O Instituto Butantan firmou em 12 de dezembro um acordo de colaboração tecnocientífica em um formato inovador que deve acelerar o processo de desenvolvimento de sua vacina contra dengue, patenteada nos Estados Unidos e atualmente na etapa final de testes, a chamada fase 3, em voluntários do Brasil. Em um país mais acostumado a comprar tecnologias e serviços científicos do exterior, o novo contrato com a multinacional farmacêutica norte-americana MSD (Merck Sharp & Dohme) inverte essa tendência: assegura a entrada de investimentos externos e prevê o compartilhamento de dados e de experiência para que os produtos desenvolvidos pelas duas entidades parceiras – uma pública, outra privada – possam chegar mais rapidamente às pessoas.
O acordo prevê um aporte inicial para o Butantan de US$ 26 milhões, a serem pagos pela MSD, cuja candidata à vacina contra dengue está em um estágio mais atrasado, para ter acesso aos testes clínicos e ao processo de desenvolvimento do imunizante contra essa doença criado pelo instituto paulista. O laboratório também se compromete a repassar ao instituto até US$ 75 milhões adicionais ao longo dos próximos 24 meses. Também poderão ser recebidos royalties se a vacina da empresa atingir metas de comercialização no exterior. Até agora, foram investidos no projeto da vacina do Butatan R$ 224 milhões, provenientes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), da FAPESP, da Fundação Butantan e do Ministério da Saúde.
Em princípio, o Butantan e a MSD não concorrerão em nenhum mercado. O instituto tem a exclusividade da produção da vacina contra dengue no Brasil e a MSD detém os direitos para os Estados Unidos, Japão, China e Europa. “O Butantan atingiu um nível de excelência internacional no desenvolvimento de vacinas de interesse mundial. Essa é a primeira transferência com esse perfil feita entre um instituto brasileiro e uma empresa farmacêutica global”, afirma o médico Dimas Tadeu Covas, diretor do Butantan. “É uma satisfação ver um projeto iniciado a partir de estudos financiados pela FAPESP ao longo de 10 anos se transformar em um produto que, dentro de alguns anos, poderá entrar no mercado mundial”, disse, na cerimônia de assinatura do acordo, Marco Antonio Zago, presidente da Fundação e então secretário da Saúde do Estado de São Paulo.
A parceria foi possível porque tanto o instituto paulista quanto o laboratório norte-americano usam como base para suas vacinas um conjunto de linhagens do vírus da dengue criado por modificação genética pela equipe de Stephen Whitehead, do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas e Alergia (Niaid), um dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, os NIH. Quando foram iniciadas as parcerias internacionais para desenvolvimento da vacina, os NIH definiram de antemão os domínios territoriais que caberiam a cada um de seus colaboradores.
A vacina desenvolvida pelo Butantan, designada pela sigla Butantan-DV, é feita de vírus vivos atenuados (a da MSD também será). Seu trunfo é ser tetravalente. Foi desenhada para fornecer proteção aos quatro tipos de vírus da dengue e pode ser aplicada em uma única dose. Seus testes clínicos foram planejados para adequação do produto a uma grande faixa etária, dos 2 aos 59 anos. Até agora, o imunizante tem se mostrado seguro, com poucas reações adversas, as quais são semelhantes às de outras vacinas. Nenhuma outra vacina contra dengue desenvolvida a partir do material cedido pelos NIH está em fase tão avançada de pesquisa. A Sanofi Pasteur lançou no fim de 2015 a Dengvaxia, único imunizante contra a doença disponível no mercado, que foi desenvolvido com uma tecnologia diferente da empregada pelos NIH. Mas o produto da empresa francesa apresenta vários problemas: tem taxa de eficácia relativamente baixa (60%), pode causar reações adversas e é contraindicado para quem nunca teve dengue.
A aproximação entre o Butantan e a MSD começou a ser costurada logo após a vacina criada pelo instituto paulista ter passado pelos testes clínicos da fase 2, que demonstraram a segurança do produto e sua capacidade de estimular o sistema imune a produzir anticorpos contra os quatro vírus da dengue. Essa fase já terminou, mas seus resultados ainda não foram publicados em um artigo científico. “O paper sobre esse estudo foi recentemente encaminhado para publicação e estamos aguardando a resposta”, explica Alexander Precioso, diretor da Divisão de Ensaios Clínicos do Butantan. “Não é necessário publicar o estudo de fase 2 para iniciar o de fase 3. A aprovação de um estudo clínico se dá nas esferas sanitária e ética.” Depois de ter sua segurança e baixa toxicidade asseguradas na fase 1, um candidato a vacina (ou a remédio) tem de passar pelos testes clínicos da fase 2, que envolvem mais aspectos de segurança e um estudo terapêutico com um número ainda pequeno de participantes para averiguar se o produto pode ser útil para a finalidade a que se propõe. A fase 3 consiste em um estudo, geralmente multicêntrico, com uma grande quantidade de voluntários de perfil etário variado, para se determinar a eficácia e confirmar o seu perfil de segurança.
A vacina contra dengue está sendo testada em 17 mil voluntários brasileiros com idade entre 2 e 59 anos
Mesmo sem terem sido publicados em um estudo científico, os resultados dos testes de fase 2 com a vacina do Butantan, feitos em 300 voluntários recrutados pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), foram comunicados à MSD e outras empresas e instituições em reuniões científicas, como congressos e eventos. “Os resultados dessa fase foram extremamente promissores e nos chamaram a atenção”, afirma Guilherme Leser, diretor de Relações Governamentais e Institucionais da MSD no Brasil. “Começamos então a conversar com o Butantan sobre a possibilidade de uma parceria, visto que a área de maior prevalência de dengue no mundo naquele momento era o Brasil. O país estava atravessando picos de incidência da doença nas regiões Sudeste e Nordeste, e essa grande quantidade de casos permitia ao Butantan começar mais rapidamente os estudos clínicos de fase 3, a última, quando se avalia a eficácia da vacina.” Em 2015 e 2016, o Brasil registrou cerca de 1,5 milhão de casos da doença. Em 2017 e em 2018, o número caiu para aproximadamente 240 mil.
O estudo de fase 3 da vacina do Butantan, com meta de inclusão de 17 mil pessoas, que serão acompanhadas por cincos anos, está bem encaminhado, próximo da conclusão. O ensaio dividiu os voluntários em três recortes etários: 2 a 7 anos, 8 a 17 e 18 a 59. Falta completar apenas o grupo de voluntários da faixa etária mais jovem, a mais difícil de se conseguir participantes. A dificuldade de se fechar o grupo de voluntários também se deveu ao fato de o país ter tido um número surpreendentemente baixo de casos de dengue nos últimos dois anos e a necessidade de autorização do pai e da mãe para a participação da criança no estudo clínico. “Há alguns indícios de que a epidemia de 2019 deve ser maior que a de 2018”, diz Esper Kallás, professor da FM-USP e coordenador de um dos 16 centros clínicos do teste. “No final de 2018 em São Paulo, por exemplo, estão sendo registrados casos de dengue acima daquilo que é esperado para o período. Como as epidemias começam efetivamente em fevereiro, é possível que tenhamos um número de casos bem alto na próxima temporada.”
Os 16 centros clínicos do país que conduzem o ensaio estão trabalhando para completar a quantidade de indivíduos que participam do estudo. “Para conseguir demonstrar que a vacina é eficaz, precisamos documentar 100 casos da doença entre voluntários, mas não chegamos ainda nesse número”, explica Kallás. Um terço dos voluntários é do grupo de controle, ao qual é administrado um preparado inócuo, e dois terços recebem de fato a vacina. Quando o número de uma centena de doentes for atingido, os pesquisadores abrem as fichas dos participantes que adoeceram e constatam de que grupo eles fazem parte. Se quase todos tiverem recebido o placebo, o dado será um indício muito forte de que a vacina é eficaz. No entanto, o ensaio clínico não terá se encerrado se e quando isso vier a ocorrer. Será ainda preciso olhar para a proteção oferecida pela vacina contra cada sorotipo do vírus – no Brasil, a maioria dos casos de dengue é do tipo 2 e 3 – para os diferentes perfis dos pacientes que adoeceram ou não.
“A MSD está começando os estudos de fase 2 de sua vacina agora. Não definimos ainda quais países e populações queremos buscar para os estudos de fase 3”, comenta Leser, do laboratório farmacêutico. “Nossa ideia é obter números significativos de pessoas que foram expostas a sorotipos da dengue, como o 4, que o Butantan eventualmente não tenha registrado com frequência em seus testes.”
A complementaridade está na raiz do acordo articulado entre a multinacional e o Butantan. Ou seja, a fase avançada em que a vacina contra dengue do instituto paulista se encontra faz com que seus dados e experiência na produção do imunizante possam contribuir para acelerar o programa da vacina da MSD. De forma semelhante, a experiência da multinacional em desenvolver, produzir e realizar estudos clínicos com novos imunizantes pode agilizar a fase final de fabricação e os testes clínicos do Butantan. Apesar de serem baseadas em um mesmo preparado de vírus criado pelos NIH, ambas as vacinas terão de ser aprovadas pelas agências reguladoras.
Há particularidades na formulação final tanto no imunizante de dengue do Butantan como no da MSD. O instituto paulista desenvolveu uma vacina de formulação multidose, visando, inicialmente, imunizar a população por meio de campanhas como as programadas periodicamente pelo Ministério da Saúde. Já a MSD tem a ideia de atender um mercado global mais fragmentado, caracterizado por uma demanda grande por parte de pessoas que viajam a áreas tropicais. Por isso, a empresa priorizará a produção de frascos de dosagem única. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima a ocorrência de 390 milhões de infecções pelo vírus da dengue por ano. Em caso de qualquer mudança de rumo, as duas entidades parceiras se comprometem a compartilhar sua experiência em técnicas de produção sem cobrar royalties adicionais.
Segundo Covas, do Butantan, o aporte de recursos da MSD poderá servir de apoio para atividades ligadas ao desenvolvimento da vacina contra dengue e até acelerar algumas etapas desse processo. “Apressar a demonstração da eficácia da vacina obviamente não é possível, mas há processos de finalização e complementação de infraestrutura que podem ser agilizados”, afirma Precioso. Encontrar a melhor maneira de aplicar essa verba, de qualquer modo, é prerrogativa do Butantan. “Ela deve ser aplicada também num contexto mais geral de desenvolvimento e inovação do instituto”, diz ele. O acordo com a multinacional também engloba eventuais colaborações envolvendo outras vacinas, como a de hepatite A e HPV, hoje fabricadas pelo Butantan (ver texto). Por meio da MSD, o instituto espera ganhar acesso ao mercado internacional, em especial o dos países pobres e em desenvolvimento.
Não faltam questões a serem exploradas no campo da dengue. Além do estudo geral sobre a fase 2 dos testes clínicos, ainda não publicado, e do ensaio de fase 3 em andamento, há outros trabalhos sendo feitos com a vacina contra dengue do Butantan. O laboratório de Kallás na USP, por exemplo, avalia o quanto esse produto ativa a resposta imune celular, sem, no entanto, envolver a produção de anticorpos. “Espero que os estudos contribuam para entendermos quais marcadores imunes indicam se a pessoa está protegida ou não contra a dengue, atualmente algo ainda não muito claro”, explica Kallás.
Projeto
Dengue: Produção de lotes experimentais de uma vacina tetravalente candidata contra dengue (nº 08/50029-7); Modalidade Programa Pesquisa para o SUS; Pesquisador responsável Isaias Raw (Instituto Butantan); Investimento R$ 1.926.149,72 (FAPESP/CNPq-PPSUS).