Aproveitar os genes das variedades originais das plantas encontradas na natureza (ditas selvagens) para aprimorar os vegetais importantes na dieta humana é hoje quase corriqueiro. Isso vale especialmente no caso de características determinadas por um único gene, como componentes do tamanho do fruto ou da planta e o tempo de floração. No entanto, as características mais complexas – e cobiçadas – como resistência à salinidade, à seca ou às pragas, ainda esbarram em dificuldades. A introdução desses genes em novos cultivares depende de um esforço hercúleo para identificar uma série de genes e rotas bioquímicas ainda desconhecidos, sem nenhuma garantia de que o efeito será o mesmo no organismo novo.
Diante desse impasse, um grupo da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) resolveu inverter o jogo fazendo algo que, até aqui, parecia impossível: domesticar novamente vegetais selvagens e refazer, no laboratório, as mutações adquiridas em um percurso de milhares de anos de domesticação e seleção artificial. Desta vez, porém, por meio de edição gênica pela técnica CRISPR-Cas9 (ver Pesquisa FAPESP nº 240). No experimento, publicado hoje (1º/10) na revista Nature Biotechnology, o grupo editou seis genes da espécie Solanum pimpinellifolium, considerada a mais parecida com a forma ancestral, simulando algumas das mesmas modificações genéticas que deram origem ao tomate doméstico.
O resultado foi um tomate apenas um pouco mais parecido com o comercial. O fruto era um pouco maior do que o original selvagem, crescia em cachos mais abundantes, e não precisava de estacas, facilitando a colheita automática. “Essa total inversão da abordagem tradicional só foi possível porque hoje se conhece bem a genética e a fisiologia da domesticação das plantas, baseada em características monogênicas”, diz o agrônomo Lázaro Peres, coordenador do estudo e professor da Esalq. “A metodologia serve até para espécies que nunca foram domesticadas.” Antes da confluência desse conhecimento, refazer o percurso da domesticação – algo semelhante a reinventar a roda – era uma ideia impensável.
O novo tomateiro obtido no experimento é apenas o primeiro passo do processo. Com frutos pequenos, ainda se parece bastante com o selvagem. Seu ponto forte, porém, é a alta concentração de licopeno, o antioxidante que ajuda na prevenção do câncer de próstata: cinco vezes maior do que o encontrado no tomate cereja, já mais rico nessa substância do que o tomate tradicional. Além disso, tem mais ácido e açúcar, que enriquecem o sabor e estão pouco presentes no fruto grande. O mais importante, porém, é que o experimento prova o conceito batizado de domesticação de novo, proposto em 2017 na revista Plant Science, que Peres afirma ter o potencial de mudar completamente a forma como se enxerga o melhoramento vegetal hoje.
O grupo também está utilizando a nova abordagem em outra espécie de tomate, Solanum galapagense, que habita áreas rochosas de alta salinidade próximas ao mar nas ilhas Galápagos. Além da resistência à salinidade, a planta – inclusive os frutos – é toda coberta por pelinhos (tricomas, no jargão botânico), que lhe conferem resistência a insetos.
A característica, na verdade, também está presente na variedade comercial, mas apenas em sua fase jovem. A perda dos tricomas se dá por meio de uma regulação gênica complexa ao longo do desenvolvimento do tomateiro. Dependendo dessa regulação, a planta pode manter características do indivíduo jovem ou eliminá-las. “Melhoristas tentam há anos inserir os tricomas que depois são perdidos, sem sucesso. Além disso, a substância inseticida presente neles é controlada por outros genes, dificultando ainda mais a seleção da característica”, conta Peres.
Perdas e ganhos da domesticação
O princípio de que a natureza serve como uma reserva genética – seja na abordagem tradicional, pela transferência de genes, ou pela domesticação de novo da espécie – é resultado da erosão genética, um aspecto da permanente busca por melhorias nos vegetais. Isso porque a seleção de características no processo de melhoramento diminui cada vez mais a diversidade genética e costuma selecionar genes que representam perda de função. Um exemplo são os genes que controlam o crescimento do tecido meristemático, constituído de células com grande capacidade de multiplicação e especialização. Quando esse gene perde a função, dá origem a plantas que produzem mais tecido meristemático e, portanto, frutos maiores.
Por outro lado, características complexas são mais difíceis de ser selecionadas e acabam eliminadas simplesmente porque os selecionadores não estavam atentos a elas, contribuindo ainda mais para o que se conhece como erosão genética. A domesticação de novo contorna esse problema voltando à forma selvagem, mas também está sujeita às perdas genéticas da domesticação tradicional pelo mesmo processo. Mesmo sem garantir o tomate perfeito, a domesticação de novo pode abrir uma frente no melhoramento de plantas.
Um novo estudo publicado na revista New Phytologist, realizado com o tomate comum Solanum lycopersicum, conseguiu explicar por que o hormônio vegetal giberelina inibe a floração, ao contrário do que ocorre em Arabidopsis thaliana – uma pequena erva da família da mostarda e o modelo experimental favorito na fisiologia vegetal. “Em ambas as plantas, a giberelina degrada a proteína Della, que, por sua vez, regula a floração de modo indireto”, explica o agrônomo Fabio Nogueira, professor da Esalq e coordenador do trabalho, que conta com a colaboração de Lázaro Peres. “Mas em Arabidopsis a proteína Della inibe a floração, enquanto no tomate ela tem o efeito contrário.”
O grupo descobriu também que a produção do fitormônio é estimulada pelos mesmos fatores (micro RNAs e seus genes alvo) que regulam a idade da planta e a forma como ela reage às diferenças na relação entre o tempo de duração do dia e da noite que ocorrem ao longo do ano – o fotoperíodo. O microRNA 156 funciona de forma quase universal nas plantas, estimulando a floração. No entanto, o microRNA 319 e seus genes alvos inibem o florescimento no tomate, que é uma planta neutra em termos de duração do dia, enquanto estimulam em Arabidopsis, que é uma planta de dia longo.
É possível que, ao longo do processo de domesticação, o tomate tenha perdido a sensibilidade a esses fatores de dia e noite. Além de uma necessária modificação nos livros didáticos de fisiologia vegetal para acomodar a diferença no mecanismo de ação da giberelina no tomateiro e outras espécies, como ervilha e árvores frutíferas, a descoberta abre caminho para o desenvolvimento de variedades com sensibilidades diferentes ao fotoperíodo, o que pode ser interessante para o agricultor que deseja colher em momentos específicos do ano.
Projetos
1. Enhancing salt tolerance in tomato crops for advancing sustainable agriculture and food production (nº 15/50220-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Lázaro Eustaquio Pereira Peres (USP); Investimento R$ 1.266.052,91.
2. Estudo funcional de vias reguladas pelos microRNAs miR159 e miR319 durante o desenvolvimento de flores e frutos de tomateiro (nº 15/17892-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Fabio Tebaldi Silveira Nogueira (USP); Investimento R$ 165.993,13.
Artigos científicos
ZSÖGÖN, A. et al. De novo domestication of wild tomato using genome editing. Nature Biotechnology. on-line. 1º out. 2018.
SILVA, G. F. F. et al. Tomato floral induction and flower development are orchestrated by the interplay between gibberellin and two unrelated microRNA-controlled modules. New Phytologist. on-line. 20 set. 2018.