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genoma funcional

A Xylella se rende e deixa entrar os convidados

Bactéria do amarelinho incorpora fragmento de DNA que pode mudar as funções originais de seu genoma

00Está aberto o caminho para a transformação genética da Xylella fastidiosa , de modo que se possa reduzir a ação indesejada da bactéria causadora da clorose variegada dos citros (CVC), o popular amarelinho, que tornou improdutivo um terço dos laranjais paulistas. A bióloga Patrícia Brant Monteiro, pesquisadora do Fundo Paulista de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), com apoio da FAPESP, desenvolveu um plasmídeo – no caso, uma seqüência de DNA construída em laboratório – com partes do cromossomo da própria bactéria, que conseguiu se integrar ao seu genoma.

Até então, a Xylella não era receptiva a qualquer outro fragmento de DNA. Daqui para a frente, ao transportar genes que alterem as funções originais do genoma, o plasmídeo dará origem às Xylellas mutantes , cuja construção, na medida em que se torne rotineira, deve pôr em ritmo mais acelerado os estudos que buscam a compreensão dos genes da praga do amarelinho – tanto os já conhecidos, quanto, principalmente, os desconhecidos. É esse, justamente, o objetivo prioritário do Projeto Genoma Funcional, iniciado no ano passado pela FAPESP.

Com esse plasmídeo, a Xylella enfim se rendeu. É agora o que se chama de transformante, uma célula modificada geneticamente por meio da introdução de um DNA de origem externa. Processo largamente utilizado para modificar o genoma de outros microrganismos, era inédito no caso da praga do amarelinho. “É a primeira vez que se fazem transformantes de Xylella “, atesta o bioquímico Jesus Aparecido Ferro, coordenador do Funcional. A seu ver, o projeto vai agora “sair da possibilidade remota para a possibilidade real” de realizar descobertas importantes a respeito do genoma dessa bactéria. Segundo Ferro, pode ocorrer até mesmo uma explosão de resultados, pois as equipes do Funcional que se dispuserem a testar genes vão se beneficiar diretamente do novo plasmídeo, resultado, por sua vez, do seqüenciamento do genoma da Xylella , concluído no início do ano.

A inovação de Patrícia, que fez com que o plasmídeo funcionasse, reside essencialmente no emprego de um trecho do cromossomo da própria bactéria, chamado origem de replicação ou, de modo abreviado, OriC. É esse fragmento que inicia o processo de replicação do cromossomo, durantea duplicação da bactéria. Outra abordagem que ela pôs em prática e não se mostrou tão proveitosa foi tentar introduzir na Xylella plasmídeos com origens de replicação vindos de outras bactérias, como a Escherichia coliXanthomonas ou Pseudomonas. Com ela, não funcionou. “Os plasmídeos feitos com origens de replicação de outras bactérias são incompatíveis com o sistema de replicação de DNA da Xylella “, explica. “Podem até entrar na bactéria, mas são instáveis.”

Um ano perdido
A certeza é a filha da persistência, tanto foram as tentativas mal-sucedidas. Entre dezembro de 1998 e junho deste ano, Patrícia trabalhou como pesquisadora do Fundecitrus no Institut National de La Recherche Agronomique (INRA), semelhante à Embrapa brasileira, na cidade portuária de Bordeaux, sul da França. Seu objetivo era o mesmo de outros grupos do Funcional: estudar a biologia molecular da Xylella e construir um plasmídeo que permitisse sua transformação genética. Mas, agora ela sabe, insistiu durante um ano no caminho errado.Uma bactéria muito semelhante à Xylella , a Xanthomonas citrii , que causa o cancro cítrico e é o objeto de outro programa de seqüenciamento financiado pela FAPESP, aceita plasmídeos de outras bactérias. Por essa razão, tinha-se como certo que aXylella também aceitaria. Patrícia testou 15 plasmídeos, por métodos diferentes – e nada.

Em dezembro de 1998, imaginou que poderia conseguir o que queria se usasse partes do genoma da Xylella , mas seu próprio orientador, o biólogo francês Joel Renaudin, a desestimulou a seguir por esse caminho. Ele havia gasto dez anos até conseguir mutantes de uma bactéria que ataca laranjais na Europa, o Spiroplasma citri, com fragmentos do próprio microrganismo. E sugeriu que ela tentasse todos os plasmídeos disponíveis para Xanthomonas , dada a semelhança que havia entre as duas bactérias.

Mineira de Bocaiúva que decidiu ser cientista aos 13 anos, ao conhecer na escola as Leis de Mendel, Patrícia no primeiro momento aceitou o conselho. Os franceses, afinal, são respeitados internacionalmente pelo trabalho com bactérias que atacam os vasos condutores das plantas, como a Xylella . Por essa razão é que estava ali. Mais tarde – após ver centenas de experimentos fracassados e ter acesso ao banco de dados do genoma de Xylella , que mostrava que ela se assemelha, de fato, à E. coli – resolveu apostar na intuição.

Com a ajuda de Diva do Carmo Teixeira, farmacêutica de formação e primeira pesquisadora do Fundecitrus a fazer um estágio no INRA, em 1997 e 1998, que lhe enviava informações por e-mail sobre como cultivar Xylella , Patrícia, às vésperas do Natal do ano passado, começou a montar plasmídeos com trechos copiados, ou melhor, clonados do genoma da bactéria. Desta vez, foram apenas quatro arquiteturas até verificar, no final de junho, dez dias antes de voltar ao Brasil, que uma de suas invenções havia finalmente se incorporado ao genoma da bactéria e se mantinha estável nas células filhas resultantes do processo de divisão celular.

Bagagem preciosa
Da França, além de dezenas de tubos de ensaio com as bactérias transformadas, outros vidros com o plasmídeo na forma de um pó cor de baunilha e umas poucas garrafasde vinho, que aprendera a apreciar, Patrícia trouxe uma planta com flores brancas que promete ser bastante útil na etapa inicial de testes das Xylellas mutantes, provavelmente daqui a dois anos. É a maria-sem-vergonha, mimosa ou vinca (Catharanthus roseus), que cresce facilmente em áreas sombreadas. Essa planta é um dos hospedeiros naturais de Xylella fastidiosa, que, nesse caso, provoca uma doença denominada periwinkle wilt (PW) ou, literalmente, murchamento da vinca.

Os exemplares que Patrícia trazia a tiracolo, delicadamente assentados em embalagens de perfume, com as raízes envolvidas por papel embebido em água, haviam sido há um ano e meio infectados com a linhagem de Xylella usada para o seqüenciamento do genoma, a 9a5c. Tinham problemas de crescimento e as folhas um pouco retorcidas e pontuadas por manchas amarelas. Eram os sintomas não de periwinkle wilt , mas de CVC. Uma raridade, portanto. A partir dessas evidências, a maria-sem-vergonha – bastante pesquisada por conter alcalóides empregados no tratamento de alguns tipos de câncer – torna-se uma alternativa a mais de planta experimental, na qual a bactéria cresce mais rápido do que nos laranjais. Em dois meses, a maria-sem-vergonha apresenta os primeiros sintomas do amarelinho, que demora de cinco a nove meses para despontar nos pés de laranja.

No início do ano, os pesquisadores do Funcional não contavam sequer com uma planta para acompanhar em laboratório o desenvolvimento da infecção causada pela Xylella . O fitopatologista Sílvio Lopes, do Laboratório de Biologia Molecular da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp), resolveu o problema ao demonstrar que a bactéria poderia crescer de modo satisfatório em uma variedade de tabaco (Nicotiana tabaccum), bem mais fácil de cultivar que uma laranjeira (ver Pesquisa Fapesp nº 53). A falta de uma planta modelo era um dos gargalos do Funcional, mas não foi o primeiro. Logo depois de iniciado o projeto, os pesquisadores também sentiam falta de um meio de cultura definido para a Xylella crescer e se multiplicar.

Poucos meses depois, o desafio foi superado com uma formulação elaborada pelas bioquímicas Eliana de Macedo Lemos e Lúcia Carareto Alves, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Jaboticabal, que trabalhavam há cinco anos com a bactéria do amarelinho (ver Notícias Fapesp nº 45). Patrícia arrisca que, com a possibilidade de criar mutantes, seja possível também reduzir o tempo de reprodução da Xylella , hoje de seis a dez horas. É quase uma eternidade quando comparado com os 20 minutos da E. coli, uma bactéria bastante usada em laboratório para multiplicar plasmídeos.

A estrutura bem-sucedida
O plasmídeo que deu certo é chamado de p16KOC por causa das três partes que o constituem: a origem de replicação, um trecho de DNA chamado promotor, ambos copiados da própria Xylella , e o gene que confere resistência ao antibiótico kanamicina, proveniente de um plasmídeo de E. coli. A origem de replicação, OriC, que controla o processo de duplicação do único cromossomo da Xylella , é o maior dos três fragmentos. Tem 1.890 pares de bases nitrogenadas ou nucleotídeos (adenina, citosina, guanina ou timina), elementos básicos do genoma de qualquer ser vivo.

Formado por sua vez de duas partes, o gene dnaA e os dnaABoxes, o trecho OriC permite ao plasmídeo se multiplicar algumas vezes no interior da bactéria, independente do cromossomo. Desse modo, diz a pesquisadora, dá tempo de ocorrer a recombinação homóloga, como é chamada a troca de partes no genoma. A recombinação homóloga, que tem esse nome por se tratar de fragmentos do próprio organismo, é um mecanismo natural dos seres vivos que permite a contínua rearrumação entre genes dispersos entre os cromossomos. “Quanto maior a variabilidade genética, maiores são as chances de uma espécie passar pela seleção natural e evoluir”, diz ela.

Nesse caso, ocorre uma troca única, chamada single crossing over, entre o promotor do plasmídeo e o promotor da Xylella . Algo que, à primeira vista, pode parecer um pouco estranho: é uma troca em que apenas um lado sai ganhando. Em outras situações, quando a operação prossegue, no chamado double crossing over, um cromossomo cede trechos de DNA para outro cromossomo – aí, sim, se dá uma real permuta. Mas haveria também o risco de a bactéria não incorporar outras partes do plasmídeo além do promotor. Na troca única, o resultado final, é a incorporação de todo o plasmídeo no cromossomo da Xylella . É algo incomum. Em outras situações, apenas partes dos plasmídeos saltam para qualquer lugar do genoma.

O outro fragmento do plasmídeo, também copiado do genoma da Xylella pela técnica de PCR (reação em cadeia de polimerase), é o P16SrRNA. Tem esse nome porque dirige a formação de um tipo especial de RNA, o RNA ribossomal, que compõe os ribossomos, compartimentos das células onde se produzem proteínas. Relativamente pequeno, o P16 tem 831 pares de bases. Os promotores regulam a expressão dos genes. Na prática, informam quando e quanto de um gene vai atuar na formação de uma proteína – para quebrar as moléculas de glicose e produzir energia, por exemplo.

Como um chefe de equipe, o P16 dirige a expressão do segundo trecho, o gene Kan, retirado de um plasmídeo de E. coli . O Kan, com 1.100 pares de bases, produz uma proteína que permite à bactéria escapar à kanamicina. É esse gene que seleciona as bactérias cujo cromossomo incorporou o plasmídeo, quando submetidas a um banho de kanamicina, que elimina as que o recusaram, por não serem resistentes a esse antibiótico.

Esses três fragmentos de DNA foram adicionados à estrutura de um plasmídeo de E. coli, o pBS, bastante utilizado no seqüenciamento da Xylella para transportar e multiplicar fragmentos do genoma. Mas agora o caminho é inverso: o mesmo vetor que transporta pedaços da Xylella para longe dela mostra-se, com alguns ajustes, eficaz também para transportar DNA para dentro dela. O próprio plasmídeo, independentemente do que lhe foi adicionado, consegue se duplicar por conta própria, como resultado da ação da origem de replicação colE1ori, vinda de E. coli. Desse modo, ao dar carona para os outros fragmentos de DNA, torna-se apto a se multiplicar no interior da E. coli e da Xylella . Ganhou versatilidade, portanto.

“O plasmídeo tinha de ser o mais semelhante possível para ser aceito e permanecer no cromossomo”, diz a pesquisadora. Mesmo assim, havia o risco de nem sequer entrar na bactéria. Por essa razão, Patrícia não deu chance de a Xylella recusar o hóspede. Por meio de uma técnica chamada eletroporação, submeteu a praga do amarelinho a pulsosde alta voltagem, de 2,5 kiloVolts, quase 200 vezes a energia de uma tomada comum. Foi o bastante para fazer com que a membrana externa da bactéria se tornasse mais permeável e deixasse passar o plasmídeo. Lá dentro, o promotor P16 do plasmídeo emparelha-se com o promotor da bactéria. “Esse foi o único ponto em que a operação progrediu com sucesso”, diz a pesquisadora. O plasmídeo integra-se ao cromossomo quando é copiado pela enzima DNA polimerase, no início do processo de divisão celular (ver ilustração).

Refinamentos
Patrícia criou um espião perfeito. Consegue enganar a Xylella, instala-se em seu genoma, 378, 2 vezes maior, e passa despercebido, de modo que cumpre sua missão, ainda amena. Os plasmídeos enviados até agora são, de certo modo, inofensivos. Têm a tarefa, tão-somente, de testar a vulnerabilidade das defesas inimigas. No centro de pesquisas da Fundecitrus, em Araraquara, Patrícia dedica-se ao desenvolvimento de plasmídeos com versões mais refinadas, evidentemente com missões mais difíceis. Portando genes diretamente envolvidos com a patogenicidade da Xylella no lugar do promotor, por exemplo, o espião pode de fato mostrar como impedir que a Xylella se instale nos laranjais interrompendo a condução de água e sais minerais no xilema, os vasos condutores mais internos dos vegetais mais evoluídos.

À frente do projeto Produção e Caracterização de Mutantes Não-Patogênicos de Xylella fastidiosa, que conta com R$ 42,8 mil mais US$ 45,4 mil financiados pela FAPESP, Patrícia criou um plasmídeo em que encurtou o trecho OriC. Ficou apenas com uma das partes, a região dnaABox, que funcionou do mesmo modo. Com uma vantagem: por ser menor, reduz as chances de encaixes com outras partes do cromossomo. Utilizando alternativas como essa, ela acredita que será posssível anular, bloquear ou, como se diria a partir da expressão knock out, nocautear os genes indesejados, para que não mais se expressem. Outra possibilidade, é acrescentar ao genoma da bactéria genes que dêem alguma vantagem à planta, de modo a informar à planta que a Xylella está se instalando no xilema, antes que sejam entupidos. “Aí é que começa o trabalho que não sei quanto tempo vai demorar”, suspira, ainda com resquícios do sotaque do norte de Minas. O plasmídeo, segundo ela, agora carrega qualquer gene.

Sobrando tempo, quer trabalhar também com as cigarrinhas, os insetos que transmitem a Xylella às laranjeiras. “Quem sabe não é possível fazer com que a bactéria produza uma proteína que possa matar as cigarrinhas?”, imagina. Novamente, a pesquisadora mineira diz ter apenas uma vaga noção de como desenvolver o trabalho. Mas comentava algo parecido ao iniciar a busca de genes para a construção dos plasmídeos.

Patrícia Brant Monteiro, 34 anos, cursou Biologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, fez o mestrado e o doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e o pós-doutorado na Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. É pesquisadora do Fundecitrus desde 1998.

Projeto : Produção e Caracterização de Mutantes Não-Patogênicos de Xylella fastidiosa
Investimento : R$ 42.860,00 mais US$ 45.410,45

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