Em pé à entrada de um contêiner metálico que lembra um vagão de trem sem janela, Andressa Coope prepara uma pasta amarelada rica em gordura de porco. Os ratos-brancos a serem alimentados com essa dieta, mantidos ali dentro em gaiolas empilhadas, chamam a atenção não só porque já são gordos, mas também porque carregam um pequeno cano semelhante a uma antena implantado no alto da cabeça. É por esse tubo que a bióloga injetará substâncias que devem mostrar os efeitos de uma alimentação gordurosa sobre o organismo e reforçar a conclusão recente das equipes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) de que ela faz parte: consumir por muito tempo uma dieta rica em gorduras como a de países ocidentais, a exemplo do Brasil e dos Estados Unidos, além de engordar, pode ser trágico para o organismo.
O excesso de doces repletos de cremes, pães, frituras e carnes gordurosas impede o funcionamento adequado do hormônio insulina, que carrega a glicose para o interior das células de diferentes órgãos e tecidos onde esse açúcar é transformado na energia essencial à vida. Foram necessários 15 anos de trabalho para as equipes de Mário José Abdalla Saad, José Barreto Carvalheira e Lício Velloso na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp comprovarem que esse desajuste bioquímico conhecido como resistência à insulina começa no cérebro e nos músculos. Depois repercute em todo o corpo, reduzindo o aproveitamento da energia dos alimentos e aumentando a fome. Em conseqüência, obesidade, diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e até mesmo câncer – em resumo, os problemas que mais matam no mundo hoje – desenvolvem-se mais facilmente.
Exemplo raro da integração de fenômenos observados no interior das células a outros fenômenos mais globais, que regulam o funcionamento de órgãos e tecidos, os quase 200 trabalhos publicados pelas equipes da Unicamp mostram agora com precisão onde, como e por que surge a resistência à insulina, o primeiro passo para o desenvolvimento de 90% dos casos de diabetes, que afeta 180 milhões de pessoas no mundo. Desses estudos emergem também alternativas promissoras para tratar esses problemas.
Foi mantendo os potes de comida dos animais sempre cheios que a equipe de Saad verificou que as células do hipotálamo e as dos músculos são as primeiras a se tornarem resistentes à ação da insulina, dez dias após o início de uma dieta rica em gorduras. Num segundo estágio esse hormônio deixa de agir adequadamente nas células do fígado e dos vasos sangüíneos. Só depois de cinco meses é que o problema se instala no tecido adiposo, formado por células especializadas em acumular gordura.
Essa seqüência em que o problema se instala permite agora entender melhor por que as pessoas que desenvolvem resistência à insulina geralmente se tornam obesas – embora não explique todos os casos de obesidade, problema que também pode ter origem genética ou em outros tipos de distúrbio hormonal. A principal razão é o fato de tudo começar no hipotálamo, região localizada no centro do cérebro e responsável tanto pelo controle da fome como do gasto de energia. Poucos minutos após as primeiras mordidas em um sanduíche, os níveis de glicose no sangue aumentam e estimulam o pâncreas a liberar insulina. O hipotálamo detecta as taxas mais altas desse hormônio e, por sua vez, reduz a produção de outros dois: a orexina, responsável pela sensação de fome, e o hormônio concentrador de melanina (MCH), que além da fome também controla o metabolismo.
A equipe de Velloso demonstrou recentemente parte desse mecanismo e a conexão entre obesidade e diabetes regulando a produção, no hipotálamo, do MCH. Ratos obesos apresentaram quantidades elevadas desse hormônio no sangue e gastaram menos energia, enquanto os magros tinham menos MCH e queimaram calorias mais rapidamente. Os animais que receberam doses extras desse hormônio tornaram-se resistentes à insulina, obesos e diabéticos. Velloso conta que, por fazer o organismo economizar energia reduzindo a temperatura corporal de modo imperceptível, o MCH tornou-se um bom alvo da indústria farmacêutica para tratar obesidade: deter a ação desse hormônio poderia reduzir a fome e aumentar o gasto energético fazendo a temperatura corporal subir levemente.
Quando a insulina não consegue mais transportar a glicose do sangue para o interior das células, porém, todo esse complexo mecanismo bioquímico desanda. Os níveis elevados de açúcar no sangue continuam induzindo o pâncreas a fabricar insulina, mas mesmo essas doses maiores não são identificadas pelo hipotálamo, que eleva a liberação dos dois hormônios que aumentam a fome e diminuem o gasto de energia, como se o organismo se encontrasse em um jejum prolongado. Como resultado, entra-se num círculo vicioso em que a quantidade de insulina e glicose no sangue mantém-se continuamente elevada, causando danos em células do fígado, dos vasos sangüíneos e dos nervos.
Não fosse o bastante, nos primeiros cinco meses da resistência à insulina as células do tecido adiposo continuam a absorver glicose e a transformá-la em gordura, aumentando os pneuzinhos da cintura. “Essa seqüência sugere que um mecanismo muito antigo de sobrevivência pode ter se mantido até hoje”, comenta Saad. É que, ao se tornar resistente à insulina, o cérebro deixa comer à vontade e acumular energia, como se o alimento fosse escassear em seguida.
A contribuição das equipes de Saad, Carvalheira e Velloso para a compreensão de como surge a resistência à insulina não se restringe à interação entre os órgãos e os tecidos do corpo. Os estudos dos grupos de Campinas, somados aos de outros centros de pesquisa no exterior, também ajudaram a identificar o que se passa nos níveis celular e molecular. Quando o corpo está funcionando bem, a insulina se aproxima das células carregando uma molécula de glicose e se encaixa em proteínas da superfície celular chamadas receptores de insulina. A célula se abre e deixa entrar a glicose, que participa de reações químicas sucessivas até se transformar em energia ou ser estocada como reserva energética na forma de gordura nos tecidos adiposos ou glicogênio no fígado e nos músculos.
Sucessivas refeições pantagruélicas quebram essa rotina, alterando o funcionamento de enzimas que normalmente deixariam a glicose entrar na célula e seguir seu caminho. A equipe de Saad descreveu dois novos mecanismos pelos quais se instauram a confusão celular e a fome insaciável. Em uma dessas vias, que Marco Carvalho-Filho descreveu em 2005 na Diabetes, uma enzima chamada óxido nítrico sintase induzível (iNOS) bloqueia a ação de moléculas da superfície das células a que a insulina se liga. Ao descobrir essas conexões, Saad imaginou uma estratégia de ação: reduzir a resistência à insulina bloqueando a ação da iNOS, caminho que se mostrou promissor segundo estudos preliminares feitos em laboratórios.
O outro mecanismo de resistência à insulina põe em cena outras duas enzimas, conhecidas pelas siglas JNK e IKK-beta. Ativadas pelo consumo de dietas fartas em gordura, essas enzimas também impedem a insulina de se conectar às células e de transportar a glicose para o seu interior, como demonstrou Patrícia Oliveira Prada, da equipe de Saad, em artigo publicado em 2005 na revista Endocrinology. Dessa vez o estrago é grande porque essas moléculas da superfície celular não atendem apenas a insulina. São essenciais também para o funcionamento de outros hormônios, como os que regulam a fome e a pressão arterial. O bloqueio dessas moléculas da superfície celular, ressalta Saad, é uma das origens comuns da obesidade, do diabetes e da hipertensão.
É nas profundezas das células que despontam os mecanismos bioquímicos pelos quais as doenças podem se relacionar. Em 1995, quando fazia pós-doutorado sob a supervisão de Saad, Velloso começou a trabalhar na conexão entre a insulina, que controla a quantidade de glicose em circulação no organismo, e a angiotensina II, que regula a pressão arterial. Seria uma forma de explicar um fenômeno conhecido havia muito tempo: pessoas com diabetes freqüentemente têm hipertensão arterial.
Publicados em 1995 e 1996, os primeiros resultados mostraram como a angiotensina se opõe à ação da insulina e também inspiraram novas estratégias de tratamento. Foi Carla Carvalho, no pós-doutoramento com Saad, quem constatou que medicamentos contra a hipertensão capazes de bloquear a ação da angiotensina servem para tratar diabetes e obesidade, já que reduzem a resistência à insulina nas células de veias e artérias.
Atualmente pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), Carla também mostrou que a ação integrada do excesso de insulina e do hormônio luteinizante, que ajuda a regular o ciclo menstrual, poderia contribuir para o surgimento de ovários policísticos, comuns em mulheres jovens obesas. Ela explicava assim por que emagrecer era uma forma de normalizar o funcionamento dos ovários.
Em busca de explicações ainda mais profundas para essas conexões, Saad desconfiou que as três enzimas – a iNOS, a JNK e IKK-beta – que impediam o funcionamento da insulina poderiam ter uma origem comum. Como ele demonstrou depois de muito trabalho, as três podem ser acionadas por proteínas da membrana celular chamadas TLR-4, um dos tipos de toll like receptors. Camundongos com uma mutação genética que desliga essa proteína aproveitaram melhor a glicose, engordaram menos e não desenvolveram resistência à insulina, mesmo quando submetidos a uma dieta hiperlipídica.
Para Saad, esses resultados sugerem que a TLR-4 seja justamente a conexão que faltava entre o consumo de dietas ricas em gordura e o desenvolvimento de resistência à insulina. Ao se ligarem a esse receptor na superfície das células, as gorduras acionariam uma das três enzimas que bloqueiam a ação da insulina, impedindo o aproveitamento da glicose. Ao desativar o receptor TLR-4 das células dos camundongos, Saad também observou a redução de um tipo de células de defesa do sangue. Essa é uma possível conexão entre a obesidade e uma inflamação muito branda em todo o organismo, nem sempre notada pelos médicos, geralmente observada em quem está bem acima do peso considerado saudável – são consideradas obesas as pessoas com índice de massa corporal (medida obtida pela divisão do peso pelo quadrado da altura) superior a 30: uma pessoa com 1,70 metro de altura é obesa se tiver mais de 87 quilos.
Mas o que aciona a TLR-4? Possivelmente, um tipo de gordura encontrada principalmente em carnes vermelhas, de acordo com um estudo da equipe de Velloso em fase de publicação. “Tudo começa porque comemos muita gordura animal”, diz Velloso. “A fome e as epidemias causadas por doenças infecciosas, que foram as grandes causas de morte de nossos ancestrais, podem ter selecionado os genes que favoreçam o armazenamento de energia e respostas rápidas às infecções”, comenta Saad. O próprio acúmulo de gordura pode ser visto como um mecanismo de defesa caso falte alimento, como nos tempos em que a espécie humana vivia em cavernas. Hoje, porém, o organismo mantém a ordem de comer muito, mesmo que nem sempre a comida seja escassa.
Em todos esses anos de trabalho as equipes da Unicamp constataram ainda que quem se encontra muito acima do peso corre também mais risco de contrair câncer. “O excesso de insulina promove o crescimento dos tumores”, diz Carvalheira, médico que coordena uma das três equipes de Campinas que está mostrando as conexões entre essas doenças. Carvalheira verificou essa associação entre resistência à insulina e a maior propensão a desenvolver câncer em experimento com dois grupos de camundongos. Os dois grupos receberam injeções com células cancerígenas; um deles consumiu uma alimentação rica em gordura enquanto o outro recebeu uma dieta mais balanceada. No final, os que se fartaram com gordura se mostraram 50% mais suscetíveis a desenvolver tumores, e seus tumores eram 1,5 vez maior. Um estudo publicado em agosto na New England Journal of Medicine comprova essa relação, mas de modo inverso, ao comparar como morreram quase 8 mil obesos que passaram por uma cirurgia de redução de estômago – e começaram a comer com moderação – e outros 8 mil que não passaram pela cirurgia. No primeiro grupo, a mortalidade por diabetes caiu 92% e por câncer 60%, embora a mortalidade por acidentes e suicídio tenha sido 58% maior.
“A associação entre obesidade e câncer parece clara”, diz Carvalheira. Ele se valeu desse conhecimento para criar uma forma de combater a falta de apetite que normalmente acompanha o câncer. Em outro experimento, ele verificou que a metformina, medicamento usado no tratamento de diabetes, poderia aumentar a ingestão de alimento em duas vezes e a sobrevida em 30%. Trata-se de uma nova aplicação para um medicamento já conhecido, embora seu uso nesses casos tenha de passar por mais testes até se mostrar realmente seguro.
Não é a única alternativa para tentar combater a resistência à insulina que encontraram nos últimos tempos. “Trazemos para o laboratório perguntas que surgem durante nosso trabalho no hospital”, comenta Saad. Atentos às possibilidades de aplicação do conhecimento que emerge dos estudos com os roedores, ele, Velloso e Carvalheira encontraram algumas formas de reduzir o bloqueio à insulina. Uma delas consiste de fragmentos de DNA chamados oligonucleotídeos, que barraram a ação de uma proteína chamada PGC-1 e deixaram a insulina mais livre para entregar o açúcar às células. Os resultados dos experimentos em camundongos animaram uma empresa farmacêutica nacional a apostar no desenvolvimento de um medicamento a partir desses fragmentos de DNA, que pode chegar às mãos de quem precisa em dez ou quinze anos – se tudo der certo e se forem seguidos os critérios internacionais de desenvolvimento de fármacos. Paty Karol, da equipe de Saad, descreveu em sua tese de doutorado um oligonucleotídeo (fragmento de DNA) que desfez o bloqueio à insulina no hipotálamo de ratos e a reduziu nos músculos e no fígado; em conseqüência, os animais comeram menos. Mas esse composto também está longe de chegar às prateleiras das farmácias.
Até lá, talvez uma forma mais simples de evitar o excesso de insulina seja mesmo fazer exercícios físicos. Marcelo Flores, sob a orientação de Carvalheira, demonstrou que exercícios prolongados de média a alta intensidade reduziram o apetite de ratos por aumentarem a sensibilidade do hipotálamo a dois hormônios que controlam a fome, a insulina e a leptina. Mas os exercícios devem ser regulares e contínuos. Em um experimento realizado na Unicamp, um grupo de ratos teve de nadar durante uma hora por dia por oito semanas, enquanto outro grupo permanecia sedentário. Depois todos os animais se fartaram com alimentos com muita gordura, doces à vontade e bebidas muito calóricas nas oito semanas seguintes. Surpreendentemente, os que haviam feito exercício desenvolveram uma resistência à insulina mais pronunciada que os sedentários. Os ratos que haviam nadado engordaram mais, reproduzindo uma das mudanças mais visíveis que o jogador argentino Maradona viveu depois de ter deixado o campo. Conclusão: embora o sedentarismo seja criticável, fazer exercício regularmente para perder peso e depois parar abruptamente pode ser decepcionante.
O Projeto
Mecanismos moleculares de resistência à insulina no hipotálamo e tecidos periféricos (01/03176-5); Modalidade: Projeto Temático; Coordenador: Mário José Abdalla Saad – Unicamp; Investimento: R$ 1.146.794,71 (FAPESP)