ALBERTO TAKAOKA/FOTOREPORTER/AE
Se a interrupção da vida no útero costuma provocar debates enfurecidos num país de maioria católica como é o Brasil, sugerir que a violência está relacionada à pobreza e pode ser combatida na “origem” deu ainda mais o que falar. Na universidade, então, especialistas da área alertam para que se tenha cuidado ao tomar esse tipo de posição. Mestre pela Faculdade de Educação e advogado, Edison Prado de Andrade avalia que tratar dois graves problemas da sociedade contemporânea dessa forma é uma interpretação reducionista da realidade social e seu efeito mais nefasto é impedir que se compreendam os verdadeiros motivos pelos quais existem nas proporções que se tem observado.
Autor da dissertação Gestão pública municipal e o problema do ato infracional, Andrade afirma que “seguramente” essa abordagem representa uma forma ideológica, no sentido marxista do termo, de explicar a realidade e propor mudanças sociais, pois é um meio de ocultação do real. Assim como acontece com a redução da maioridade penal que, para parte significativa da sociedade brasileira, seria uma forma extremamente eficaz para reduzir drasticamente os índices de criminalidade. O binômio criminalidade-aborto, prossegue ele, também está eivado de conteúdo ideológico e desvia o foco para as análises e mudanças que se fazem necessárias.
Uma vez que a sociedade atual capitalista “é extremamente complexa”, explica ele, não existem respostas fáceis para solucionar seus problemas. “Apenas se nos debruçarmos com vontade para as verdadeiras causas de nossas mazelas e desenvolvermos a coragem e determinação para seu enfrentamento, seremos capazes de fazer com que a criminalidade subsista apenas dentro de seus parâmetros aceitáveis e normais.” Na opinião do pesquisador, dentre os aspectos que devem ter relevância na discussão estão o tráfico de entorpecentes e o desemprego. “E muitos outros que são temas que só podem ser analisados sob uma perspectiva real se compreendermos a crise fundamental existente.”
Para Andrade, o problema do ato infracional e da criminalidade – que se dá não apenas entre os mais pobres, como geralmente se pensa ou afirma, mas também entre os provenientes de classes mais privilegiadas da população – não pode ser reduzido a uma fórmula jurídica pura que o concebe apenas em termos de vontade de praticar o ato contrário ao direito e à lei, e que exclui inteiramente os fatores sociológicos e psicológicos ligados ao problema. “O preconceito existe na medida em que é fruto do desconhecimento, mas, na verdade, há mais do que preconceito.”
ALBERTO TAKAOKA/FOTOREPORTER/AE
Aborto e criminalidade devem ser discutidos separadamente para a socióloga e doutora em saúde pública Kátia Cibelle Machado Pirotta, autora de uma tese de doutorado sobre o comportamento reprodutivo e de seu universo simbólico entre jovens universitários da Universidade de São Paulo (USP). “A proposta de legalização do aborto para diminuir a criminalidade não ajuda no debate sobre essas questões”, enfatiza. Do ponto de vista histórico, a descriminalização do aborto, lembra ela, é uma demanda do movimento feminista e de alguns setores da saúde, que vem sendo defendida através de uma extensa agenda de mobilização.
Um dos pilares dessa mobilização, afirma Kátia, é o tratamento do aborto provocado como uma questão de saúde pública. “A interrupção da gravidez não é um fato novo, essa prática sempre existiu nas sociedades em diferentes tempos históricos. Os estudos sobre a magnitude do aborto provocado estimam em mais de 1 milhão o número de abortos por ano, no Brasil. No entanto, realizados clandestinamente, sem nenhum tipo de responsabilização sobre as condições das clínicas ou sobre danos à saúde da mulher.” Assim, as seqüelas do aborto realizado em condições inadequadas incluem infecções, infertilidade e até a morte de milhares de mulheres todos os anos. “São as mais pobres as que mais se sujeitam a essa situação, pois contam com menos recursos para realizar um aborto em melhores condições.”
Discutir a legalização do aborto como forma de diminuir a criminalidade, destaca Kátia, é o mesmo que tratar da esterilização de mulheres para diminuir a pobreza. Esse tipo de discurso, na sua opinião, está sempre presente no imaginário social – a ideia era que se as mulheres pobres tivessem menos filhos a pobreza reduziria. “Ora, a taxa de fecundidade na sociedade brasileira caiu fortemente nas últimas décadas, sendo hoje de dois filhos por mulher. Estamos próximos do nível de reposição da população. Se a pobreza reduziu, é outra história. Dependendo-se do que se considera como pobreza, que afinal é uma construção social e não pode ser definida por critérios fixos e imutáveis.”
ALBERTO TAKAOKA/FOTOREPORTER/AE
Os direitos sexuais e reprodutivos, ressalta a pesquisadora, são uma conquista da humanidade e representam um marco ético nas questões ligadas a gênero, reprodução, aborto, planejamento familiar, entre outros. “O reconhecimento da autonomia da pessoa para tomar decisões sobre as questões relativas à sua vida reprodutiva e sexual é o ponto-chave das Plataformas do Cairo e de Pequim. Essas plataformas foram reconhecidas pela comunidade internacional e o Brasil é um dos países signatários – que se comprometeram a incorporar esses princípios na sua agenda social e política, e no seu ordenamento jurídico.”
A questão da criminalidade envolve variáveis importantes, muitas das quais relacionadas como a ineficácia de ações estatais diversas, na opinião da socióloga e professora Maria Inês Caetano Ferreira, que fez doutorado sobre homicídios na região do bairro de Santo Amaro, São Paulo. “O discurso do governador carioca, infelizmente, contribui para a disseminação do preconceito contra populações residentes em favelas e bairros de população empobrecida. Fato que não procede, pois a maioria dos moradores dessas localidades não é criminosa”, avalia.
Para Maria Inês, é difícil e perigoso estabelecer também uma conexão direta entre desemprego e/ou pobreza com a criminalidade. A pobreza tradicional, diz ela, bastante comum no Brasil rural décadas atrás, por exemplo, não remete a cenários de violência como atualmente se nota em metrópoles como a do Rio de Janeiro e de São Paulo. “Há variáveis que devem ser consideradas nesse tema. Porém, não parece difícil concluir que o combate ao tráfico de armas e drogas, por exemplo, remete diretamente ao fenômeno da violência nos tempos atuais.”
Luiz Paulo Lima/Folha Imagem
A pesquisadora ressalta que a interpretação sobre a violência se relaciona com a posição dos grupos na sociedade. Porém, no caso do governador carioca, ele não representa apenas um grupo mas toda a sociedade do estado do Rio de Janeiro. “A sua posição é bastante conservadora, atribuindo ao uso da força como a estratégia mais eficaz no combate ao crime. Uso da força, claro, contra as populações de determinadas regiões. Talvez a defesa dessa posição agrade a uma ampla população. O problema é se o uso da força implicar abuso de poder e desrespeito à lei.”
Como sugestão para reduzir a criminalidade, Maria Inês prefere indicar “o mínimo”, que talvez já contribuiria bastante: o emprego eficaz da força policial, dentro dos limites da lei, no combate ao tráfico e, sobretudo, estabelecer uma relação positiva do Estado com a população. Desse modo, justifica a pesquisadora, busca-se que espaços, como favelas, por exemplo, não se tornem lugares onde grupos que usam da força se tornem “donos”, impondo as suas próprias “leis”, uma ordem hierárquica, desigual e violenta para os moradores em geral. “Para tanto, a oferta de serviços e equipamentos públicos é essencial.”
Autor de uma tese sobre mulheres encarceradas, o sociólogo Hélio Roberto Braunstein teme que a proposta de legalização do aborto feita pelo governador carioca possa desencadear uma política pública aos moldes da eugenia, “em que a lógica subliminar estaria calcada no controle de natalidade das famílias pobres, talvez encaradas como ameaçadoras, criminogênicas, segundo o pensamento positivista, e atualmente em alta no Brasil e no mundo, diga-se de passagem”. Portanto, algo que poderia ser adequado enquanto política de saúde e respeito aos direitos das mulheres na verdade pode revelar e desencadear uma estratégia de dominação sobre as famílias e as mulheres cariocas mais pobres.
Luiz Paulo Lima/Folha Imagem
O estudo revela que 46,17% das presidiárias ouvidas têm apenas até dois filhos, e que 21,25% não têm filhos. Somente 13,03% das entrevistadas tinham quatro ou mais filhos. Outros dados considerados por ele importantes apontam que 61,48% delas já haviam exercido alguma atividade profissional antes de ir para a prisão, e que 25,21% trabalharam precocemente antes dos 14 anos.
A experiência profissional por mais de 15 anos de atuação em instituições penais para adultos e adolescentes e, principalmente, a pesquisa por ele realizada indicam para Braunstein que as maiores causas da criminalidade no Brasil estão relacionadas às ausências consistentes e permanentes de políticas públicas integradas nas esferas da educação, da saúde, da cultura, do esporte, da justiça, da economia, do trabalho, do bem-estar social e da segurança pública. “Como no caso do governador do Rio, as propostas são pontuais e emergenciais, fragmentadas e inconsistentes.”
O combate à criminalidade, explica ele, deve ser feito em dois níveis. Primeiro, remediativo e emergencial, precisa conter políticas públicas consistentes e permanentes de repressão ao tráfico, ao porte de armas e à corrupção nas mais diferentes esferas. Depois, o de policiamento. Além disso, é preciso uma política adequada de punibilidade com vistas à reintegração social, e não meramente punitiva e reprodutora da violência.
Outro aspecto importante que deve ser priorizado, destaca Braunstein, seria o tratamento de dependentes químicos como parte de uma política pública de saúde além de ações de empregabilidade para a população. Deve-se também, num segundo nível, que ele coloca como principal, buscar algo preventivo, de médio e longo prazo, que se faz com políticas públicas de Estado consistentes, permanentes e integradas. Nesse discurso não cabe falar em aborto.
Republicar