Embalagens de ração para cães ou gatos normalmente exibem a imagem de alimentos que, em tese, são os principais na composição do produto. Apesar de não existirem embalagens ilustradas com milho ou subprodutos de frigoríferos de aves, como farinha de vísceras de frango, esses são os ingredientes que os animais de estimação do Brasil mais consomem, segundo dois estudos feitos na Universidade de São Paulo (USP). Carne bovina ou peixe, ingrediente nobre em alimentos para gatos, quase não há na comida industrializada para esses animais de estimação, afirma o coordenador das pesquisas, o engenheiro-agrônomo Luiz Antônio Martinelli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), no campus de Piracicaba da USP.
Um dos trabalhos analisou 82 amostras de 25 marcas de ração para cachorro, seca e úmida, e constatou que, em média, os produtos têm 60% de nutrientes de origem animal e 40% de vegetais. “A embalagem mostra uma coisa, induzindo o consumidor a pensar na ‘nobreza’ dos ingredientes, mas, na verdade, quase tudo se reduz a milho e frango”, diz Martinelli. “Essa prática não é ilegal, pois a legislação brasileira é muito permissiva.” Os resultados do estudo foram divulgados em um artigo científico publicado no periódico PeerJ em 20 de fevereiro deste ano.
As conclusões do segundo trabalho, que determinou a composição de 52 amostras de 28 marcas de comida para gato, foram parecidas. Embora a porcentagem de proteína animal, essencialmente frango, detectada nas rações para felinos tenha sido em média até maior do que nos alimentos industrializados para cachorro, a quantidade de ingredientes de origem vegetal, novamente milho e um pouco de soja, foi considerada excessiva pelos pesquisadores. Em somente 20% das amostras havia menos do que 10% de conteúdo de origem vegetal, rico em carboidratos. “O cão é um carnívoro flexível e adaptou-se a um regime com mais vegetais ao longo da evolução”, diz a bióloga Janaina Leite, aluna de mestrado no Cena que fez as análises sobre rações de felinos. “Mas o gato é um carnívoro restrito, com menor capacidade para digerir carboidratos. Por isso, alguns autores recomendam que sua dieta seja composta de, no máximo, 10% desse ingrediente.”
Mesmo nas amostras de ração úmida para felinos que enfatizavam no rótulo a presença de carne bovina ou de peixe, a presença dos ingredientes de origem animal não passou de 25%, de acordo com a análise do Cena. O temor dos pesquisadores é de que, a longo prazo, como sugerem alguns estudos, as quantidades exageradas de carboidrato do milho levem os gatos a desenvolver diabetes e problemas renais com mais frequência. Um artigo científico com os resultados detalhados do estudo com as rações de felinos foi submetido para uma revista científica e aguarda aprovação.
Embalagens, às vezes, mostram um bife, mas a ração pode conter só aromatizante de carne bovina, diz Luiz Antônio Martinelli, do Cena-USP
Para inferir quais ingredientes estão presentes nas rações e em que quantidade, o grupo de Martinelli determina a proporção de duas variantes (isótopos) estáveis do elemento químico carbono e duas do nitrogênio encontradas nos alimentos industrializados. Cada grupo de plantas e tipo de proteína animal apresenta uma assinatura isotópica característica. No caso dos vegetais, de acordo com a proporção de dois isótopos de carbono, o raro e pesado carbono 13 e o leve e abundante carbono 12, é possível descobrir se existem plantas do grupo C3 (soja, arroz e trigo) ou do C4 (milho) na composição da comida. Os vegetais são classificados como C3 ou C4 em função do tipo de fotossíntese que fazem. As plantas absorvem gás carbônico e, sob a luz solar, realizam reações químicas que geram moléculas de açúcar com três átomos de carbono (sendo denominadas C3) ou quatro carbonos (as C4).
Um raciocínio semelhante pode ser empregado para determinar que tipos de carne (bovina, suína, de frango ou peixe) fazem parte dos ingredientes de uma ração, só que usando duas diferentes formas de nitrogênio, o escasso nitrogênio 15 e o comum nitrogênio 14. “As análises isotópicas são um método reconhecido de estudo da composição de alimentos e bebidas e também do perfil da dieta de populações”, comenta Martinelli, que já empregou essa abordagem no estudo de vinhos, cervejas e shoyu.
O cuidado extremo com os animais de estimação faz com que seus donos atribuam um maior valor a produtos que teriam ingredientes considerados mais nobres pelos seres humanos. Segundo o grupo de Martinelli, mesmo as rações classificadas como premium, mais caras e supostamente de melhor qualidade, que associam ao seu produto a presença de carne bovina ou peixe, são compostas fundamentalmente de frango e milho, insumos mais baratos no Brasil. “A legislação sugere que os ingredientes das rações devem ser listados no rótulo em ordem decrescente, do mais abundante para o menos, mas isso é só uma recomendação”, afirma Leonardo Galera, aluno de doutorado do Cena, autor principal do artigo sobre a comida de cães. A ausência de obrigatoriedade desse princípio na legislação abre espaço para propaganda enganosa, de acordo com os autores do trabalho. “A ração pode mostrar a figura de um bife no pacote e ter só um flavorizante ou um aromatizante de carne, sem conter carne de verdade”, comenta Galera. O conteúdo ideal de carboidrato que gatos devem ou podem ingerir ainda não é, de fato, um consenso.
Mercado brasileiro de ração para animais de estimação fatura cerca de R$ 20 bilhões por ano
Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet), todas as marcas sob sua representação seguem a legislação brasileira à risca e atendem as normas da comunidade veterinária. A mistura de insumos usados na fabricação das rações segue diretrizes de estudos internacionais, afirma o principal dirigente da entidade. “De fato, entre as proteínas animais, o frango apresenta predominância, e o milho é o mais utilizado entre as matérias-primas vegetais”, diz, em comunicado, o presidente-executivo da entidade, José Edson Galvão de França. “O alimento industrializado para cães e gatos deve conter entre 30% e 60% de ingredientes de origem animal e de 40% a 57% de vegetais. Por fim, entre 3% e 10% de sua composição deve ser de ingredientes de origem mineral, vitaminas ou aditivos.”
Composição qualitativa
As regras atuais de rotulagem para rações no Brasil constam da instrução normativa nº 30, de 5 de agosto de 2009, do Ministério da Agricultura. O documento, que recebeu emendas posteriormente, lista apenas a exigência de se especificar a composição básica “qualitativa” dos produtos, sem especificação de sua quantidade. “A respeito das rotulagens, é obrigação dos fabricantes dar clareza ao consumidor a respeito dos ingredientes contidos em cada produto”, afirma França. “Sobre embalagens e estratégia de marketing, desde que sigam as leis e boas práticas, cada fabricante pode chamar a atenção para os diferenciais do produto e decidir como comunicá-los para o consumidor.” O artigo 43 da instrução normativa afirma que fotos e inscrições nas embalagens do produto não devem “induzir o consumidor a equívoco, erro, confusão, falso entendimento ou engano, mesmo por omissão”, sobre sua composição e qualidade.
Os pesquisadores do Cena não divulgaram os nomes das marcas de ração analisadas. O objetivo inicial dos trabalhos era obter uma visão geral dos produtos no mercado no Brasil, onde há cerca de 130 milhões de pets, entre cães, gatos, peixes e aves de estimação. Porém eles estão colhendo uma amostragem mais ampla dos produtos disponíveis no setor nacional de rações, que fatura mais de R$ 20 bilhões por ano, para futuramente realizar análises de marcas individuais. Também preveem fazer testes que simulem a capacidade de digerir as rações. “Não basta a ração conter determinado ingrediente de origem animal se sua digestibilidade for baixa”, comenta o engenheiro-agrônomo Adibe Luiz Abdalla Filho, outro autor do estudo, que faz estágio de pós-doutorado no Cena.
Artigo científico
Galera, L. A. et al. Carbon and nitrogen isotopic composition of commercial dog food in Brazil. PeerJ. 22 fev. 2019.