A bióloga Helena Coutinho Franco de Oliveira, professora do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, estuda há quase 30 anos o papel do fígado no desenvolvimento da aterosclerose, chamada por alguns especialistas de doença hepática do coração. Isso porque são produzidos no fígado alguns fatores que podem causar a doença nas artérias. Um deles é a VLDL, lipoproteína que, quando cai na corrente sanguínea, se transforma na LDL, um tipo de colesterol que em quantidades elevadas pode se depositar nos vasos sanguíneos e causar problemas cardiovasculares. Em um artigo publicado recentemente na revista Oxidative Medicine and Cellular Longevity, pesquisadores comandados por Helena perceberam que, em camundongos propensos a desenvolver aterosclerose, a produção hepática de oxigênio reativo está relacionada ao tamanho das lesões vasculares. “O fígado desses animais produzia VLDL já oxidada, que se transformava em LDL também oxidada e piorava a aterosclerose”, explica. A doença consiste no adensamento das paredes das artérias, o que restringe o fluxo sanguíneo e pode levar ao infarto e ao acidente vascular cerebral.
Quando foi contratada na Unicamp em 1996, depois de um estágio de pós-doutorado na Universidade Columbia, nos Estados Unidos, Helena encontrou guarida para dar continuidade a essa linha de pesquisa, desenvolvida ao longo da graduação e da pós-graduação na Universidade de São Paulo (USP), no laboratório do biólogo Antonio Carlos Boschero, também professor do IB. Ele foi um dos primeiros pesquisadores da Unicamp a estudar as causas de doenças metabólicas como obesidade e diabetes, no fim dos anos 1960. Outro pesquisador pioneiro na Unicamp é o médico Anibal Vercesi, atualmente professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). As pesquisas de ambos, junto com as de outros colegas, ainda nos primeiros anos da universidade, abriram caminho para profissionais como Helena Oliveira e Mario Saad, professor da FCM que veio da USP nos anos 1980 e fez importantes contribuições para o estudo do diabetes.
“Naqueles primeiros anos havia muitas dificuldades para fazer pesquisa no Brasil”, lembra Boschero, um aposentado “em plena atividade”, como diz. Não havia tantos pesquisadores e a importação de equipamentos e insumos era quase impossível. Sair do país era a solução para realizar experimentos mais complexos e trocar ideias com quem fazia pesquisa de ponta em universidades nos Estados Unidos e na Europa. Entre 1976 e 1978, o biólogo realizou estágio de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica. “Esse período no exterior serviu para fortalecer os laços entre as duas universidades que duram até hoje.”
Em dois períodos (1976-1977 e 1979-1981), Vercesi foi para a Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, também para um pós-doutorado. Quando voltou, inaugurou na Unicamp uma linha de pesquisa na qual mostrou que os íons de cálcio e o estresse oxidativo estavam associados à formação de poros na membrana da mitocôndria, a usina de energia das células. A abertura desses poros gera uma disfunção bioenergética na mitocôndria e induz a morte das células em enfermidades como a aterosclerose, o diabetes e a obesidade. “Foram trabalhos pioneiros demonstrando que esse é um processo sinalizado por íons de cálcio e estresse oxidativo, hoje bem estabelecido”, conta Vercesi.
Cérebro e obesidade
A troca de experiências com pesquisadores estrangeiros foi essencial para os primeiros passos da biologia na Unicamp, que tinha a pesquisa como cerne de seu projeto. O enfermeiro Everardo Magalhães Carneiro, hoje professor do IB, beneficiou-se ainda no mestrado nos anos 1980 de uma colaboração que já vinha de seu orientador, Boschero, com os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês). “Nos três meses que passei lá pude responder perguntas que não conseguia com a tecnologia que havia aqui”, conta Carneiro.
Esse período no exterior e outros, como o estágio de pós-doutorado na Universidade Miguel Hernandez, na Espanha, já na década de 2000, proporcionaram ao laboratório da Unicamp uma metodologia para quantificar os níveis de insulina de forma mais eficiente, fundamental para pesquisas sobre o efeito da desnutrição e da obesidade para a secreção desse hormônio. Os resultados mostram que indivíduos que passaram por uma privação de nutrientes, mesmo que num período inicial da vida, têm mais facilidade para engordar e desenvolver um quadro de diabetes. “A desnutrição gera danos ao pâncreas, o que atrapalha a produção de insulina”, explica.
Carneiro é um dos pesquisadores integrantes do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC, na sigla em inglês), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. Criado em 2013, o centro é um testemunho da formação de um grupo sólido trabalhando nessas questões – com uma estrutura própria fica mais fácil realizar pesquisas de longo prazo, com maior complexidade e impacto.
O OCRC tem como pesquisador responsável o médico Lício Velloso, professor da FCM. Com graduação na própria faculdade e doutorado na Universidade de Upsalla, na Suécia, Velloso faz parte de um grupo que chamou a atenção de pesquisadores do mundo inteiro para o cérebro, mais especificamente para a região do hipotálamo, como uma das partes envolvidas nas causas e nas consequências da obesidade e do diabetes.
Velloso iniciou essa linha de pesquisa no pós-doutorado, sob a supervisão de Mario Saad, um dos primeiros na Unicamp a se aprofundar nos mecanismos de ação da insulina e de resistência a ela, principalmente após concluir um pós-doutorado na Universidade Harvard, em 1992 (ver edição especial FAPESP 50 anos). Um artigo publicado pelo grupo em 2011 na revista Endocrinology foi um dos primeiros a sugerir que o hipotálamo de camundongos obesos apresentava inflamações, e mesmo morte de neurônios, causadas pelo consumo de gordura saturada. Isso fazia com que os animais se tornassem resistentes à insulina e à leptina, abrindo caminho para que o diabetes se instale. A insulina carrega a glicose para dentro das células, onde o açúcar é transformado em energia, e a leptina induz à saciedade.
“Até então os grupos que pesquisavam obesidade prestavam mais atenção ao tecido adiposo. A partir daí, passaram a olhar também para o cérebro”, conta Velloso. Recentemente, outro estudo chefiado por ele constatou que camundongos que ingeriram ácidos graxos insaturados, como o ômega 3, passaram a ter menor mortalidade de neurônios causada pela gordura saturada (ver Pesquisa FAPESP nº 240). A descoberta poderá ajudar a desenvolver fármacos que usem essa via para tratar a obesidade e o diabetes. Velloso também colabora com grupos de pesquisa da Faculdade de Educação Física (FEF), como o de Claudia Regina Cavaglieri.
Microbiota intestinal
Outro trabalho de destaque do grupo de Saad revelou que as bactérias dos intestinos contribuem para tornar as células resistentes à insulina, condição que antecede o desenvolvimento do diabetes. A resistência à insulina se instala quando há uma proporção muito alta de bactérias do grupo Firmicutes, composto de dezenas de espécies, nos intestinos. Essas e outras bactérias formam a microbiota intestinal e podem contribuir para gerar uma inflamação no tecido adiposo, que inicia um processo de ganho anormal de peso. Embora a criação de fármacos não seja o objetivo imediato desses pesquisadores da Unicamp, a busca por moléculas que possam ter efeito sobre obesidade, diabetes, aterosclerose e outras doenças metabólicas não é ignorada. Mesmo antes da criação do OCRC foram patenteados uma pomada cicatrizante e um colírio para diabéticos. A produção de moléculas com potencial farmacológico é um dos trabalhos do químico Ronaldo Pilli, professor do Instituto de Química (IQ) e coordenador de educação e difusão do conhecimento do OCRC.
“Queremos entender como algumas moléculas agem no organismo, seja atuando em uma inflamação ou diminuindo a glicemia, por exemplo”, conta. Para isso, Pilli separa de produtos naturais ou de medicamentos já existentes moléculas com potencial terapêutico para serem testados. “Se há um chá que a literatura diz que diminui a glicemia, fazemos a síntese em laboratório e testamos para ver se de fato funciona.”
Tudo, portanto, passa pela pesquisa básica. Os resultados dos trabalhos desenvolvidos na Unicamp sobre obesidade, metabolismo e aterosclerose já mostram que só se pode pensar em pesquisa avançada nesse campo com a colaboração de profissionais de diversas especialidades, como endocrinologistas, neurologistas, biólogos, químicos e bioquímicos.
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