Paula GabbaiEntre os séculos XVI e XVII, o que se conhece hoje como ciência moderna começava a nascer e o conhecimento parecia poder vir de qualquer lugar: dos sérios experimentos realizados em laboratórios de virtuoses às tentativas tresloucadas de curiosos, alquimistas e até charlatães. Como distinguir o que tinha fundamento do que não tinha? Na época, fórmulas para a cura de uma doença grave ou para algo mais prosaico, como fazer o vinho durar mais e tornar a terra mais fértil, eram quase sempre segredos de ofício. Pagava-se por elas. Às vezes se matava e morria. Quando copiadas em papel, não era incomum que fossem escritas em código ou alteradas propositadamente.
Era preciso discutir o que então se chamava de nova ciência, cada vez mais distante da ciência antiga. É assim que surge, há 350 anos, na Inglaterra, a Royal Society, uma das primeiras e até hoje mais importantes sociedades científicas do mundo. Na época, o território inglês vivia turbulências. No final da década de 1640 iniciava-se a Revolução Inglesa, guerra civil entre os partidários do rei Carlos I, absolutista, e o Parlamento, liderado por Oliver Cromwell, o que levou ao fim da monarquia por breve período. Quando por fim se restabelece, em 1660, a monarquia se torna parlamentarista.
O clube nasceu exclusivíssimo e nunca deixou de ser. Até hoje houve apenas 8 mil membros, ou fellows, segundo o site oficial. Isaac Newton, Charles Darwin, Albert Einstein foram alguns dos mais ilustres. Quem apresenta antes do nome a abreviatura FRS – Fellow of The Royal Society – ou é um Prêmio Nobel ou pode a qualquer dia receber a distinção. São hoje cerca de 1.450 fellows – como Stephen Hawking ou Richard Dawkins –, entre os quais mais de 75 laureados com o Nobel. Os fellows representam todas as áreas da ciência, medicina e engenharia. Se é fechada para eleger seus membros, a Royal Society é, ao mesmo tempo, uma academia de ciências naturais e aplicadas que se abre para a população, principalmente os jovens: edita publicações, dá prêmios e medalhas, promove aulas, conferências e debates, concede bolsas de pesquisa e exibe seu acervo com frequência em exposições interativas.
Não é, como se pode imaginar, um acervo modesto. Para os pesquisadores há uma infinidade de fontes, tão antigas quanto a Royal Society, que ajudam a reconstituir a história da ciência. Uma história que teve lances cômicos, trágicos e, sobretudo, luminosos. Como têm comprovado Ana Maria Alfonso-Goldfarb e Márcia Ferraz, do Programa de Estudos Pós-graduados em História da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que atua junto ao Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência, este criado há 15 anos e mantido com apoio da FAPESP. Com visitas regulares à Royal Society, elas já descobriram material nunca antes estudado, o que as tem ajudado a realizar reconstituições inéditas.
No meio do gigantesco arquivo, Ana Maria e Márcia descobriram, por exemplo, documentos que mostram o diálogo de seus primeiros membros sobre um solvente universal, o alkahest – atribui-se a criação da palavra a Paracelso, conhecido médico, filósofo e alquimista suíço do século XVI (leia mais em “A agenda secreta da química” na edição 154 da revista Pesquisa FAPESP). É um assunto que hoje, como explicam as pesquisadoras, é de grande interesse para quem estuda os primórdios da ciência moderna, mas no passado despertava pouca atenção dos historiadores dedicados a um estudo mais sério, até pelo teor fantasioso da fórmula.
Paula GabbaiOs papéis que fazem referência ao alkahest foram encontrados no acervo pessoal de um dos fundadores, o médico Jonathan Goddard (1617-1675), e cruzados com outros documentos da época. Com a colaboração de Piyo M. Rattansi, da University College de Londres, as brasileiras publicaram artigo a esse respeito na edição de setembro do Notes & Records, um dos journals da Royal Society – pioneira, vale registrar, nesse tipo de publicação científica. Por que um solvente universal merecia tanta atenção? “Um dos motivos é que, com as autópsias realizadas na época, suspeitava-se que havia mortes causadas por ‘pedras’ no organismo das pessoas”, explica Márcia Ferraz.
Muitos arquivos, como o de Goddard, ainda estão à espera de mais investigação. É material à beça: mesmo quando moravam na mesma cidade, os membros da Royal Society gostavam de trocar ideias por escrito. São páginas e páginas de cartas escritas à mão em diversos idiomas, muitas em latim. “Fazer ciência naquele tempo me faz lembrar como ainda é para nós, no Brasil: um ato de coragem e de imenso esforço”, diz Ana Maria. Com tanto documento para ser lido, não deixa de ser curioso que o lema da Royal Society seja Nullius in verba, expressão em latim que pode ser traduzida, de modo livre, como “não acredite na palavra de ninguém”. Com ela, reafirmava-se a determinação dos fundadores em manter o ceticismo e verificar o que era dito com o máximo de rigor, por meio de experimentos.
Os sábios ingleses evitavam discutir teologia e assuntos de Estado, que podiam criar desentendimentos. Concentravam-se no conhecimento sobre a natureza e as técnicas, principalmente aquilo que se denominava a nova filosofia mecânica ou filosofia experimental, relacionada com assuntos como medicina, astronomia, química, geometria, navegação e mecânica. Nem por isso as reuniões eram menos agitadas: muitas vezes, saíam de lá para fazer experiências nos laboratórios.
Equipe
A Royal Society não foi a única sociedade científica em seu tempo. Entre as pioneiras há, por exemplo, a Accademia del Cimento, em Florença, de 1657, e a Académie Royale des Sciences, de Paris, de 1666. A italiana teve, entre seus fundadores, Galileu Galilei. No século seguinte eram fundadas sociedades semelhantes na Escócia, na Irlanda e na Suécia – esta última responsável, desde o começo do século XX, pelos prêmios Nobel. “Na história das descobertas científicas, deve-se ressaltar a importância do trabalho em equipe. Cada um pode contribuir com seu talento ou conhecimento específico. É o que vemos na própria história da Royal Society”, acrescenta Ana Maria.
Só entre os séculos XVIII e XIX a definição do que é ciência, suas regras e limites se tornam oficiais. É quando a palavra “cientista” passa a designar o que é hoje. “É o especialista que não pode ser confundido com o filósofo ou técnico que antes circulavam pelas áreas mais amplas e indefinidas da filosofia natural ou da filosofia experimental”, frisa Ana Maria. No século XX, quando tudo parecia assentado, o edifício científico é abalado, para usar uma metáfora da pesquisadora. Como lembra, já nas primeiras décadas surgem a teoria da relatividade e a quântica, mais tarde as teorias da genética e da robótica. É também quando a história da ciência, tal como é conhecida hoje, começa a se configurar.
Paula GabbaiPara quem tem curiosidade ou é um pesquisador em busca de fontes, o site da Royal Society oferece vários catálogos on-line. Há livros e journals a partir de 1660, manuscritos e documentos da própria instituição, imagens sob várias formas, informações sobre os fellows e suas obras. Na biblioteca há mais de 70 mil títulos, publicados a partir do século XV. No acervo de imagens, mais de 6 mil fotografias, gravações, gravuras e pinturas. Entre os periódicos, circula desde 1665 o Philosophical Transactions. Outros sete surgiram depois. Entre eles há o tradicional Proceedings, com edições específicas para as ciências exatas e as ciências da vida, o Interface, com artigos relacionados às facetas interdisciplinares das ciências, e o Notes & Records, com textos no campo da história da ciência. Como parte das comemorações pelos 350 anos – calendário que incluiu um número grande de eventos e até programas na BBC britânica –, o arquivo de periódicos pode ser acessado livremente até o próximo dia 30 de novembro.
A Royal Society realiza uma série de encontros em diversos países para discutir, sob perspectiva multidisciplinar, os novos desafios do conhecimento. Este ano, em agosto, o Fronteiras da Ciência ocorreu pela primeira vez no Brasil. Ao lado da Royal Society, participaram da organização a FAPESP, em parceria com British Council, Academia Brasileira de Ciências, Academia Chilena de Ciências e Cooperação Reino Unido-Brasil em Ciência e Inovação. A opção pelo Brasil – na passagem dos 350 anos da instituição britânica – foi vista como uma demonstração da importância conquistada pelo país no contexto internacional da ciência, como lembrou, na ocasião, um dos coordenadores do encontro, Marcelo Knobel, pró-reitor de Graduação e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O evento reuniu palestrantes brasileiros do Instituto Ludwig, da Unicamp, da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Do lado britânico, a programação incluiu palestrantes das universidades de Bath, de Oxford, de Plymouth, de Warwick, de Bristol, de Exeter e do Imperial College de Londres.
Republicar