Imprimir PDF Republicar

Boas práticas

Múltiplas punições contra desvios éticos

Sanções para casos de má conduta científica vão atingir a vida social de pesquisadores chineses

Zé Vicente

O governo da China anunciou em novembro a ampliação de sanções contra pesquisadores responsabilizados por má conduta científica, que passarão a sofrer restrições também em outras esferas de suas vidas, como bloqueio a empréstimos bancários ou impedimento de se candidatar a empregos em bancos, empresas públicas, entre outras. Segundo um memorando divulgado pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, haverá uma “ação disciplinar conjunta” contra cientistas que cometerem desvios éticos. Punições poderão ser aplicadas simultaneamente por diversas agências governamentais e instituições privadas e não apenas pelas universidades e pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, como ocorria até recentemente. Isso significa, em termos concretos, que os castigos ou a perda de direitos aplicados em quem cometer fraudes, manipular dados e imagens ou plagiar artigos científicos não vão se limitar ao ambiente acadêmico, com o veto a promoções na carreira e o corte de financiamento a projetos, mas poderão afetar o cotidiano dos pesquisadores incriminados.

A nova política está vinculada ao “sistema de crédito social”, polêmico modelo de vigilância dos chineses que começou a ser implantado de modo experimental em algumas regiões do país em 2014, por meio do qual o descumprimento de leis ou de regras estabelecidas pelo Estado acarreta dores de cabeça de amplo espectro. A meta é que, até 2020, os chineses sejam classificados segundo o grau de “confiança” que inspiram. As notas elevadas – que rendem benefícios como descontos em passagens aéreas ou reserva de quartos de hotel sem necessidade de depósito – são destinadas àqueles que honram o pagamento de empréstimos e têm um histórico de respeito à lei e bom comportamento.

Já calotes de dívidas ou de multas aplicadas pelo governo resultam em perda de pontos e podem transformar o indivíduo em um cidadão de segunda categoria, alvo de restrições na hora de obter crédito ou contratar seguros e até mesmo em sua mobilidade. De acordo com reportagem da revista Nature, 11 milhões de chineses foram impedidos de comprar passagens aéreas e 4,2 milhões de viajar em trens de alta velocidade, entre os meses de abril e dezembro de 2018, porque o sistema os classificava como indivíduos de baixa confiança. Estima-se que mais de 2 milhões pagaram dívidas ou multas para sair da lista negra. Em Jinan, capital da província de Shandong, o sistema envolve até os donos de cães, que perdem pontos se o animal sair na rua sem coleira ou perturbar o sossego público – a punição máxima é a cassação do direito de ter um bicho de estimação.

A lógica desse modelo foi definida pelo presidente Xi Jinping em um congresso do Partido Comunista em 2016: “Quem perder a confiança em uma área enfrentará restrições em todas as áreas”. Quando estiver funcionando plenamente, o sistema irá operar por meio do cruzamento de cadastros de órgãos do governo e do setor privado. “Não há uma lista negra, mas dezenas delas. Todas as principais áreas do governo têm a sua lista”, disse ao jornal britânico University World News Rogier Creemers, especialista em relações internacionais da Universidade de Leiden, na Holanda, um estudioso do sistema chinês. Uma universidade privada chegou a rejeitar a matrícula de um estudante de alto desempenho porque seu pai estava em uma lista de inadimplentes de instituições bancárias – o pai correu para pagar a dívida a fim de que o filho fosse admitido.

Zé Vicente

Ainda não foi anunciado o grau de punição a cada tipo de desvio ético e existem dúvidas sobre a capacidade do governo de gerenciar as sanções a pesquisadores. “Há sempre o risco de não haver recursos ou gestores qualificados para administrar um grande número de regras draconianas”, disse à Nature o engenheiro eletricista Max Lu, presidente da Universidade de Surrey, em Guildford, na Inglaterra, que foi conselheiro de política científica do governo da China.

O memorando do governo prevê que pesquisadores responsáveis por casos de má conduta não poderão participar da criação de startups e de colaborações com empresas. As sanções vão atingir não apenas indivíduos, mas também as instituições a que pertencem, que poderão enfrentar, por exemplo, restrições à importação de equipamentos de pesquisa, à captação de recursos no exterior e ao uso de serviços de internet, que dependem de autorização de órgãos do governo.

A China é responsável por 18% da produção científica do mundo indexada na base Scopus. No ano passado, superou pela primeira vez os Estados Unidos em número de artigos publicados, mas ainda se ressente da grande quantidade de casos de má conduta entre seus cientistas. Um exemplo recente foi a retratação de 11 artigos de pesquisadores da área de novos materiais da Universidade Tshingua por manipulação e duplicação de imagens e falsa atribuição de autoria. O autor principal dos artigos, Ye Xiaoxin, foi punido com a cassação de seu título de doutor, que havia obtido na instituição em 2010. O caso mais rumoroso do momento é o de He Jiankui, pesquisador de uma universidade em Shenzhen, que anunciou ter utilizado a ferramenta de edição de genes CRISPR-Cas9 para gerar bebês resistentes à infecção pelo vírus HIV, quebrando normas éticas em experimentos com seres humanos. Jiankui foi demitido da universidade e está sendo investigado.

A nova política se soma a um conjunto de intervenções tomadas no passado recente para coibir desvios éticos entre pesquisadores. Em maio de 2018, o Partido Comunista e o Conselho de Estado da China lançaram uma série de medidas, como a elaboração de uma lista de periódicos científicos de má qualidade e a centralização das investigações sobre má conduta no Ministério de Ciência e Tecnologia, ou ainda a criação de um cadastro com os nomes dos pesquisadores que cometeram desvios. Percebe-se agora que esse banco de dados terá consequências na vida dos cientistas bem mais amplas do que se imaginava.

Republicar