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CAPA

A prova final da fosfoetanolamina

Testes clínicos em seres humanos devem atestar se o composto pode ser útil no tratamento de algum tipo de câncer

Pílula da discórdia:  governo federal aprovou a fosfoetanolamina antes de o composto ter sido testado de forma adequada

LÉO RAMOSPílula da discórdia: governo federal aprovou a fosfoetanolamina antes de o composto ter sido testado de forma adequadaLÉO RAMOS

Nas próximas semanas os supostos efeitos benéficos da fosfoetanolamina sintética, que vem sendo usada há mais de duas décadas sem aval científico como uma tentativa de tratar o câncer, começam a ser definitivamente postos à prova em dois estudos clínicos independentes. Produzido desde a década de 1990 de forma artesanal por Gilberto Chierice, professor titular (hoje aposentado) do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (IQSC-USP), o polêmico composto será, pela primeira vez, testado de forma controlada, de acordo com os protocolos de pesquisa, em seres humanos nos estados de São Paulo, Ceará e Rio de Janeiro. Sua eventual ação sobre diferentes formas de tumores será acompanhada em detalhes por meses, talvez anos se os resultados forem promissores, por médicos e pesquisadores envolvidos nos experimentos. “Ao final dos testes, deveremos sair do campo subjetivo, em que algumas pessoas relatam melhora com o emprego da fosfoetanolamina, e ter informações objetivas sobre se o composto é benéfico ou não para algum tipo de câncer”, afirma Roger Chammas, professor de oncologia básica da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP) e coordenador do Centro de Investigação Translacional em Oncologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).

O primeiro estudo deverá ser o do Icesp. A candidata a droga anticâncer será ministrada, durante dois meses, a um grupo de 10 pacientes com a doença para confirmar sua aparente não toxicidade. “Precisamos validar esse ponto antes de prosseguir com os trabalhos”, diz Paulo Hoff, diretor-geral do Icesp e coordenador do estudo. Se não houver problemas de segurança, as pílulas de fosfoetanolamina passarão a ser dadas a um conjunto de 210 pacientes, divididos em grupos de 21 doentes, que têm os 10 tipos mais comuns de câncer: cabeça e pescoço, mama, próstata, colo do útero, cólon e reto, estômago, fígado, pulmão, pâncreas e melanoma. Caso o composto apresente algum benefício, o experimento poderá ser expandido e incluir até mil pacientes e se prolongar por dois anos.

O protocolo científico desse estudo, financiado ao custo de R$ 2 milhões pelo governo paulista, já foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde (Conep-CNS) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão federal que regula o registro de medicamentos e alimentos. A fosfoetanolamina a ser empregada no estudo foi sintetizada pela empresa PDT Pharma, de Cravinhos, no interior paulista, e está sendo encapsulada pela Fundação para o Remédio Popular (Furp), laboratório farmacêutico oficial do estado de São Paulo. “Assim que recebermos as cápsulas, podemos começar o estudo”, diz Hoff. Seis meses depois de iniciados os testes, será possível ter uma ideia preliminar se o composto apresenta benefícios para algum tipo de tumor, segundo o diretor-geral do Icesp.

A segunda iniciativa envolve o Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade Federal do Ceará (NPDM-UFC) e o Instituto Nacional de Câncer (Inca), do Rio de Janeiro. Em agosto, o NPDM pretende iniciar a chamada fase 1 da pesquisa clínica (testes em seres humanos) com a fosfoetanolamina, na qual quatro diferentes dosagens do composto serão dadas por via oral a um grupo de 60 a 120 voluntários sadios, sem câncer, para checar a sua toxicidade. “Até essa data, devemos ter em mãos todos os relatórios dos estudos pré-clínicos de nosso grupo de trabalho e obtido as autorizações necessárias para iniciar os testes”, diz o médico Manoel Odorico de Moraes, professor da UFC e coordenador do núcleo.

016-023_CAPA Fosfo_243_NOVOSe aprovado nesse ensaio inicial, o composto avança para os estudos clínicos de fase 2 no Inca. Nessa etapa, ele será testado em até 200 pacientes, divididos em quatro grupos de 50 pessoas, cada um com um tipo de câncer que não responde bem ao tratamento-padrão: melanoma, colo do útero, adenocarcinoma de pulmão sem mutação no gene EGFR e de mama triplo negativo (sem três tipos de biomarcadores). “Primeiro vamos testar a fosfoetanolamina em um grupo de 20 pacientes com cada tipo de tumor”, afirma a médica Marisa Maria Dreyer Breitenbach, coordenadora de pesquisa do Inca. Se os resultados forem positivos em pelo menos 10% dos pacientes, o composto será dado ao restante dos doentes do grupo. Por fim, caso continue apresentando ação promissora em uma parcela significativa dos pacientes, a molécula poderá vir a ser testada em uma população maior com câncer. “Temos de fazer todos os testes. Não dá para simplesmente extrapolar para os seres humanos os resultados positivos obtidos em estudos feitos em animais ou em células cultivadas em laboratório”, diz Marisa. Os testes no NPDM-UFC e no Inca fazem parte do conjunto de estudos pré-clínicos e clínicos que estão sendo conduzidos por um grupo de trabalho criado em outubro do ano passado pelos ministérios da Saúde e da Ciência, Tecnologia e Inovação para estudar a fosfoetanolamina. Até R$ 10 milhões estão previstos para serem alocados para as iniciativas do grupo de trabalho, que podem se estender por três anos. Essa verba, no entanto, não deve ser suficiente para cobrir todas as despesas se a fosfoetanolamina chegar aos estágios finais dos testes. Segundo Chierice, que se aposentou da USP em dezembro de 2013, a fosfoetanolamina produzida em seu laboratório teria sido testada em pacientes com câncer na segunda metade dos anos 1990 no Hospital Amaral Carvalho, de Jaú (SP), com o qual seu grupo celebrou um convênio de pesquisa. Por meio de sua assessoria de imprensa, o hospital, no entanto, nega que tenha administrado o composto em seres humanos naquela época.

Definida pela fórmula química C2H8NO4P, a molécula da fosfoetanolamina é produzida naturalmente nos mamíferos, inclusive no homem. É fabricada no retículo endoplasmático, nas células eucariontes, que contêm um núcleo e organelas protegidas por membranas. Está presente em todos os tecidos e órgãos e no leite materno. O composto é definido com um precursor da fosfatidilcolina e fosfatidiletanolamina, moléculas envolvidas na síntese de fosfolipídeos, uma classe de gorduras que são o principal constituinte das membranas celulares. A ligação da fosfoetanolamina com o câncer remonta a 1936, quando foi isolada pela primeira vez de tumores bovinos. Posteriormente, foi sintetizada em laboratório e hoje é vendida como ingrediente químico e aparece na fórmula de alguns suplementos de cálcio comercializados no exterior.

Lances heterodoxos
Os testes em pacientes seriam uma etapa natural da pesquisa clínica se a fosfoetanolamina tivesse percorrido a trajetória legal clássica prevista no processo de registro de um novo remédio junto às autoridades sanitárias. Mas sua história é peculiar, com lances heterodoxos, e o composto se encontra em uma situação juridicamente inusitada desde 14 de abril. Nessa data, uma lei federal, encaminhada pelo Senado e sancionada sem nenhum veto pela Presidência da República, autorizou seu uso por pacientes com câncer amparados por um laudo médico com o diagnóstico da doença. A medida, de apelo popular, foi tomada a despeito de não ter sido publicado um único trabalho científico sobre a segurança e os alegados efeitos positivos da fosfoetanolamina em seres humanos, passando por cima das prerrogativas da Anvisa, órgão encarregado de regular o setor de medicamentos. A lei não especifica onde será fabricada a fosfoetanolamina. A PDT Pharma está responsável por fornecer as pílulas apenas para os testes no Icesp. A USP fechou no fim de março o antigo laboratório de Chierice no IQSC e o Supremo Tribunal Federal (STF) lhe concedeu, no início de abril, o direito de não mais fornecer o composto a doentes assim que o estoque das pílulas acabasse. A Anvisa, as sociedades médicas, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e outras entidades científicas posicionaram-se contra a lei. Afinal, a fosfoetanolamina não é registrada como remédio em nenhum lugar do mundo.

Moléculas candidatas a serem reconhecidas como medicamento precisam passar pela pesquisa pré-clínica antes de serem testadas em pessoas sadias ou pacientes. Nessa etapa, a toxicidade e os possíveis efeitos terapêuticos do composto são observados in vitro, em células de animais ou humanas cultivadas em laboratório, e in vivo, em modelos animais, geralmente camundongos, com uma versão da doença humana a que o pretenso fármaco se destina. Sem apresentar resultados satisfatórios, cerca de 90% das moléculas pesquisadas não passam dessa fase. As que se mostram seguras e com potencial de combater alguma patologia podem se tornar alvo de estudos clínicos, ou seja, serem testadas em seres humanos. “Muitos compostos que exibem bons resultados em experimentos in vitro não apresentam o mesmo efeito em testes com pessoas”, afirma Marisa, do Inca. Se realmente se mostrar eficiente para tratar uma patologia, com mais benefícios do que malefícios, o aspirante ao status legal de fármaco é aprovado e registrado pela Anvisa como um remédio para um determinado problema de saúde. Todo esse processo dificilmente demora menos de 10 anos, pois é preciso ter certeza de que o medicamento produz o efeito desejado sem ser tóxico (ver infográfico).

Células se dividindo: velocidade do processo aumenta o risco de câncer

Thomas Ried/NCI Center for Cancer Research Células se dividindo: velocidade do processo aumenta o risco de câncerThomas Ried/NCI Center for Cancer Research

Há cerca de uma dezena de estudos publicados em revistas internacionais sobre o emprego da fosfoetanolamina somente em linhagens de células de animais e humanas cultivadas em laboratório (in vitro) e também trabalhos em modelos animais com câncer (in vivo). Em linhas gerais, esses trabalhos sugerem que a fosfoetanolamina não é tóxica a células sadias, sem câncer, e pode ter ação contra alguns tipos de tumores: melanoma, mama, leucemia, fígado, pulmão, rim, ósseo e glioblastoma (cérebro). Durvanei Augusto Maria, do Laboratório de Bioquímica e Biofísica do Instituto Butantan, é o autor da maioria desses trabalhos, em parceria com o próprio Chierice e seus colegas.

Nos últimos 10 anos, Durvanei Maria tem se dedicado de forma sistemática a estudar a fosfoetanolamina em experimentos pré-clínicos. “Trabalho com a fosfoetanolamina pura, cristalizada, que é solúvel em água e me foi fornecida pelo professor Chierice”, conta o pesquisador, que atualmente orienta dois mestrandos e um doutorando, com bolsa da FAPESP, para estudar o composto. “Eu a administro nos animais por via endovenosa ou intraperitoneal, não por via oral, como ocorre nos pacientes que tomam a pílula.” Esse detalhe é crucial. As taxas de disseminação, absorção, deposição e eliminação de uma droga podem variar muito em função da maneira como ela é ingerida. Entre os estudos recentes de Durvanei Maria com a fosfoetanolamina destacam-se um artigo no British Journal of Cancer, em novembro de 2013, e outro que saiu em 18 de abril de 2016 na versão eletrônica do International Journal of Nanomedicine.

Segundo o pesquisador do Butantan, o suposto mecanismo de ação da fosfoetanolamina contra o câncer é diferente da forma como atuam os quimioterápicos e a radioterapia. “Acreditamos que ela promove a analgesia e altera a composição de lipídeos [gorduras] em torno das células com câncer”, diz Durvanei Maria. Assim, o composto modificaria o funcionamento das mitocôndrias e estimularia a apoptose (morte programada) das células com câncer e preservaria as sadias. De acordo com Chierice, a fosfoetanolamina atua como uma espécie de marcador das células com câncer, que trabalham de forma anaeróbica, sem oxigênio, enquanto as sadias requerem oxigênio para se manter. Assim – sempre segundo o químico de São Carlos –, o composto ajudaria o sistema imunológico do paciente a combater a doença. “Os médicos falam que há cerca de 150 tipos de câncer, mas só existem esses dois tipos de células, as anaeróbicas e aeróbicas”, afirma Chierice.

Para Roger Chammas, o hipotético mecanismo de ação da fosfoetanolamina proposto por Chierice e seu grupo é interessante e plausível, mas precisa ser demonstrado por mais estudos e denota desconhecimento da complexidade dos sistemas biológicos. “Eles acreditam que o composto seria modificado pelo organismo e geraria fosfolipídeos que então produziriam efeitos contra os tumores”, diz Chammas. “Essa hipótese não foi testada. Precisamos de mais estudos.”

O químico Gilberto Chierice: pílulas eram fabricadas em seu antigo laboratório na USP de São Carlos

LÉO RAMOSO químico Gilberto Chierice: pílulas eram fabricadas em seu antigo laboratório na USP de São CarlosLÉO RAMOS

O conteúdo das cápsulas
Como etapa inicial de suas atividades, o grupo de trabalho criado pelos ministérios da Saúde e da Ciência, Tecnologia e Inovação analisou o conteúdo das cápsulas produzidas em São Carlos, sintetizou a fosfoetanolamina de acordo com o método de Chierice e fez alguns estudos pré-clínicos. Com exceção da constatada ausência de toxicidade e da não promoção de mutações no DNA, a fosfoetanolamina não apresentou resultados animadores para seus defensores. O grupo de Luiz Carlos Dias, coordenador do Laboratório de Química Orgânica Sintética da Universidade Estadual de Campinas (LQOS-Unicamp), analisou o peso e o conteúdo de 16 pílulas. Nenhuma delas tinha o peso alegado, de 500 miligramas (mg) – variou de 233 mg a 368 mg. “O processo de fabricação das pílulas não tinha nenhum controle, é amador”, afirma o farmacêutico Eliezer J. Barreiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fármacos e Medicamentos (INCT-Inofar), que assinou o relatório sobre as cápsulas do composto com Dias.

Dentro das pílulas havia, em média, 32,2% de fosfoetanolamina e mais quatro componentes: 34,9% de fosfatos de cálcio, magnésio, ferro, manganês, alumínio, zinco e bário; 3,6% de pirofosfatos de cálcio, magnésio, ferro, manganês, alumínio, zinco e bário; 18,2% de monoetanolamina protonada; e 3,9% de fosfobisetanolamina. “Esperávamos um composto só e encontramos cinco”, diz Dias. Ainda como parte dos estudos pré-clínicos feitos pelo grupo de trabalho, o Centro de Inovação de Ensaios Pré-Clínicos (CIEnP), instituto privado sem fins lucrativos localizado em Florianópolis, constatou que a monoetanolamina, e não a fosfoetanolamina, apresentou atividade tóxica in vitro contra células tumorais de pele e do pâncreas.  Mas a monoetanolamina se mostrou útil  contra células de câncer apenas em uma concentração elevada, cerca de 3 mil vezes maior do que a usada em quimioterápicos. “A fosfoetanolamina pura é inativa”, afirma João Batista Calixto, professor titular aposentado de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do CIEnP. No Ceará, o núcleo coordenado por Manoel Odorico de Moraes, da UFC, também não registrou toxicidade da fosfoetanolamina contra cinco diferentes linhagens de células humanas e de camundongos cultivadas in vitro, três com tumores e duas sem câncer.

Chierice e Durvanei Maria contestam a maioria dos resultados pré-clínicos apresentados pelo grupo de trabalho montado pelo governo federal. “Nunca disse que as pílulas tinham só fosfoetanolamina”, diz Chierice. “O composto é ácido e precisa ser neutralizado com bases para ser dado às pessoas.” Embora admita que o peso das cápsulas produzidas em seu antigo laboratório em São Carlos poderia apresentar alguma variação, ele estranhou a presença de bário nos testes feitos pela Unicamp. “Eles não devem ter feito os testes com a fosfoetanolamina das cápsulas. Devem ter sintetizado o composto por um método diferente do meu”, diz Chierice. Dias reitera que os testes foram feitos com o conteúdo das cápsulas fabricadas em São Carlos. Durvanei Maria também argumenta que os estudos feitos pelo grupo de trabalho usaram concentrações muito baixas da fosfoetanolamina. Por isso não deram resultados semelhantes às suas pesquisas feitas no Butantan.

Especialista na síntese de polímeros derivados da mamona que podem ser usados em aplicações médicas (ver Pesquisa FAPESP nº 91), Chierice nunca havia trabalhado com a fosfoetanolamina até o fim dos anos 1980. Nessa época, durante um experimento com um eletrodo seletivo para cálcio, deparou-se com o composto. Consultou a literatura científica e sua primeira impressão foi de que a fosfoetanolamina podia ser cancerígena. Em seguida, passou a pensar exatamente o contrário. “Achei que o organismo produzia a fostoetanolamina para se defender do tumor”, conta Chierice. Durante meses, tentou produzir em seu laboratório o composto. Obteve sucesso em sintetizar a fosfoetanolamina ao combinar duas substâncias, a monoamina e o ácido fosfórico, por meio de um método cuja patente pediria em 2008. Era uma forma barata e com alto rendimento de fabricação do composto, de acordo com Chierice.

Procura pela fosfoetanolamina em em frente ao IQSC: Justiça chegou a obrigar a USP a entregar o composto a alguns pacientes, mas hoje a distribuição das pílulas está proibida

Cecília bastos / usp imagens Procura pela fosfoetanolamina em em frente ao IQSC: Justiça chegou a obrigar a USP a entregar o composto a alguns pacientes, mas hoje a distribuição das pílulas está proibidaCecília bastos / usp imagens 

Convênio com hospital
Em 1995, o químico de São Carlos fechou um convênio com o Hospital Amaral Carvalho para testar, durante cinco anos, três iniciativas de seu laboratório: próteses de mamona, um bactericida/fungicida, também extraído dessa planta, e a fosfoetanolamina em pacientes com câncer. Teria sido mais ou menos nessa época que o composto começou a chegar às mãos dos pacientes com câncer. “Inicialmente, forneci a fosfoetanolamina para o hospital fazer os testes”, afirma Chierice, que tem uma cópia do convênio. “Tudo foi aprovado pela comissão de ética do hospital e pelo Ministério da Saúde. A Anvisa ainda não existia.” Com o tempo, segundo o químico, os médicos do hospital teriam visto que os resultados dos testes eram bons e passado a pedir para os próprios doentes retirarem as cápsulas do composto no laboratório de Chierice na USP. Se foram realmente feitos, os testes em pacientes no Amaral Carvalho nunca tiveram seus resultados divulgados e o hospital hoje nega ter dado a fosfoetanolamina aos doentes.

Com o fim do convênio entre o grupo de Chierice e o hospital no ano 2000, doentes da região de São Carlos e de outras partes do estado e do país começaram a se dirigir ao laboratório do IQSC em busca das pílulas da USP que, segundo relatos de pacientes que teriam usado o composto, seriam capazes de curar o câncer. Chierice não se negava a ajudar os doentes e seu laboratório virou alvo de uma romaria silenciosa de pacientes e familiares, por vezes desesperados. O químico calcula ter fabricado por ano cerca de 40 mil cápsulas, suficientes para atender a demanda de aproximadamente 800 pessoas. “Nunca fiz nada escondido. Todos sabiam da fosfoetanolamina. Muitos colegas da USP pegaram as pílulas”, afirma o químico.

A situação se manteve longe dos olhos do grande público durante anos. Em dezembro de 2013, Chierice fez 70 anos e se aposentou compulsoriamente da universidade. Em junho de 2014, uma portaria do IQSC reforçou a proibição federal a respeito da produção e distribuição, por pesquisadores da universidade, de substâncias não aprovadas como medicamento pela Anvisa e Ministério da Saúde. O ato administrativo não mencionava a fosfoetanolamina, mas esse era seu alvo. “Enquanto fui professor da USP, ninguém teve coragem de proibir a produção”, afirma Chierice. No início deste ano, a USP denunciou o químico por curandeirismo e crime contra a saúde pública.

Pacientes que estavam recebendo a fosfoetanolamina de modo informal (e irregular diante da legislação da Anvisa) conseguiram liminares na Justiça e obtiveram o direito legal de continuar a ganhar da USP as pílulas do composto. A USP argumentou que não era laboratório farmacêutico e que não havia pesquisas que autorizassem seu uso em seres humanos. No final do ano passado, as discussões chegaram à Câmara dos Deputados e ao Senado, onde Chierice e outros pesquisadores de seu grupo foram defender o uso do composto.

Os ensaios clínicos que em breve começarão no país não devem pôr fim à polêmica. Chierice não os reconhece totalmente e não dá sinais de que pretende mudar seu ponto de vista. “Estou fazendo testes no exterior com a fosfoetanolamina para confrontar com os resultados obtidos aqui”, afirma ele, sem nomear os laboratórios. “Tenho certeza de que descobri a cura do câncer.” Frases nesse tom criam expectativas que a maioria dos pesquisadores julga irreais. Os oncologistas não acreditam que exista uma única droga capaz de combater todos os cerca de 200 tipos de tumores. “Não desenhamos nossos testes com a esperança de que a fosfoetanolamina possa ser milagrosa, o que não seria justo com o composto”, diz Paulo Hoff, do Icesp. “Vamos analisar seus eventuais efeitos, de forma independente, em cada um dos 10 grupos de pacientes com tumores distintos.”

Projetos
1. Avaliação dos efeitos antitumorais da formulação lipossomal Dodac/ fosfoetanolamina sintética em modelo de hepatocarcinoma (nº 2015/02950-1); Modalidade Bolsas no Brasil – Doutorado Direto; Pesquisador responsável Durvanei Augusto Maria (Instituto Butantan); Beneficiário Arthur Cassio de Lima Luna; Investimento R$ 93.974,40.
2. Avaliação dos efeitos antiproliferativos e de apoptose da formulação lipossomal Dodac associados à fosfoetanolamina sintética em células de carcinoma espinocelular de cavidade oral (nº 2015/00547-5); Modalidade Bolsas no Brasil – Mestrado; Pesquisador responsável Durvanei Augusto Maria (Instituto Butantan); Beneficiário Larissa Kim Higashi de Carvalho; Investimento R$ 49.143,90.
3. Avaliação antitumoral da formulação lipossomal Dodac com o composto fosfoetanolamina sintética em células tumorais de mama humana (nº 2014/02344-1); Modalidade Bolsas no Brasil – Mestrado; Pesquisador responsável Durvanei Augusto Maria (Instituto Butantan); Beneficiário Manuela Garcia Laveli da Silva; Investimento R$ 47.624,90.

Artigos científicos
LUNA, A. C. L. et al. Potential antitumor activity of novel Dodac/PHO-S liposomes. International Journal of Nanomedicine. 18 abr. 2016.
FERREIRA, A. K. et al. Synthetic phosphoethanolamine has in vitro and in vivo anti-leukemia effects. British Journal of Cancer. v. 109. n. 11, p. 2819-28. 2013.

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