Entrevista: Pedro Pan
Essa conclusão emerge de um estudo que acompanhou por ao menos três anos 529 crianças e adolescentes brasileiros (255 de São Paulo e 274 de Porto Alegre). Exames de imagens que permitem ver o cérebro em funcionamento mostraram que aqueles que apresentavam a rede cerebral da recompensa mais ativa e com seus pontos mais conectados entre si apresentavam um risco 54% maior de receber o diagnóstico de depressão na avaliação psiquiátrica feita três anos depois do teste inicial do que as crianças e os adolescentes em que esse circuito operava em níveis mais baixos e considerados adequados.
A rede da recompensa começou a ser mapeada no início dos anos 1950 em testes com roedores feitos pelo psicólogo norte-americano James Olds (1922-1976) e pelo neurofisiologista britânico Peter Milner (1919). Formada por diferentes regiões do cérebro sensíveis à ação da dopamina, um comunicador químico (neurotransmissor) que transporta informações de uma célula cerebral a outra, essa rede processa as sensações de prazer, como as geradas pelo consumo de alimentos saborosos, o contato com amigos, um elogio do chefe ou pela atividade sexual. Também modula a motivação, uma força interna que leva as pessoas a perseguir seus desejos e satisfazer suas necessidades.
No estudo com crianças e adolescentes de São Paulo e Porto Alegre, o psiquiatra Pedro Pan, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e o neurocientista e estatístico João Ricardo Sato, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), analisaram o grau de conectividade entre 11 pontos da rede de recompensa, enquanto os voluntários permaneciam deitados e em repouso no interior do aparelho de ressonância magnética. Os voluntários haviam sido orientados a olhar para um ponto fixo e não se concentrarem em nenhum pensamento específico. Nessa situação, o cérebro se encontraria em seu estado mais fundamental – ainda assim, com várias redes cerebrais ativas – e permitiria identificar as características intrínsecas ao seu funcionamento.
Nos participantes com o circuito cerebral de recompensa mais conectado e ativo, uma área em especial chamou a atenção dos pesquisadores: o corpo estriado ventral esquerdo. Essa pequena estrutura localizada em uma região profunda e evolutivamente primitiva do cérebro encontrava-se mais ativa nas crianças que mais tarde desenvolveram depressão do que naquelas que não tiveram o problema.
Antes dos sinais clínicos
“É a primeira vez que se observa o funcionamento anormal do circuito de recompensa em repouso antes de a depressão se manifestar do ponto de vista clínico”, afirma Pan, primeiro autor do artigo que descreveu esses resultados em novembro de 2017 no American Journal of Psychiatry. Segundo o psiquiatra, o resultado fortalece a hipótese de que a alteração no funcionamento da rede estaria na origem de algumas formas de depressão, em especial daquelas marcadas pela anedonia, a perda no interesse de atividades antes prazerosas.
No ano passado, Pan passou quatro meses analisando os dados em colaboração com o psiquiatra Argyris Stringaris, diretor da Unidade de Humor e Desenvolvimento do Cérebro do Instituto de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH). Estudos anteriores conectavam a atividade anormal do estriado ventral a problemas neurológicos, como a doença de Parkinson, e psiquiátricos, como esquizofrenia e depressão. Em 2015, Stringaris observou uma conexão entre o funcionamento do estriado ventral e a depressão: essa estrutura se tornava progressivamente menos ativa à medida que os sinais de depressão se instalavam nos adolescentes.
Os resultados do estudo de Pan e os de Stringaris parecem contraditórios, mas não são. Stringaris havia usado uma estratégia distinta e ao mesmo tempo complementar. No estudo publicado em 2015 no American Journal of Psychiatry, Stringaris colocou voluntários para participar de um jogo que poderia dar uma recompensa (doces) enquanto eram feitas imagens do cérebro em funcionamento. Esse trabalho, porém, não permitia saber se a mudança na atividade do estriado era causa ou consequência da depressão.
“Vistos em conjunto, os dados sugerem que as mudanças no cérebro começam algum tempo antes da manifestação clínica da doença”, afirma Pan. Ele e Stringaris interpretam a hiperativação inicial do estriado ventral, anterior à sua perda de função, como uma forma de o cérebro tentar compensar um problema que ainda não está instalado ou como um sinal de que ele não está conseguindo processar adequadamente os estímulos que geram a sensação de recompensa.
Primeiro passo
Se outros estudos confirmarem esse achado, a ativação excessiva do estriado ventral pode se tornar preditor de risco da depressão em adolescentes. “Esse é um passo inicial”, afirma o psiquiatra Luis Augusto Rohde, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coautor do estudo de Pan. “Antes, é preciso replicar o estudo com outros grupos de voluntários para ver se o efeito se mantém e, quem sabe, um dia possa ser incorporado à prática clínica.” Inicialmente coordenado por Rohde e pelo psiquiatra Euripedes Constantino Miguel, da Universidade de São Paulo (USP), esse estudo, hoje sob a responsabilidade dos psiquiatras Rodrigo Bressan, da Unifesp, e Giovanni Salum, da UFRGS, é pioneiro na América Latina e acompanha por um longo período esses 529 voluntários, além de outras 2 mil crianças e adolescentes. O trabalho conta ainda com a participação da bióloga especialista em neuroimagem Andrea Jackowski, da Unifesp, e tem como objetivo identificar as alterações na estrutura e no funcionamento do cérebro que caracterizem o seu amadurecimento saudável e as modificações que indiquem o risco de desenvolver transtornos psiquiátricos (ver Pesquisa FAPESP nº 232).
“Esse trabalho tem diversas qualidades, como o fato de ter conseguido replicar nas crianças de São Paulo o que havia sido observado nas de Porto Alegre, reforçando a ideia de que o efeito da alteração no estriado ventral sobre a depressão seja real”, conta o psiquiatra Christian Kieling, que não participou da pesquisa. Especialista em psiquiatria da infância e da adolescência e professor da UFRGS, Kieling desenvolveu com colaboradores da Universidade Federal de Pelotas um sistema de pontuação (escore), atualmente em teste, que tenta predizer o risco de desenvolver depressão a partir das características sociodemográficas dos adolescentes. Se funcionar, essa estratégia deverá ser usada para selecionar adolescentes de alto risco para estudos de neuroimagem. “Usar neuro-imagem para identificar fatores de risco de depressão é uma área que começa a ser desbravada e tenta aproximar a psiquiatria das outras especialidades médicas, que atuam de maneira preventiva e não apenas curativa”, diz Kieling.
“Se um dia conseguirmos identificar o aumento do risco de desenvolver depressão a partir da atividade do estriado, pode se tornar viável agir antes que a doença se instale”, supõe Pan. “Há técnicas de psicoterapia que auxiliam a combater a anedonia e podem ser importantes para essa faixa etária.”
Projetos
1. INCT 2014: Psiquiatria do desenvolvimento para crianças e adolescentes (nº 14/50917-0); Modalidade Projeto Temático; Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia; Pesquisador responsável Euripedes Constantino Miguel (USP); Investimento R$ 3.418.957,70.
2. Coorte de alto risco para transtornos psiquiátricos na infância: Seguimento de neuroimagem após 3 anos (nº 13/08531-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Andrea Parolin Jackowski (Unifesp); Investimento R$ 319.256,76.
Artigo científico
PAN, P. et al. Ventral striatum functional connectivity as a predictor of adolescent depressive disorder in a longitudinal community-based sample. American Journal of Psychiatry. v. 174, n. 11, p 1112-19. 1º nov. 2017.