Experimente fazer um teste. Por um instante, feche os olhos e preste atenção no som ao redor. Se estiver em uma praia deserta, provavelmente ouvirá ondas quebrando na arrebentação, o sopro do vento e o farfalhar de folhas de coqueiro. A caminho do trabalho, sobressairão ruídos de carros e ônibus ou estalares e guinchos dos vagões do metrô, temperados aqui e ali por algumas vozes. Já em uma região de mata predominam, em especial ao anoitecer, o estridente cricrilar de grilos e cigarras, os zunidos de outros insetos, o coaxo de sapos e pererecas, além do canto de aves noturnas.
Graves, médios ou agudos, os sons gerados pelo ser humano ou pela natureza inundam o planeta e podem oferecer informações essenciais sobre a saúde dos ecossistemas. A miríade de estalos, silvos, trinados, urros, guinchos e estrilos produzidos pelos seres vivos permite conhecer como as diferentes espécies interagem entre si e com o próprio ambiente, além de denunciar os efeitos da interferência humana. Os sons muitas vezes revelam fenômenos que não podem ser vistos nem notados de outra forma, como a alteração na tonalidade do canto de pássaros ou a mudança no horário de comunicação entre os macacos de áreas que sofreram algum tipo de perturbação. Por essa razão, há alguns anos cresce entre os biólogos o interesse em ouvir a natureza e caracterizar os diferentes ambientes, de recifes oceânicos a florestas tropicais, nas mais variadas situações. Eles desejam aprender a distinguir as alterações naturais e cíclicas desses ambientes daquelas decorrentes da ação humana. A expectativa é de que esse conhecimento ajude a monitorar a evolução de áreas naturais ameaçadas de sofrer danos e oriente a recuperação das já degradadas.
“Estamos começando a conhecer, a partir dos padrões de canto e vocalização, como as diferentes espécies animais se relacionam entre si e com o hábitat e também como essa interação é afetada pelas atividades humanas”, afirma a bióloga Renata Sousa-Lima, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), uma das pioneiras no país nos estudos de ecologia da paisagem sonora. Essa área integra – e contribui para – o campo de ecologia da paisagem, que avança além da ecologia tradicional ao considerar que o ambiente não é homogêneo e sofre alterações com o tempo.
Esse ramo novo da ecologia integra conceitos da física, da música, da arquitetura e da psicologia, além, claro, da biologia. É uma forma mais simples e complementar de fazer estudos ecológicos, que dependem essencialmente de observações visuais ou da captura de exemplares para investigar como diferentes espécies interagem entre si, com outras e com o ambiente.
No Brasil, começam a se estruturar grupos de pesquisa no Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, em São Paulo, Minas Gerais e na Bahia que usam os sons produzidos pelos seres humanos e suas máquinas (antropofonia), pelos demais seres vivos (biofonia) e pela parte não viva da natureza (geofonia) para estudar os ecossistemas brasileiros. Os pesquisadores trabalham na caracterização sonora de ambientes marinhos e terrestres e analisam a utilidade de algoritmos que tentam sintetizar a riqueza de características físicas do som em um único índice e, assim, facilitar a análise de quantidades gigantescas de dados. Também desenvolvem estratégias computacionais para identificar eventos sonoros específicos, como o canto de uma espécie ameaçada de extinção, e investigam o impacto que ruídos decorrentes da ação humana desempenham sobre algumas espécies.
“Em muitos casos, o registro sonoro de um ambiente facilita a identificação de espécies em risco de extinção, tarefa que habitualmente depende da visão e da audição de um especialista treinado e da presença de ambos, especialista e espécie, no mesmo ambiente ao mesmo tempo”, conta o engenheiro mecânico Linilson Padovese, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). O pesquisador desenvolve seus próprios equipamentos de gravação em terra e na água e coordena estudos de ecologia de paisagem sonora.
Os registros sonoros de um ambiente também permitem monitorar áreas amplas por períodos contínuos (semanas ou meses). Basta instalar um gravador ou uma rede desses equipamentos, que têm o tamanho de uma pequena mala e são dotados de um microfone pequeno e potente, capaz de captar sons a até 1 quilômetro de distância. De tempos em tempos, é preciso recolher os dados armazenados em cartões de memória e trocar a bateria.
A gravação dos sons da natureza também traz dificuldades. Uma é que nem sempre se consegue, a partir das vocalizações, aprofundar a classificação até o nível de espécie. Além de se conhecer somente uma pequena proporção das espécies vivas no planeta, o som emitido por muitas, mesmo as conhecidas, nunca foi registrado e classificado. Outra complicação é que as gravações geram uma quantidade enorme de dados, tanto maior quanto mais longa a duração dos registros, o que exige o desenvolvimento de ferramentas matemáticas e computacionais para serem analisados.
Origens da paisagem sonora
A origem dessa nova área da ecologia, formalizada em uma série de artigos apresentados em 2011 em uma edição especial da revista Landscape Ecology, está intimamente ligada à música, em especial ao trabalho do músico norte-americano Bernie Krause, um dos criadores da ecologia de paisagem sonora. Krause iniciou sua carreira na década de 1960 como guitarrista de estúdio e trabalhou com bandas de rock, como The Doors e Rolling Stones. Com o colega Paul Beaver, formou a dupla Beaver & Krause, responsável por introduzir o uso de sintetizadores na música pop e no cinema. Juntos executaram a música e os efeitos sonoros em filmes como O bebê de Rosemary (1968), Invasores de corpos (1978) e Apocalypse now (1979), além de séries de TV como A feiticeira (1964 a 1972) e Missão impossível (1966 a 1973), relata Krause no livro A grande orquestra da natureza, lançado no Brasil em 2013 (editora Zahar, tradução de Ivan Weisz Kuck). Sua carreira começou a mudar em 1968, quando ele e Beaver foram contratados por uma gravadora para fazer uma série de álbuns diferentes. O inicial, In a wild sanctuary, seria o primeiro a trazer longos trechos de sons da natureza. Como era pioneiro, significava que os sons teriam de ser gravados pelos dois músicos.
Beaver desistiu, mas Krause levou seu equipamento para uma área de mata afastada de São Francisco e ligou o gravador. Nos fones de ouvido, ajustados no volume máximo, brotou uma gama de sons que jamais havia percebido, como o sussurro da brisa que soprava entre as sequoias ou o bater de asas de um pássaro. Ele não parou mais de registrar. No mesmo ano, criou a fundação Wild Sanctuary e saiu pelo mundo gravando os sons das áreas mais remotas e preservadas, das geleiras dos montes Kilimanjaro, na África, aos confins da Amazônia. Seu trabalho influenciou a forma de captar os sons, com equipamentos de múltiplos canais que permitiam registrar toda uma gama sonora dos ambientes. Antes dele, outros pesquisadores haviam gravado sons de animais terrestres e aquáticos. De modo geral, no entanto, eram registros da vocalização de apenas uma espécie ou de como seus integrantes interagiam, muitas vezes em um só canal.
O uso de sons para investigar as relações entre os seres vivos e o ambiente em mutação levou músicos como Krause, nos Estados Unidos, e Raymond Murray Schafer e Bryan Truax, no Canadá, a iniciarem o desenvolvimento da ecologia de paisagem sonora em fins dos anos 1970 e início dos 1980. Esse novo campo tomou emprestado o termo paisagem sonora do urbanista norte-americano Michael Southworth. Em 1969, Southworth conduziu grupos formados por cegos, surdos e pessoas com visão e audição normal por diferentes regiões de Boston. Ele estava interessado em conhecer como percebiam os sons da cidade e qual parte deles os tornava mais agradáveis ou informativos. Na década seguinte, o termo foi adotado pelo músico canadense Raymond Schafer, da Universidade Simon Fraser, na Colúmbia Britânica, que começou a gravar sons de ambientes urbanos e rurais no Canadá e de outros países no Projeto Paisagem Sonora Mundial (World Soundscape Project).
Truax, do grupo de Schafer, apresentou o conceito de ecologia de paisagem sonora em 1978 no livro Handbook for acoustic ecology. O termo evoluiu até sua concepção atual, consolidada em 2011 em um artigo na revista BioScience encabeçado pelo ecólogo Bryan Pinajowski, da Universidade Purdue, Estados Unidos, e assinado também pelos ecólogos Almo Farina, da Universidade de Urbino, e Nadia Pieretti, atualmente na Universidade Politécnica das Marcas, ambas na Itália, pelo entomologista Stuart Gage, da Universidade Estadual de Michigan, nos Estados Unidos, além de Bernie Krause. Os conceitos, possibilidades de uso e ferramentas da área foram detalhados no mesmo ano em uma série de artigos na Landscape Ecology, escritos por vários desses autores.
O deslumbramento inicial com a riqueza de sons dos ambientes e a percepção de que as atividades humanas poderiam estar contribuindo para acelerar a extinção de um grande número de espécies levaram Bernie Krause e outros pesquisadores, como o músico italiano David Monacchi, ex-aluno de Truax, a saírem pelo mundo captando os sons de ambientes pouco perturbados a fim de criar um acervo sonoro natural do planeta.
Em meio século, Krause acumulou cerca de 5 mil horas de gravações, nas quais estima ter sons de quase 15 mil espécies. Servem para pesquisa, mas também para a música, integrando obras como The great animal orchestra symphony, symphony for orchestra and wild soundscapes, composta pelo britânico Richard Blackford em colaboração com Krause. Sons de cigarras, sapos, corujas, lobos, gibões e baleias-jubarte se misturam aos de violinos, flautas e outros instrumentos de uma orquestra na obra, apresentada pela primeira vez em 2014. Monacchi, trabalhando em parceria com organizações não governamentais de proteção à natureza, dedica-se desde 2002 a captar sons das áreas menos alteradas das florestas equatoriais do planeta, parte do projeto Fragments of extinction.
“O valor desse material é saber como o planeta soa”, afirmou Krause em junho de 2018 ao podcast Science Weekly, do jornal britânico The Guardian. “Ao ouvir trechos muito curtos das paisagens sonoras, de apenas 15 segundos, podemos dizer se o ambiente está saudável, se passa por estresse e, em alguns casos, qual a causa do dano ambiental.”
Usos diferentes no Brasil
No Brasil, em vez de apenas registrar a diversidade de sons da natureza, biólogos, engenheiros e cientistas da computação usam essas informações para caracterizar os ecossistemas e compará-los em momentos e condições diferentes. Em 2015, as biólogas Marina Duarte, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), e Renata Sousa-Lima, da UFRN, em colaboração com os ecólogos italianos Nadia Pieretti e Almo Farina, ambos à época na Universidade de Urbino, começaram a estabelecer as diretrizes de monitoramento de ecossistemas brasileiros.
Em 2012 e 2013, Duarte instalou gravadores em uma área de Cerrado, outra de Mata Atlântica e uma terceira de campos rupestres, no interior de Minas, e registrou durante seis dias os sons de cada um desses ambientes no período seco e no chuvoso. “Não havia padrão internacionalmente aceito para analisar os registros de paisagens sonoras, e os diferentes grupos decidiam de forma subjetiva de quanto em quanto tempo analisar os dados”, conta a bióloga da PUC-Minas. “Decidimos estabelecer um padrão para alguns ecossistemas brasileiros”, explica.
Foram registradas pouco mais de 800 horas de gravação em cada ecossistema e os dados foram analisados usando amostragens a intervalos de tempo crescentes. Os pesquisadores começaram examinando um minuto de som a cada cinco minutos de gravação e aumentaram o intervalo gradativamente até chegar a um minuto a cada hora, segundo artigo publicado na revista Tropical Conservation Science em 2015. Como esperado, à medida que o intervalo entre as amostras analisadas cresce, perde-se mais informação. A intenção era estabelecer o intervalo que equilibrasse viabilidade de coleta e qualidade dos dados, mas eles notaram que a frequência de análise ideal para fornecer o mínimo de informação varia de um ecossistema para outro. “Na Mata Atlântica, é possível examinar um minuto a cada meia hora sem perder muita informação”, explica Duarte. “Já no Cerrado é necessário analisar um minuto a cada 15 gravados e, nos campos rupestres, um a cada cinco.”
Marina Duarte se interessou pela ecologia de paisagem sonora ainda no mestrado, quando estudava o comportamento de saguis-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata) em um parque municipal de Belo Horizonte e notou o impacto dos ruídos urbanos sobre o comportamento dos animais. Ao fazer um mapa de intensidade do som no parque, ela verificou que os saguis evitavam as áreas ruidosas. No doutorado, orientada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) por Marcos Rodrigues e coorientada por Robert Young, da PUC-Minas, ambos etólogos, e por Sousa-Lima, Duarte aproveitou para investigar o efeito da poluição sonora gerada por atividade de mineração em um trecho bem conservado de Mata Atlântica nos municípios de São Gonçalo do Rio Abaixo e Santa Bárbara, a pouco mais de 100 quilômetros a leste de Belo Horizonte.
Lá, ela instalou microfones no interior de um fragmento preservado de floresta e outros na borda, distantes apenas 500 metros da mina Brucutu, uma das maiores áreas de extração de minério de ferro do mundo. Os sons foram gravados por sete dias seguidos, com um intervalo de dois meses, entre outubro de 2012 e agosto de 2013. Explosões, sirenes, barulhos de máquinas e, principalmente, o tráfego de caminhões pesados, que chegavam a 700 por dia em alguns períodos do ano, afetavam boa parte da área estudada.
Os efeitos foram mais intensos na borda da floresta, que ficava a 25 metros da estrada pela qual o minério era transportado. Ali, a complexidade de sons foi significativamente menor do que no interior do fragmento, um indicativo de menor diversidade de espécies. A riqueza sonora na margem da floresta próxima à mina também foi menor do que em outra área de borda bem menos ruidosa, próxima a uma estrada de terra na qual passavam uns poucos carros.
Vocalizações e outros sons produzidos pelos animais eram mais frequentes durante o dia do que à noite no trecho de mata próximo à área de mineração – o contrário ocorreu com a área mais distante. A faixa de frequência em que os insetos produziam seus sons também diferiu entre o primeiro e o segundo ponto. Em uma provável adaptação ao ambiente ruidoso, eles estridulavam em uma faixa de frequências mais estreita (mais grave ou mais aguda do que o ruído das máquinas) na borda próxima à mina Brucutu, enquanto os insetos na área de mata fechada utilizavam uma gama sonora maior. Com as aves ocorreu o oposto, relatam os pesquisadores em artigo publicado em 2015 na revista Biological Conservation. O canto de algumas delas, como o tucanuçu (Ramphastos toco), a pomba-amargosa (Patagioenas plumbea) e a juriti (Leptotila verreauxi), só foram ouvidos em áreas de mata fechada bem distantes da mina.
Os ruídos da extração de minério também interferiram no padrão de vocalizações do macaco Callicebus nigrifrons, mais conhecido como sauá ou guigó, natural de áreas de Mata Atlântica em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Na área pouco ruidosa a comunidade de guigós, que se comunica por meio de roncos graves, era mais ativa ao amanhecer. Já próximo à mina o chamado dos macacos se concentrava no início da tarde, coincidindo com a hora do almoço dos trabalhadores, quando o barulho das máquinas diminuía, segundo artigo publicado em 2017 na revista Primates. “Os dados deixam claro que esses animais competiam com as máquinas por um espaço acústico para se comunicar”, conta Sousa-Lima, coautora do trabalho.
Um acaso levou a pesquisadora da PUC-Minas a perceber que os sons permitem acompanhar a regeneração de um ambiente. Em meio a seu trabalho de doutorado, o fogo consumiu um trecho de Cerrado próximo a sua área de estudo. Ela, então, decidiu monitorar por um ano a região queimada e acompanhar sua recuperação. Os resultados, em preparação para serem publicados em uma revista científica, revelam uma diferença importante entre o ritmo de recomposição da flora e o da fauna. Depois que o fogo consome a vegetação rasteira e queima a casca das árvores, algumas espécies de flores desabrocham e as gramíneas rebrotam em poucas semanas. Os animais, no entanto, só retornam meses depois: primeiro os insetos, seguidos dos anfíbios e, mais tarde, das aves. “Leva quase um ano para uma área queimada exibir novamente a diversidade de espécies que havia antes do fogo”, conta a pesquisadora da PUC-Minas.
Impactos nos vários ecossistemas
Em Natal, Renata Sousa-Lima e sua equipe no Laboratório de Bioacústica da UFRN trabalham na caracterização sonora de outros ecossistemas. No último ano, a bióloga Eliziane Garcia de Oliveira realizou gravações durante a estiagem e o período de chuvas em uma área de Caatinga (ver sonograma e gravações acima). Ela investiga o impacto dos geradores de energia eólica nessa paisagem sonora e, antes de saber se algo mudaria, precisava conhecer o comportamento natural do ecossistema. O resultado das gravações iniciais surpreendeu a equipe. A vegetação seca e esbranquiçada na maior parte do ano é silenciosa. Escuta-se um cricrilar distante, além de pios e chilreios de uma ou outra ave. É só cair a chuva, no entanto, que a Caatinga se transforma: o estridular dos insetos se intensifica, outras aves se põem a cantar e a tagarelice de sapos, rãs e pererecas contribui para preencher a mata de vida. “O ambiente sonoro se torna complexo”, resume Oliveira. É tempo de reprodução.
Nascida em Minas Gerais, Sousa-Lima iniciou sua carreira de pesquisadora na água, estudando a vocalização de peixes-boi-da-amazônia (Trichechus inunguis) e de peixes-boi-das-antilhas (Trichechus manatus), antes de se interessar pela comunicação de outros mamíferos marinhos, as baleias-jubarte (Megaptera novaeangliae), prejudicada pelos ruídos de motores e hélices das embarcações grandes e pequenas. No mar, ela costuma dizer, tudo é som. A luz não penetra muito e as ondas sonoras se propagam mais rapidamente e por distâncias maiores. Sousa-Lima incluiu nas suas pesquisas o ambiente terrestre após concluir em 2007 o doutorado na Universidade Cornell, nos Estados Unidos. Com sua equipe ou em colaboração com grupos de Minas, já estudou o padrão de vocalização do lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) e, mais recentemente, decidiu avaliar como os índices acústicos, estratégias estatísticas usadas para converter uma gama de informações dos registros sonoros em um número, identificam a contribuição dos diferentes grupos de animais em gravações de áudio. Em princípio, esses índices deveriam facilitar a análise dos grandes bancos de dados.
No trabalho coordenado por Sousa-Lima, a bióloga Luane Ferreira, do grupo da UFRN, comparou seis índices com a análise manual da riqueza de registros feita em três áreas de Cerrado na serra da Canastra, em Minas. Segundo estudo publicado em 2018 no Journal of Ecoacoustics, nenhum índice foi capaz de capturar plenamente a riqueza desse ambiente tropical.
“Muitos desses índices foram desenvolvidos para estudar florestas temperadas e é possível que não funcionem bem aqui”, comenta Padovese, da USP. “Nos ambientes temperados as vocalizações ocorrem em faixas de frequência mais separadas, diferente da polifonia que ocupa todas as bandas de frequência do som nas regiões tropicais.”
No Laboratório de Acústica e Meio Ambiente (Lacmam) da USP, Padovese e o engenheiro Elder Santos, seu aluno de doutorado, e o estatístico Paulo Hubert Junior, atualmente em estágio de pós-doutorado, criaram metodologias envolvendo algoritmos estatísticos e de aprendizado de máquina para caracterizar uma paisagem de forma mais completa, por englobar tanto os sons dos animais como os registros visuais do crescimento da vegetação. Atualmente eles realizam os testes iniciais dessa metodologia em dados coletados em uma área de Mata Atlântica de uma grande propriedade rural das Indústrias Nucleares do Brasil (INB) nos municípios de Itatiaia e Resende, no Rio de Janeiro. De maio de 2018 a abril deste ano, o grupo registrou ininterruptamente o som em quatro fragmentos em diferentes estágios de regeneração: inicial, com menos de seis anos de reflorestamento; intermediário, menos de 10 anos; e avançado, mais de 20 anos. Em geral, as avaliações do estágio de recuperação de um ambiente natural levam em consideração apenas o número de espécies de árvores nas áreas amostradas – uma variedade maior de espécies indica que a área vem sendo restaurada há mais tempo.
Análises iniciais indicam que a ferramenta computacional consegue distinguir com 65% de acerto a origem das gravações. “O resultado foi surpreendente para nós, e nos permite vislumbrar a utilização da metodologia para outros problemas de recuperação”, explica Padovese. “Já estamos em conversas com outros grupos para aplicações em paisagens agrícolas e no Cerrado”, conta o pesquisador.
Aprendizado de máquina
A pedido de entidades de conservação ambiental, o grupo da Poli-USP também desenvolveu uma estratégia computacional baseada em machine learning, ou aprendizado de máquina, para identificar nas gravações o canto de algumas aves específicas. No Lacmam, o cientista da computação Bruno Tavares Padovese desenvolveu uma forma de detectar automaticamente nos arquivos sonoros o canto do papagaio-chauá (Amazona rhodocorytha), do papagaio-de-peito-roxo (Amazona vinacea) e do papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis), todos ameaçados de extinção. Segundo Linilson Padovese, a análise das gravações feitas em Itatiaia e Resende permitiram identificar ao menos em dois momentos a vocalização do chauá, que se acreditava estar extinto na região.
Linilson Padovese iniciou seus trabalhos em ecologia de paisagem sonora no oceano. Usando hidrofones e gravadores produzidos no laboratório da USP, ele caracterizou – junto com o engenheiro da computação cubano Ignácio Sánchez Gendriz, hoje pesquisador da UFRN – o ambiente sonoro no Parque Estadual da Laje de Santos e no Parque Estadual Xixová-Japuí, ambos no litoral de São Paulo. Ali, identificaram a presença de baleias-jubarte e diferentes tipos de coros de peixes, que normalmente produzem sons com mais intensidade ao amanhecer e ao entardecer. Os coros do final da tarde começam quase sempre por volta de 18 horas e, em uníssono, ganham progressivamente intensidade. “Alguns seguem por horas e só diminuem no meio da madrugada”, conta Linilson Padovese, que nas gravações identificou ruídos produzidos pela presença de barcos em locais nos quais não deveriam estar. “Ainda não sabemos o que leva os peixes a produzir esses sons intensos.”
Apesar da dificuldade de se encontrar métricas que sejam consensuais e facilitem a análise de milhares de horas de gravação, pesquisadores de diferentes áreas da biologia apostam nos registros das paisagens sonoras dos mais diversos ambientes tropicais como forma de monitorar a biodiversidade do planeta.
Proposta de repositório global
Em um comentário publicado on-line em julho de 2018 na revista Biotropica, um grupo de 15 biólogos e ecólogos de diferentes instituições dos Estados Unidos, da Austrália, da Alemanha e do Brasil reafirmam a necessidade de aumentar o monitoramento acústico de ecossistemas tropicais. O texto propõe ainda a criação de um repositório global com as gravações, que ficariam disponíveis ao acesso de todos. “As gravações de paisagens sonoras fornecem um registro permanente de um determinado local em certo momento e contêm uma riqueza inestimável e insubstituível de informações”, afirmam os pesquisadores no documento, que tem como primeira autora a bióloga Jessica Deichmann, do Instituto de Biologia da Conservação Smithsonian, nos Estados Unidos. Os gravadores baratearam e os sistemas de armazenamento de dados melhoraram. Por essa razão, afirmam os pesquisadores, deixar de coletar dados sonoros sobre os ecossistemas tropicais pode representar uma falta grave com as gerações futuras de pesquisadores e de pessoas que poderiam se beneficiar de pesquisas em ecologia.
Na opinião do grupo, não há tempo a perder. David Monacchi e Bernie Krause usam seus registros de paisagens sonoras realizados ao longo das últimas décadas para também produzir música e, assim, chamar a atenção das pessoas para a perda “da herança sônica de milhões de anos de evolução” atualmente em curso. Em entrevistas e apresentações como as TedTalk, ambos já afirmaram que cerca de metade dos arquivos que acumularam em décadas é de ambientes que não existem mais na forma como foram gravados.
Projetos
1. Paisagens acústicas submarinas no litoral de São Paulo (nº 16/02175-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Linilson Rodrigues Padovese (EP-USP); Investimento R$ 197.321,90.
2. Observatório acústico submarino para monitoramento de parques marinhos (nº 12/04785-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Linilson Rodrigues Padovese (EP-USP); Investimento R$ 271.480,88.
Artigos científicos
PIJANOWSKI, B. C. et al. Soundscape ecology: The science of sound in the landscape. BioScience. v. 61, n. 3, p. 203-16. 2011.
PIJANOWSKI, B. C. et al. What is soundscape ecology? An introduction and overview of an emerging new science. Landscape Ecology. v. 26, p. 1213-32. 2011.
DUARTE, M. H. L. et al. The impact of noise from open-cast mining on Atlantic forest biophony. Biological Conservation. v. 191, p. 623-31. 2015.
PIERETTI, N. et al. Determining temporal sampling schemes for passive acoustic studies in different tropical ecosystems. Tropical Conservation Science. v. 8, n. 1, p. 215-34. 2015.
SOUSA-LIMA, R. S. et al. Signature information and individual recognition in the isolation calls of Amazonian manatees, Trichechus inunguis (Mammalia: Sirenia). Animal Behaviour. v. 63, p. 301-10. 2002.
SOUSA-LIMA, R. S. et al. Gender, age, and identity in the isolation calls of Antillean manatees (Trichechus manatus manatus). Aquatic Mammals. v. 34, n. 1, p. 109-22. 2008.
FERREIRA, L. et al. What do insects, anurans, birds, and mammals have to say about soundscape indices in a tropical savanna. Journal of Ecoacoustics. 27 fev. 2018.
HUBERT, P. et al. A sequential algorithm for signal segmentation. Entropy. v. 20, n. 1, p. 55. 12 jan. 2018.
SÁNCHEZ-GENDRIZ, I. e PADOVESE, L. R. Temporal and spectral patterns of fish choruses in two protected areas in southern Atlantic. Ecological Informatics. v. 38, p. 31-38. mar. 2017.
SÁNCHEZ-GENDRIZ, I. e PADOVESE, L. R. A methodology for analyzing biological choruses from long-term passive acoustic monitoring in natural areas. Ecological Informatics. v. 41, p. 1-10. set. 2017.
DEICHMANN, J. L. et al. It’s time to listen: There is much to be learned from the sounds of tropical ecosystems. Biotropica. v. 50, n. 5, p. 713-8. 2018.
A edição impressa de julho traz uma versão resumida desta reportagem
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