Em 1989, o Moniliopthora perniciosa, um fungo originário da bacia amazônica, chegou à Bahia e infectou a plantação de cacau da região de Ilhéus e Itabuna. Na década seguinte, a produção anual caiu de 320 mil toneladas para algo em torno de 100 mil toneladas, derrubando a participação do Brasil no mercado internacional de 15% para 4%. A força da doença é avassaladora: o fungo invade as células do cacau, secreta proteínas que interagem com outras proteínas da planta e o ramo da planta seca e hipertrofia. Este processo fisiológico consome o cacaueiro e, no caso da Bahia, também exaure a vida de mais de dois milhões de pessoas. A solução para deter o avanço da doença, do ponto de vista da ciência, é compreender a interação entre o fungo e a planta.
Em 2000, um consórcio liderado pela Universidade de Campinas (Unicamp), apoiado pelo governo da Bahia e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mapeou o genoma do Moniliopthora perniciosa. Nos anos seguintes, um grupo de pesquisadores da Unicamp, entre eles Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, e Jorge Mondego, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), identificaram 27 proteínas do fungo com potencial para reduzir ou paralisar o efeito da doença na planta.
Atualmente, essas 27 proteínas-alvo são objeto do projeto Estudos estruturais de proteínas-chave para as doenças fúngicas do cacau – vassoura-de-bruxa e monilíase –, desenvolvimento de estratégia de controle e entendimento de modelos de patogenicidade, aprovado no âmbito da Rede de Biologia Estrutural em Tópicos Avançados de Ciências da Vida, o SMOLBnet 2.0, lançado pela FAPESP em 2010.
Esta rede de pesquisa, a rigor, começou a ser formada em 2001, quando a FAPESP apoiou a criação da Rede de Biologia Molecular Estrutural (SMOLBnet), formada então por 20 grupos de pesquisa e constituída com a missão de ampliar o conhecimento sobre os genes mapeados nos projetos Genoma Humano do Câncer, Genoma da Cana e nos genomas das bactérias Xylella fastidiosa e Xanthomonas citri, entre outros. A missão envolvia o estudo da estrutura tridimensional e a função de 200 proteínas, com o objetivo de comparar suas manifestações em células normais e em células doentes e buscar pistas para novos diagnósticos e tratamentos.
A Rede SMOLBnet reuniu equipes de pesquisadores de laboratórios que já realizavam a clonagem do gene até a sua expressão em proteínas. Com a implantação do programa, puderam também desvendar a sua estrutura tridimensional. “A estrutura das proteínas está diretamente ligada à sua função. É ela, aliás, quem define a sua função, e essa é uma informação crucial para saber como age nos organismos vivos”, explica Rogério Meneghini, que coordenou a rede SMOLBnet desde o seu início até 2004, quando assumiu a coordenação científica do Programa Scielo, também apoiado pela FAPESP.
Esses grupos puderam contar com uma ferramenta poderosa: o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas – único na América Latina e aberto à comunidade científica –, que, na época, além de uma linha de luz Síncrotron de difração de raios X dedicada à realização de cristalografia de macromoléculas, contava com um laboratório especializado nessa modalidade de investigação, o Centro de Biologia Molecular Estrutural (Cebime) – inaugurado em 1999 e dirigido na época por Mengenhini –, que dispunha de equipamentos de ressonância magnética nuclear e espectômetros de massas para a cristalização de proteínas.
O Cebime treinou biólogos, bioquímicos, químicos e médicos dos 20 laboratórios paulistas nas técnicas utilizadas. “Nosso objetivo era ensinar o processo de investigação da forma tridimensional das proteínas às equipes de pesquisadores que frequentemente se deparam com a necessidade de conhecer a estrutura dessas moléculas”, contou Meneghini ao repórter Ricardo Zorzetto, em reportagem publicada na edição 113 da revista Pesquisa FAPESP de julho de 2005.
A constituição da rede, explica Marie-Anne Van Sluys, do Instituto de Biociências da USP e coordenadora adjunta da área de ciências da vida da FAPESP, instigou a formação de “massa crítica” em biologia estrutural, uma área de pesquisa que ganhou reconhecimento em todo o mundo, principalmente a partir dos resultados dos projetos Genoma. “O SMOLBnet se constituiu numa espécie de rede de contatos que, aos poucos, foi ganhando movimento próprio”, diz ela.
Shaker Chuck Farah, bioquímico do Instituto de Química da USP, estudou proteínas envolvidas em sistemas de secreção e sinalização entre bactérias. “Incorporei técnicas de biologia estrutural em minha linha de pesquisa, tive orientação de pesquisadores experientes e formei pessoas”, conta.
Decidido a investigar a forma espacial de proteínas com que trabalhava havia anos, Sérgio Schenkman, com sua equipe da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), detalhou a estrutura de duas proteínas do inseto transmissor do protozoário Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas. As proteínas atuam em fases distintas da coagulação do sangue: uma inibe a ação da trombina e outra impede o funcionamento do fator XIIa. Ambas apresentam potencial aplicação no tratamento de problemas provocados pelo aumento da coagulação do sangue, como a trombose (veja ilustração).
Em outubro de 2004, uma avaliação internacional dos resultados da SMOLBnet, realizada por uma comissão independente formada por especialistas do Instituto Pasteur, da França, da Universidade de Oxford, Inglaterra, e do Laboratório Nacional de Brookhaven, Estados Unidos, mostrou que o esforço compensou. “A taxa de sucesso desde a obtenção de clones até a determinação das estruturas é comparável à de projetos internacionais”, afirmaram os especialistas. Eles recomendaram a instalação de mais uma linha de luz síncrotron dedicada à cristalografia de macromoléculas para experimentos que demandem o uso de SAD/MAD (Single and Multiple-wavelength Anomalous Diffraction), aberta aos usuários em 2006.
A formação de especialistas, como resultado da rede, permitiu a constituição do SMOLBnet 2.0, em 2010. Nessa segunda chamada, o objetivo era estabelecer parcerias entre grupos de pesquisa em biologia estrutural e grupos de pesquisa em biologia molecular. Foram aprovadas 23 propostas e, desta vez, não há uma coordenação geral. “Os grupos estão emancipados e as pesquisas podem estar vinculadas aos demais programas da instituição”, explica Marie-Anne.
A pesquisa sobre o fungo Moniliopthora perniciosa que ataca o cacaueiro é prova disso. O projeto é coordenado por André Ambrósio, do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio). Junto com Sandra Dias e Ana Zeri, também do LNBio, Ambrósio é responsável pelas investigações com foco em biologia molecular estrutural, por meio de combinação de técnicas de cristalografia, ressonância magnética nuclear, bioquímica e biofísica, com o objetivo de entender a patogenicidade da doença. O projeto teve início com o estudo das 27 proteínas-alvo identificadas por Gonçalo Guimarães Pereira e Jorge Mondego e já resultou em um artigo publicado na revista Biochemistry em 2011. Várias outras das proteínas inicialmente propostas já tiveram suas estruturas resolvidas e estão sendo estudadas funcionalmente. Outras publicações estão sendo preparadas.
O LNBio, aliás, teve origem no Cebime. Constituído como laboratório nacional em 2009, integra hoje o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) e opera as duas linhas de luz de cristalografia de macromoléculas do LNLS e um conjunto de equipamentos de apoio à pesquisa em biologia molecular estrutural.
Determinadas as estruturas das proteínas e definidos os mecanismos de ação, o passo seguinte no projeto é o desenho racional de moléculas que permitam inibir a ação dessas proteínas, desta feita com o apoio de Rafael Guido, do Instituto de Física de São Carlos, e de Ronaldo Pilli, da Unicamp, especialistas, respectivamente, na identificação e síntese de pequenas moléculas, explica Ambrósio. “Estamos ainda tentando estudar, do ponto de vista estrutural, uma proteína associada à membrana mitocondrial de fungos, processo desafiador que, pelo que se sabe, até então é inédito no País”, afirma Ambrósio.
O Projeto
Structural Molecular Biology Network (Smolbnet); Coordenador Rogerio Meneghini – LNLS; Investimento R$ 13.036.329,12
Artigo científico
ZAPAROLI, G. et al. The Crystal Structure of Necrosis- and Ethylene-Inducing Protein 2 from the Causal Agent of Cacao’s Witches Broom Disease Reveals Key Elements for Its Activity. Biochemistry. v. 50, p. 9901-10, 2011.
De nosso arquivo
Mapeamento de proteínas – Edição nº 65 – junho de 2001
Ourivesaria Molecular – Edição nº 113 – julho de 2005