No mês passado ganharam o mundo dois estudos que mostram quão dramático é o quadro de uma das doenças mais temidas da humanidade, a tuberculose. Um deles descreve uma nova linhagem da principal espécie de bactéria causadora de tuberculose, o bacilo Mycobacterium tuberculosis, que apresenta uma perda do genoma uma vez e meia maior que a maior perda já encontrada em qualquer outra das seis espécies do gênero Mycobacterium que causam tuberculose. Mesmo assim sobreviveu, reforçou a capacidade de escapar das células de defesa do organismo e se tornou a responsável por um em cada três casos de tuberculose registrados no Rio de Janeiro. A infecção por essa linhagem, chamada de RD-Rio por ter sido descoberta lá, está associada com emagrecimento mais intenso, mais escarro de sangue e mais perfurações no pulmão. O outro trabalho, com laboratórios de nove países, mostra que essa linhagem predomina sobre centenas de outras nos Estados Unidos, na América Central e na África. Este mês deve sair um terceiro artigo mostrando que essa mesma variedade causa um terço da tuberculose registrada também em Belo Horizonte.
Nossa hipótese é que essa linhagem pode passar despercebida e se espalhar mais facilmente por ter perdido parte dos genes que levam à produção de proteínas que a denunciariam ao organismo hospedeiro, mas aparentemente não apresenta mais resistência do que as outras ao tratamento com antibióticos”, diz Luiz Cláudio Lazzarini de Oliveira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que voltou ao Brasil no mês passado após 3 anos na Universidade Cornell, Estados Unidos. Esses estudos, de que ele participou, exibem não só um dos mecanismos pelos quais a bactéria da tuberculose sobrevive e ganha vigor, mas também o desamparo diante de uma doença que, quando não mata logo, torna a vida uma sucessão de angústias e dores regidas pela sombra da morte, como o poeta pernambucano Manuel Bandeira retratou nas cartas e nos poemas que ilustram esta reportagem. O Mycobacterium tuberculosis instala-se nos pulmões de 9 milhões de pessoas a cada ano no mundo e mata um indivíduo a cada 15 segundos.
Combatida até 10 anos atrás por meio de campanhas públicas e de exames obrigatórios para ingressar na escola ou em qualquer emprego, a tuberculose saiu do controle por causa da epidemia da Aids, que deixa o organismo mais sensível a microorganismos oportunistas, das variedades de M. tuberculosis que resistem a um ou mais medicamentos e da falta de medicamentos mais eficazes que os atuais. “Há 45 anos não temos nenhum fármaco novo contra a tuberculose”, lamenta Marcus Vinícius Nora de Souza, pesquisador do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Far-Manguinhos), Rio de Janeiro.
Novamente considerada uma das piores ameaças da humanidade, tal qual havia sido no final do século XIX, a tuberculose avança à sombra da desarticulação entre centros de pesquisa, empresas e poder público. Afrânio Kritski, da UFRJ, coordenou uma análise das publicações científicas sobre tuberculose no Brasil de 1986 a 2006 e detectou o abismo entre pesquisa básica e pesquisa aplicada, que dificulta a busca de novos medicamentos, a escassa participação de empresas e a dificuldade, principalmente burocrática, em realizar testes clínicos que possam levar a novos tratamentos. Segundo ele, esse trabalho, publicado no final do ano passado em uma edição especial sobre tuberculose da Revista de Saúde Pública, “sinaliza para onde estamos indo como nação”. “Temos muito paper e pouca coisa de aplicabilidade”, diz. A Rede Brasileira de Pesquisa e Combate à Tuberculose (Rede TB) aflorou há 5 anos com o propósito de aproximar equipes de áreas variadas, evitar visões fragmentadas e deter uma doença que se espalha pelo ar, mas os resultados ainda são essencialmente acadêmicos. “Para controlar a tuberculose, temos de trabalhar todos juntos.”
Infecção oportunista
Em um dos centros de atendimento a portadores de doenças sexualmente transmissíveis da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Leda Fátima Jamal luta para intensificar a quantidade e o ritmo dos diagnósticos de tuberculose entre pessoas especialmente suscetíveis: os portadores do vírus HIV, o causador da Aids. Em outro artigo da Revista de Saúde Pública, Leda e Fábio Moherdaui, do Programa Nacional de Tuberculose, afirmam que a interação entre as duas doenças ameaça as metas do governo para detectar e tratar os casos de tuberculose. “Quando o sistema de defesa do organismo das pessoas com Aids está muito debilitado”, observa Leda, “a tuberculose pode não se manifestar de forma evidente”. O exame de escarro pode levar facilmente a resultados negativos e criar uma dúvida que só poderá ser resolvida com outro tipo de exame, a cultura de bactérias, cujo resultado sai depois de 1 mês. Para complicar, um dos antibióticos mais usados, a rifampicina, pode reduzir a ação dos anti-retrovirais usados para tratar a Aids.
Duas inovações da equipe do Núcleo de Doenças Infecciosas (NDI) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) talvez possam ajudar na luta para detectar a tuberculose mais cedo. A primeira é um método de dupla filtração do escarro que aumenta de 70% para 90% a sensibilidade do método mais rápido e barato de detectar a tuberculose. A segunda é uma adaptação do meio de cultura de Ogawa, de baixo custo, para utilização em maior escala no diagnóstico da tuberculose. “As cinco prefeituras da Região Metropolitana de Vitória adotaram como rotina a cultura de escarro para todos os pacientes com suspeita da doença”, diz Reynaldo Dietze, coordenador do NDI. “O percentual de detecção de casos da doença aumentou em 25%.”
Governos, empresas e fundações internacionais gastaram US$ 413 milhões em 2006 na busca de novos diagnósticos, medicamentos ou vacinas para tuberculose, mas ainda não há nada chegando. Uma das dificuldades, explica Dietze, que participa de uma rede internacional de pesquisa clínica, é que os portadores de tuberculose que participam dos testes têm de ser seguidos por 2 anos depois do tratamento, que demora 6 meses, para verificar se a doença reaparecerá. No Brasil também surgem moléculas com ação contra o M. tuberculosis, a exemplo do composto IQG 607, de um laboratório da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ligado à Rede TB, mas, por muitas razões, seu desenvolvimento dificilmente progride. Em um artigo publicado na Médicine Tropicale, Pascal Millet, da Universidade de Bordeaux 2, considera “hipocrisia, indiferença ou ausência de coordenação” a lentidão de instituições públicas, governos e empresas em desenvolver e testar novos medicamentos que possam deter a expansão mundial das doenças negligenciadas no mundo.
O perigo mora ao lado
Novos medicamentos seriam bem-vindos para deter tanto as bactérias causadoras da tuberculose comum quanto as variedades resistentes a um ou mais medicamentos, que exigem tratamentos mais intensos e incertos. As indomáveis já ganharam o mundo, em especial a China, a Índia e a Federação Russa, que concentram 60% dos 300 mil novos casos de tuberculose multirresistente já registrados e correm também pelo Brasil: desde 2000 apareceram cerca de 2 mil casos de tuberculose resistente a rifampicina e isoniazina, os dois medicamentos mais usados contra a doença. “Temos bacilos multirresistentes porque os fabricamos, por meio de tratamentos errados ou interrompidos”, comenta Fernando Fiuza de Melo, diretor do Instituto Clemente Ferreira, centro médico pioneiro da cidade de São Paulo que detecta em média três novos casos de tuberculose por dia.
Às vezes as bactérias multirresistentes moram ao lado. Joycenea Mendes, da UFRJ, esteve à frente de uma equipe que examinou 63 pessoas com tuberculose, em outubro de 2000 e dezembro de 2002, e encontrou oito delas com cepas resistentes a uma ou mais drogas que viviam em alguma das 12 comunidades pobres do chamado Complexo de Manguinhos, ao lado da Fundação Oswaldo Cruz, onde ocorreram as análises laboratoriais. É uma taxa de tuberculose multirresistente semelhante à encontrada em Moçambique e uma das mais altas do Brasil. Segundo Draurio Barreira, coordenador-geral do programa nacional de controle da tuberculose do Ministério da Saúde, com base nos dados preliminares do segundo levantamento nacional sobre resistência ao tratamento contra tuberculose, os níveis de resistência no Brasil ainda são mais baixos que o padrão internacional, possivelmente porque o tratamento é gratuito e as doses dos medicamentos são maiores do que em outros países. Os resultados finais da análise de cerca de 10 mil amostras devem sair a partir de agosto deste ano.
O bacilo identificado pelo bacteriologista alemão Robert Koch em 24 de março de 1882 desenvolveu variedades ainda mais perigosas, as extramultirresistentes. Capazes de sobreviver a qualquer medicamento, já infectaram quase 30 mil pessoas no mundo e apavoram os moradores de alguns países como a África do Sul. “A extramultirresistente ainda não chegou ao Brasil”, acalma Barreira. Tereza Cristina Scatena Villa, professora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), alerta: “Vai chegar”. Vários estudos mostram que as variedades multirresistentes antecipam a chegada das extramúltis, principalmente em países de atendimento médico precário em que podem faltar antibióticos adequados para essas situações.
A antiga batalha entre a espécie humana e o bacilo de Koch não deve terminar tão cedo. Barreira assumiu em outubro do ano passado o programa nacional de controle da tuberculose e logo começou a batalhar para criar um consenso sobre como tratar desse problema. No final deste mês cada subgrupo de trabalho do comitê assessor que ele reavivou, com representantes de universidades e gestores públicos, deve apresentar as propostas para descentralizar o atendimento (quase metade dos novos casos aparece em hospitais, não em postos de saúde) e ampliar o acesso ao diagnóstico (o mesmo teste feito em 1 dia em alguns estados pode demorar 2 semanas em outros) e o tratamento, que muitas vezes só começa quando o portador do bacilo de Koch está eliminando sangue com a tosse e já emagreceu bastante.
Barreira lembra que as taxas de incidência notificadas da tuberculose no Brasil caíram em média 1,8% ao ano durante os anos 1980 e seguiram estáveis no início da década de 1990. Continuaram a cair ainda mais, em média 2,8% ao ano, mesmo quando a Aids emergiu. “O bacilo causador da tuberculose não está ganhando, mas 5 mil mortes ao ano causadas por uma doença curável é inaceitável”, inquieta-se. Em paralelo a respeitáveis avanços científicos, a antes chamada peste branca, por causa da extrema palidez dos doentes, continua se espalhando. Por causa das deficiências do atendimento médico e da negligência dos possíveis portadores do M. tuberculosis, que preferem atribuir a tosse persistente ao hábito de fumar, o diagnóstico chega todo ano às mãos de quase cem mil brasileiros quando normalmente a tuberculose se encontra em estágio avançado e o bacilo possivelmente já infectou outras pessoas. Até ser medicado, um doente pode contaminar dez pessoas, das quais uma desenvolverá a doença anos depois, geralmente depois de passar por situações que impõem desgastes físicos ou emocionais intensos ou enfraquecem as defesas do organismo.
O tratamento é barato, gratuito e, se seguido corretamente, eficaz: em 2 ou 3 semanas os sintomas mais notáveis, a tosse contínua e a perda de peso, desaparecem. O problema é que em média 12% das pessoas, principalmente entre as camadas mais pobres da população, abandonam o tratamento. Curar essa doença impõe sacrifícios como a abstinência alcoólica de 6 a 9 meses e a administração diária de diferentes combinações de remédios que podem causar náuseas, asma e perda de equilíbrio enquanto combatem bilhões de M. tuberculosis em reprodução, em circulação ou latentes no organismo. Embora mais comum entre os mais pobres, o bacilo instalou-se em outros territórios. “Os médicos normalmente escondem que tiveram tuberculose”, conta Lucia Penna, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Anos atrás, trabalhando em um hospital, ela contraiu tuberculose e sentiu o estigma e o isolamento social que perseguem quem carrega a doença. No entanto, os vírus do sarampo, da hepatite e da pneumonia são muito mais vorazes ao contagiar as pessoas que o bacilo da tuberculose, lembra Fiuza de Melo. Ele próprio passou por duas tuberculoses, uma na pleura, a membrana que protege os pulmões, e outra no pâncreas.
ACERVO HISTÓRICO DO INSTITUTO CLEMENTE FERREIRA/REPRODUÇÃO EDUARDO CÉSARUma carta anônima
“Se os médicos de família e os agentes comunitários participassem mais”, sugere Lucia Penna, “o diagnóstico seria mais rápido e o tratamento seria acompanhado de perto, com garantia de cura”. Fiuza de Melo propõe uma descentralização hierarquizada: cada posto de saúde deveria descobrir e acompanhar os casos novos, que seriam tratados em unidades dotadas de equipes mais bem treinadas. Para ele, seria importante também buscar e tratar os portadores assintomáticos. “Quem transmite mais a doença não são os doentes, mas os indivíduos mais fortes, que tossem mais e emitem mais partículas ressecadas de escarro com bacilos.”
“Dá para controlar a tuberculose desde que haja compromisso político de todos os níveis de governo, desde o ministro até secretários municipais de saúde”, diz Tereza Villa, uma das coordenadoras de um levantamento nacional sobre o tratamento supervisionado (os doentes têm de tomar os remédios na frente de um profissional da saúde). Mesmo um estado pobre como a Paraíba respondeu bem à implantação dessa forma de tratamento: a incidência da tuberculose caiu, mas depois, ao mudarem o governo e as equipes de trabalho em alguns municípios, voltou a subir.
Barreira considera o momento favorável a uma ação intensiva contra a peste branca. Ao lado da dengue, da malária e da hanseníase, a tuberculose é hoje uma prioridade do atual governo federal. Desde o ano passado Barreira conta com o reforço de US$ 27 milhões do Fundo Global contra Tuberculose, a ser usado nos próximos 5 anos na expansão do tratamento supervisionado, do diagnóstico precoce e conjunto com o da Aids e da participação da sociedade civil. Outro ganho é a possibilidade de usar esse dinheiro extra com agilidade. Barreira conta que há pouco tempo, por causa das leis que regem os gastos do dinheiro público, a compra de uma estufa para diagnóstico de tuberculose no Rio demorou quase 1 ano.
Talvez não seja fácil mudar rapidamente a história e os hábitos. Quando dois médicos especialistas em tuberculose se encontram, eles próprios dizem, surgem três propostas de trabalho. “Somos muito bons em diagnosticar problemas, mas nos perdemos ao tentar resolvê-los”, observa Dietze. Souza, da Fiocruz, alerta que, se a atual inércia se mantiver, “corremos o risco de voltar ao início do século XX, quando não havia tratamento eficaz e os doentes eram colocados em sanatórios para respirarem ar puro e repousarem”. Inicialmente os sanatórios eram distantes, já que eram construídos para sanear as cidades. Lá por 1908 o médico Clemente Ferreira recebeu uma carta anônima ameaçando-o de morte caso instalasse um hospital para tuberculosos na cidade de São Paulo. Ferreira guardou a carta e seguiu em frente.
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