta limitações no trabalho, que considera inerentes a um estudo inovador. Uma delas é se concentrar em efeitos diretos do comércio, o que explicaria em parte o pequeno impacto norte-americano detectado para a Amazônia. “Uma análise que fiz há alguns anos, publicada em 2007 na Science, mostrou que subsídios do governo dos Estados Unidos para a produção de biocombustível à base de milho levaram a uma redução da produção norte-americana de soja, o que por sua vez causou um aumento mundial nos preços do produto e um grande pico no desmatamento da Amazônia para cultivo do grão.” Ele ressalta, ainda, o impacto invisível de atividades ilegais, como caça e desmatamento. Para Laurance, a iniciativa de mapear os impactos do comércio é promissora e pode ser usada em esforços de conservação.
Os autores do artigo recém-publicado pretendem ampliar a ferramenta. “Teoricamente podemos gerar essas conexões para 15 mil produtos em 187 países”, afirmou Kanemoto à Pesquisa FAPESP. “Precisamos apenas de tempo computacional e capacidade de armazenamento.” O pesquisador japonês vê um potencial real de seu trabalho para qualificar os produtos, levando em conta uma crescente preocupação mundial em minimizar o impacto da atividade humana. “Esperamos que as companhias comparem nossos mapas e reconsiderem suas cadeias de abastecimento.” Ele e o coautor Daniel Moran sugerem que repensar o comércio internacional buscando rotas menos danosas pode ser tão importante quanto reconhecer o impacto global do consumo. Estudos anteriores indicaram que boa parte dos recursos financeiros destinados à conservação são oriundos de países ricos e aplicados neles próprios, e não em focos de biodiversidade que seu alto consumo pode afetar, talvez do outro lado do mundo.
Artigo científico
MORAN, D. & KANEMOTO, K. Identifying species threat hotspots from global supply chains. Nature Ecology & Evolution, 4 jan. 2017.