Todos os anos, milhares de moléculas são apresentadas como candidatas a novos medicamentos. Poucas, no entanto, avançam e chegam às farmácias. Em estudo publicado na revista Nature Chemistry, um grupo internacional de pesquisadores, incluindo brasileiros de várias instituições, valeu-se de uma estratégia colaborativa. De forma articulada, os pesquisadores descobriram e sintetizaram substâncias produzidas por um fungo marinho capazes de inibir a proliferação de células tumorais expostas a raios gama. A abordagem demonstra como a colaboração de grupos de pesquisa com diferentes especialidades pode acelerar pesquisas de prospecção e desenvolvimento de moléculas com atividade farmacológica.
No início de 2017 os biomédicos Sônia Jancar e Ildefonso Alves da Silva Júnior, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), observaram que a radioterapia, usada para bombardear os tumores com raios gama e impedir que eles se espalhem pelo corpo, estimulava na superfície das células a produção de receptores capazes de se ligar a um lipídio inflamatório chamado fator ativador de plaquetas (PAF). Isso é um problema, uma vez que essa substância, quando dentro de células tumorais, gera sinais inflamatórios que podem interferir na regulação das funções das células, estimulando seu crescimento e multiplicação descontrolados.
Sônia e Silva Júnior investigaram o papel do PAF em amostras de culturas de células de tecidos humanos – normais e de carcinomas uterino e de cabeça e pescoço – submetidas à radioterapia. Verificaram que a irradiação aumentou a expressão de receptores PAF na superfície das células tumorais e a produção de outras substâncias, que se ligavam aos receptores do PAF nas células tumorais que sobreviveram à radiação. Isso pode ser um sinal de que a produção desses receptores esteja envolvida no processo de crescimento das células cancerígenas, fazendo com que elas voltem a se multiplicar de modo ainda mais agressivo.
“Os achados sugeriam que precisávamos buscar substâncias capazes de impedir que o PAF se ligasse ao seu receptor na superfície das células”, explica Silva Júnior. Foi nessa época que eles foram procurados pelo químico Roberto Gomes de Souza Berlinck, do Instituto de Química de São Carlos da USP, que trabalha com moléculas isoladas de organismos marinhos com possível ação farmacológica. Uma das pesquisas desenvolvidas por Berlinck envolvia as fomactinas, obtidas do fungo Biatriospora sp., encontrado na esponja marinha Dragmacidon reticulatum.
“Desde 1991 se sabe que essa classe de compostos apresenta atividade anti-PAF”, comenta Berlinck. Ele explica que as fomactinas são moléculas complexas e difíceis de serem produzidas em laboratório. Era necessário sintetizá-las, a fim de se obter quantidades adequadas para pesquisas farmacológicas. Quem já estava fazendo isso era a equipe do químico Richmond Sarpong, do Departamento de Química da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos.
Pesquisadores do grupo de Sarpong desenvolveram em laboratório um método de síntese dessas substâncias, viabilizando sua produção. No estudo agora publicado na revista Nature Chemistry, eles descrevem a preparação de seis fomactinas diferentes, que foram testadas em células tumorais expostas a raios gama. A ideia era verificar se as moléculas produzidas em laboratório mantinham sua capacidade anti-PAF em comparação à ação dos compostos isolados dos fungos.
Segundo os pesquisadores, que trabalharam de modo articulado, integrando as competências de cada grupo, todas as fomactinas mostraram-se capazes de bloquear a ligação do PAF ao seu receptor na superfície das células tumorais, impedindo que voltassem a se proliferar descontroladamente após a irradiação. “Os achados reforçam a hipótese de que as fomactinas poderiam atuar como antagonistas do receptor do PAF e sugerem que a associação desses compostos com a radioterapia pode aprimorar o tratamento de tumores”, destaca Silva Júnior. “Nossa abordagem também mostra a importância e os benefícios de se trabalhar em rede com diferentes grupos de pesquisa.”
Pesquisadores do grupo de Sarpong desenvolveram em laboratório um método de síntese das fomactinas, viabilizando sua produção.
“Os resultados da investigação são interessantes e baseiam-se em estudos envolvendo o isolamento de metabólitos secundários, sua síntese e avaliação biológica, o que caracteriza uma integração moderna de estratégias para a obtenção de compostos candidatos a novos fármacos”, destaca o químico Adriano Andricopulo, do Laboratório de Química Medicinal e Computacional do Instituto de Física de São Carlos da USP. Andricopulo coordena uma equipe de químicos, biofísicos, biomédicos e biólogos que trabalham na identificação e desenvolvimento de agentes terapêuticos de fontes naturais e sintéticas que não prejudicam seu hospedeiro, com potencial de desenvolvimento clínico.
Na avaliação do pesquisador, que não participou do estudo publicado na Nature Chemistry, a investigação de produtos naturais pode ser uma fonte inspiradora de novos compostos. “O trabalho de síntese de compostos análogos aos da classe das fomactinas é uma inovação importante”, destaca o químico. “O fato de ter apresentado atividade antagonista dos receptores do PAF, inibindo a repopulação de células tumorais, sugere que elas têm potencial para serem usadas em combinação com a radioterapia.”
Apesar dos resultados promissores, Berlinck lembra que um longo caminho ainda precisa ser percorrido até que as fomactinas possam se tornar um tratamento efetivo contra o câncer. “Em geral, o desenvolvimento de novos fármacos a partir de substâncias de organismos vivos é um desafio, que começa em conseguir encontrar na natureza microrganismos, plantas ou animais que produzam moléculas potencialmente interessantes”, explica o pesquisador. “No caso de microrganismos, há um longo período de investigação e testes para o desenvolvimento de métodos que permitam produção em laboratório das moléculas em quantidades suficientes para as primeiras análises.”
Outras etapas, como a purificação e identificação dessas substâncias e testes in vitro, incluem coleta e análises dos resultados obtidos a partir de ressonância magnética nuclear e espectroscopia de massas, além de testes farmacológicos, cujos resultados precisam ser precisos e reproduzíveis por qualquer pesquisador. “De cada 10 mil moléculas descobertas, apenas uma chega ao mercado. A maioria falha em testes iniciais com modelos animais, seja porque se mostram tóxicas ou porque não apresentam os efeitos esperados”, destaca Berlinck. “Em outros casos, as pesquisas não vão adiante porque não despertaram o interesse de empresas farmacêuticas.”
“Apesar das dificuldades, trabalhos como esse constituem um caminho promissor para diminuir a complexidade sintética e facilitar a obtenção de análogos para estudos biológicos”, propõe Andricopulo.
Projeto
Componentes da biodiversidade, e seus caracteres metabólicos, de ilhas do Brasil − uma abordagem integrada (nº 13/50228-8); Modalidade Projeto Temático; Programa Biota; Pesquisador responsável Roberto Gomes de Souza Berlinck (USP); Investimento R$ 3.123.626,97.
Artigo científico
KURODA, Y. et al. Isolation, synthesis and bioactivity studies of phomactin terpenoids. Nature Chemistry. jul. 2018.