Instrumentos para estimular a inovação em empresas que se tornaram referência no país nos últimos anos foram criados e testados de forma pioneira pelo programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), na FAPESP, há 20 anos. O principal desses instrumentos é a concessão de subvenção econômica a empresas inovadoras, um recurso bastante utilizado em países desenvolvidos que prevê o compartilhamento dos custos e do risco em atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) entre governo e setor empresarial. “O Pipe foi um marco porque, pela primeira vez no país, viabilizou-se o investimento de recursos públicos não reembolsáveis em empresas inovadoras – dinheiro a fundo perdido, como se diz erroneamente, já que é um investimento que tem grande impacto econômico e social”, explica o físico José Fernando Perez, que era diretor científico da FAPESP quando o programa foi lançado. “Acredito que essa contribuição tenha sido muito importante para uma mudança cultural que ocorreu no país em relação ao papel do governo no estímulo à inovação.”
Alguns marcos legais lançados nos anos seguintes consolidaram um novo cenário, como a Lei de Inovação, de 2004, que autorizou e regulamentou a aplicação de recursos públicos em empresas e permitiu que pesquisadores de universidades desempenhassem atividades no setor privado. A Lei do Bem, de 2005, deu um passo adiante e criou incentivos fiscais a P&D e inovação tecnológica, embora seus mecanismos tenham sido mais utilizados por companhias consolidadas do que por empresas nascentes. Aprovado em 2006, o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte teve um capítulo dedicado à inovação. Nele, fica estabelecido que a União, os estados, os municípios e suas agências de fomento deverão ter programas específicos para a inovação em pequenas empresas. “O programa Pipe antecedeu em quase nove anos o espírito do estatuto, ainda que não tenha sido uma inspiração direta para ele”, diz Guilherme Ary Plosnki, coordenador científico do Núcleo de Política e Gestão Tecnológica da Universidade de São Paulo (USP) e vice-diretor do Instituto de Estudos Avançados.
De forma mais específica, diz Plonski, o Pipe serviu de modelo para a criação, em 2003, do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), voltado para apoiar a inovação em empresas de base tecnológica e implementado em parceria com fundações estaduais de amparo à pesquisa. O físico Sergio Machado Rezende, empossado em 2003 na presidência da Finep, acompanhava a evolução do Pipe desde a sua criação e propôs um programa federal em moldes semelhantes. “Conheci o programa anos antes em uma apresentação feita pelo Perez em um encontro de físicos e tive uma impressão muito boa. Eu já sabia que ele reproduzia mecanismos interessantes dos programas de apoio à inovação a pequenas empresas nos Estados Unidos”, relembra Rezende, que foi posteriormente ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação entre 2005 e 2010.
No início de 2003, Rezende convidou Perez, da FAPESP, a apresentar o programa em uma palestra para o pessoal técnico da Finep. Desse contato, surgiu uma parceria que rende frutos até hoje. A Finep lançou o Pappe, mas as regras do programa no estado de São Paulo articularam-se com as do Pipe para evitar sobreposição de esforços. Ocorre que, se os dois programas fossem idênticos, haveria o risco de o Pappe receber em São Paulo propostas que haviam sido rejeitadas pelo Pipe, o que seria uma demanda pouco qualificada. A solução foi adotar uma estratégia particular para as pequenas empresas paulistas: enquanto o Pipe seguiria financiando projetos de fase 1, voltados a demonstrar a viabilidade técnica e comercial de uma inovação, e fase 2, dirigida para o desenvolvimento da pesquisa propriamente dita, o Pappe da Finep atuaria de forma complementar em São Paulo, apoiando projetos de fase 3, que buscam o desenvolvimento final da inovação e sua comercialização pioneira – uma etapa que a FAPESP está impedida, por estatuto, de financiar. A articulação entre o Pipe e o Pappe vigora até hoje.
Com o advento da Lei de Inovação, a Finep sofisticou seu esquema de apoio a empresas, lançando a partir de 2006 programas de subvenção econômica de caráter mais ousado. Além do Pappe, passou a gerenciar iniciativas como o Prime (Primeira Empresa Inovadora), voltado a empresas nascentes, e o Pappe-Subvenção Econômica. Criou, ainda, opções de financiamento reembolsável em programas como o Juro Zero, para setores de tecnologia avançada. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) lançou programas de apoio à inovação em pequenas empresas. Um deles, o Funtec, apoia com recursos não reembolsáveis projetos cooperativos de empresas e instituições tecnológicas.
A fonte de inspiração do Pipe foram os programas Small Business Innovation Research (SBIR), oferecidos por 11 agências de fomento à pesquisa dos Estados Unidos (ver reportagem), mas a iniciativa da FAPESP sofreu adaptações para se adequar à realidade brasileira de 1997. Como na época a lei ainda não permitia a concessão de dinheiro público não reembolsável para o setor privado, o destinatário dos recursos do Pipe é o pesquisador principal, responsável pelo projeto, que pode ser o dono ou um especialista contratado por ele. Esse modelo vigora até hoje.
Solução engenhosa
A arquitetura do programa criou uma solução engenhosa para viabilizar a constituição, dentro das pequenas empresas, de uma estrutura física de pesquisa tecnológica e inovação. Os recursos da FAPESP financiam tanto material permanente, na forma de equipamentos de pesquisa, como itens de consumo – reagentes e insumos, por exemplo. Também se destinam ao pagamento de uma bolsa para o pesquisador principal, um item essencial para empresas nascentes que ainda não geram receitas, e bolsas de treinamento técnico para profissionais que podem vir a integrar a equipe de P&D da empresa após a vigência do projeto.
Se hoje há um bom contingente de empresas utilizando recursos públicos para criar novos produtos e serviços, nos anos 1990 havia desconfiança da capacidade de inovar do setor empresarial produtivo brasileiro, observa José Fernando Perez. Às vésperas do lançamento do Pipe, temia-se que não houvesse uma quantidade expressiva de companhias interessadas em apresentar projetos. “Foi um alívio quando vimos que, entre as mais de 80 proponentes, 32 empresas com bons projetos foram contempladas”, lembra Perez. Segundo ele, o então governador de São Paulo, Mario Covas, também ficou surpreso com os resultados. O edital havia sido lançado na FAPESP com a presença do governador e, a pedido dele, o anúncio dos contemplados foi feito no Palácio do Bandeirantes. Havia também resistência das universidades à ideia de destinar recursos públicos para a pesquisa em empresas. “Embora a Constituição estadual tenha aumentado os recursos destinados à FAPESP, incumbindo a Fundação de investir em inovação, havia um medo de que a pesquisa nas universidades fosse sacrificada”, diz Perez.
Em 1995, dois anos antes do Pipe, a FAPESP já havia feito um primeiro movimento para promover a inovação nas empresas, com o lançamento do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). A modalidade estabeleceu um mecanismo de colaboração entre empresas e universidades para enfrentar gargalos tecnológicos, por meio do qual o investimento da FAPESP em cada projeto exige uma contrapartida equivalente da empresa interessada – até dezembro de 2017, 245 projetos do Pite haviam sido financiados. Apesar de inovador, o Pite mantinha a primazia da instituição de pesquisa como o lugar de desenvolvimento do conhecimento: os recursos eram destinados às instituições científicas, que sediavam os projetos. O Pipe foi além e rompeu essa barreira.
Se o Pipe ajudou a mudar o ambiente da inovação no Brasil nos últimos 20 anos, é possível afirmar que ainda há um caminho a percorrer. “O Pipe foi premonitório ao antecipar a mudança que veio em seguida. Os méritos do programa são inequívocos e o volume de empresas beneficiadas fala por si, mas não se poderia esperar que uma iniciativa dessas conseguisse sozinha mudar a realidade das empresas de uma hora para outra”, observa o economista Marcelo Pinho, professor da Universidade Federal de São Carlos. Um grande desafio, segundo ele, é criar condições para que pequenas empresas de base tecnológica se tornem grandes, percurso que ainda não foi observado no Brasil.
Pinho recentemente analisou as chamadas “empresas unicórnio”, nome dado a um tipo de startup cujo valor supera US$ 1 bilhão antes mesmo de ela lançar uma oferta pública inicial de ações – companhias como a Uber e a Airbnb foram exemplos. “Nunca houve uma brasileira entre as empresas unicórnio. É certo que a dificuldade em criar empresas a partir de inovações disruptivas não é apenas do Brasil – excetuando-se a China e a Índia, são raras as empresas desse tipo criadas em países em desenvolvimento”, conta. De acordo com o pesquisador, o sistema nacional de inovação precisa evoluir de modo que o Pipe e outros instrumentos consigam apoiar cada vez mais empresas que produzam inovações capazes de competir no mercado global, reduzindo o número das que são apenas voltadas para demandas do mercado interno.
Treinamento
A evolução recente do Pipe indica uma preocupação cada vez maior com a capacitação dos representantes das empresas na elaboração de bons planos de negócios e na inserção de seus produtos ou serviços no mercado. Uma iniciativa chamada Pipe Empreendedor reúne periodicamente representantes de empresas com projetos na fase 1 do programa para uma maratona de sete semanas de treinamento intensivo acompanhados por mentores recrutados no mercado pela FAPESP. Ao longo desse período, os empreendedores reelaboram seus modelos de negócios e são treinados a entrevistar clientes e a calibrar suas ideias à luz das expectativas de mercado. “É um programa com enfoque na parte comercial, voltado para empresas com grande potencial de crescimento em que o conhecimento pode se transformar em negócio”, diz Milton Mori, professor da Faculdade de Engenharia Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que foi o diretor-executivo da Agência de Inovação Inova Unicamp entre 2013 e 2017. Ele compara o perfil das empresas do Pipe Empreendedor com o das mais de 500 companhias criadas a partir do conhecimento gerado na universidade. “As empresas filhas da Unicamp foram idealizadas na maioria por ex-alunos da instituição e muitas tiveram o apoio de mentores acadêmicos e empresariais que ajudaram a fortalecer seus projetos.”
O programa Pipe teve, em anos recentes, o maior número de contratos da história e respondeu por percentuais elevados de comprometimento de recursos, alcançando 6% do orçamento da FAPESP. “Em São Paulo, a FAPESP acelerou o Pipe nos anos da crise. Em 2015, 2016 e 2017, as quantidades de contratos foram as mais altas da história do programa, sendo que em 2017 a quantidade de aprovados foi superior a um por dia útil de janeiro a novembro”, contabiliza o diretor científico da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz. “A vitalidade do sistema de empresas de base tecnológicas no estado de São Paulo é enorme e, com ajuda do programa Pipe-FAPESP, contribui de forma definitiva para o desenvolvimento do estado e do país.”
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