O jornalismo dedicado à cobertura da pesquisa científica em todas as áreas de conhecimento tem suas particularidades, ao mesmo tempo que faz parte do ofício jornalístico em geral. O aniversário de 20 anos da primeira edição do boletim Notícias FAPESP, em agosto de 1995 – transformado em Pesquisa FAPESP na 47ª edição, em outubro de 1999 –, motivou a publicação de uma série de reportagens, da qual esta é a primeira, sobre as origens, o estado da arte e o futuro dessa atividade.
As origens mais remotas do chamado jornalismo científico no Brasil remetem aos jornais O Correio Braziliense e O Patriota no início do século XIX e foram tratadas na edição nº 100 de Pesquisa FAPESP (“Primórdios da divulgação científica”), e cientistas que escreveram para jornais no início do século XX são apresentados na versão on-line desta edição.
Dois precursores, a seguir perfilados, retratam um passado mais recente: Júlio Abramczyk e José Hamilton Ribeiro. Ambos, hoje com mais de 60 anos nessa área, começaram a trabalhar como repórteres quando as páginas dos jornais eram montadas com chumbo quente derretido em máquinas chamadas linotipos e seguem em plena atividade.
DOUTOR REPÓRTER
As mesas de trabalho eram ocupadas quase inteiramente por monumentais máquinas de escrever – os telefones ainda eram raros – quando Júlio Abramczyk, aos 17 anos, começou a trabalhar no jornal paulistano O Tempo, em 1949. Como revisor, apurou a gramática, depois, como repórter, aprendeu a escrever rápido – pelo menos três reportagens por dia. Hoje silenciosas, as redações eram então lugares barulhentos por causa das máquinas de escrever e das conversas entre os jornalistas, que, além de falar alto, em geral fumavam. “Era bom, sempre havia alguém por perto para tirar dúvidas”, contou Doutor Júlio, como é conhecido, aos 82 anos, na sala de sua casa, no bairro de Higienópolis, em São Paulo.
Cardiologista que trabalhou no Hospital Santa Catarina durante 47 anos, até 2013, Abramczyk é um dos precursores do chamado jornalismo científico no Brasil, quando ainda nem existia esse termo, que ele ajudou a implantar, cooperando na criação ou fortalecendo associações e promovendo debates, congressos e cursos para jornalistas. Em 2009 ele completou 50 anos de trabalho contínuo como jornalista escrevendo para a Folha de S.Paulo e nem pensou em parar com sua coluna Plantão médico, publicada aos sábados, que hoje escreve em casa e envia por computador.
Todo dia ele passa algumas horas procurando artigos para apresentar em sua coluna de 200 a 300 palavras. Um dos que examinava na tarde do dia 14 de julho tratava dos danos à saúde causados pela prática de skate. Como bom jornalista, ele adora entrar em assuntos inexplorados. “Olhe aqui”, disse ele, abrindo uma pasta com os recortes de reportagens publicadas em 1972 e lendo os títulos: “‘Crianças espancadas’, ‘A preocupação com os velhos’. Acho que apenas entrei nos assuntos antes de virarem moda”. O entusiasmo do aprendiz convive com a maturidade profissional de quem sabe que tem de checar, sempre, qualquer informação e reconhece os próprios limites: “Nunca escrevi como se eu mesmo soubesse. Até hoje escrevo o que o outro sabe. Não sou eu que vou pontificar”.
Abramczyk saiu de O Tempo no fim do terceiro ano do colegial (hoje ensino médio) para estudar para as provas de medicina, mas, no segundo ano do curso da Escola Paulista de Medicina, hoje Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), voltou ao jornal, dessa vez para a Folha, que procurava um redator médico. O chefe de reportagem, que queria um médico já formado, torceu o nariz ao saber que ele era apenas estudante, mas lhe deu um tempo de experiência. Abramczyk aproveitou para mostrar que era um bom repórter. Várias de suas reportagens ganharam destaque na primeira página. Uma delas tratava da cultura de células do bacilo de Hansen, causador da então chamada lepra, ainda bastante desconhecida e sem tratamento. “Os repórteres eram mais ousados naquela época.”
Abramczyk lembrou-se de que a pesquisa sobre o bacilo de Hansen que motivou sua reportagem tinha sido vista inicialmente com indiferença por José Reis, médico e pesquisador do Instituto Biológico, que escrevia desde 1947 na Folha – ele contribuiu para o jornal durante 55 anos, até pouco antes de sua morte, em 2002. Reis exercitara seu talento em escrever de modo simples na revista O Biológico, que publicava artigos dos próprios pesquisadores, sobre suas especialidades, para os produtores rurais (ele era especialista em doenças de aves).
Abramczyk começou a se interessar por ciência quando era adolescente, ao ler um livro escrito por Rômulo Argentieri, físico nuclear paulista e prolífico divulgador científico. Argentieri escreveu cerca de 30 livros sobre astronomia e trabalhou como redator de ciência para vários jornais de São Paulo de 1939 a 1967. Outro divulgador de amplo alcance foi o agrônomo carioca Eurico Santos, que escreveu para jornais, criou quatro revistas de agronomia e publicou cerca de 50 livros sobre animais e plantas do Brasil de 1910 até o fim da década de 1960 (ver Pesquisa FAPESP no 229). Os especialistas é que escreviam sobre os assuntos mais complicados, mas um colega de Abramczyk na Folha, o jornalista José Hamilton Ribeiro, começava nessa época a escrever sobre ciência e mais tarde fez história com suas reportagens na revista Realidade e no programa Globo Rural.
“Tínhamos prazer em noticiar as novidades da ciência”, recorda Abramczyk. “Hoje talvez falte um pouco de joie de vivre [alegria de viver], como diriam os franceses.” Havia, é certo, uma liberdade maior que a de hoje, como na manchete de 9 de março de 1948 do jornal A Noite, já extinto, assim como O Tempo: “Sensacional descoberta de um cientista brasileiro”, ao noticiar a identificação do físico Cesar Lattes de uma nova partícula atômica.
Na selva
Contratado na Folha em janeiro de 1960, Abramczyk era o responsável pela seção de medicina e biologia. Para saber das novidades, lia as revistas médicas e ia muito a congressos no Brasil e em outros países. “Olhe só quanto espaço eu tinha”, disse ele, mostrando um recorte de 1972 de uma reportagem sua sobre um congresso de imunologia em Lisboa, que saiu em três colunas de alto a baixo de página do jornal.
No início ele estudava durante o dia, chegava no jornal no final da tarde e trabalhava até o início da madrugada, mas às vezes os dois mundos se cruzavam. Foi em uma reunião da Associação Paulista de Medicina que Abramczyk ouviu os colegas médicos falarem de uma pesquisa sobre uma doença transmitida na Amazônia. Ele foi até lá e relatou na edição do dia 9 de fevereiro de 1961: “Os mosquitos são apanhados por uma pessoa que, de braços e pernas descobertas, fica à espera de que os insetos venham picá-la. Antes mesmo de atingir o corpo da isca humana, os mosquitos são apanhados em redomas individuais”. Ele também fez a foto do pesquisador na mata fechada com o vidro na mão, pronto para pegar o mosquito, e com esse trabalho ganhou o Prêmio Governador do Estado em 1961.
“Boas fontes são fundamentais”, disse ele, indicando uma foto amarelada de três homens em uma das estantes. O ano é 1962. À esquerda está Walter Leser, professor de medicina preventiva da Unifesp e secretário da Saúde por duas vezes, ao centro está Abrahão Rotberg, professor de dermatologia também na Unifesp, e à direita Abramczyk. “Eram as minhas fontes. Jantei com os dois durante mais de 30 anos, uma vez por mês. E cada um pagava a conta.”
Ele também se dispunha a avaliar e fortalecer o jornalismo científico. Em 1974, ao cobrir o 1º Congresso Ibero-americano de Periodismo Científico, realizado em Caracas, ele escreveu sobre a finalidade do profissional que se dedica a essa área: “Informar sem deformar e quando possível interpretar. Assumir uma posição decidida em benefício da ciência e da cultura”. Depois, ele próprio ajudou a organizar o 4º Congresso Ibero-americano e o 1º Brasileiro de Jornalismo Científico, em 1982, em São Paulo. Seus artigos sobre jornalismo científico constituem um dos blocos de seu livro Médico e repórter, ao lado de outros, sobre saúde pública, doenças do coração, saúde pessoal e doenças de personalidades.
Como presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), que ele ajudou a fundar em 1978, Abramczyk tentou criar núcleos de jornalismo nos estados. Nem tudo saiu como ele esperava. Poucos núcleos se formaram de fato e avançaram. Para falar sobre jornalismo científico em uma das reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ele convidou um colega da Folha, Claudio Abramo, que, no entanto, disse que o jornalismo científico não deveria existir e que jornalista não deveria ser especializado. Uma de suas ideias era promover estágios de estudantes de jornalismo em laboratórios de pesquisa, de modo que os pesquisadores perdessem o medo de falar com jornalistas e os futuros jornalistas deixassem de ver os cientistas como inacessíveis. De certo modo, essa ideia tomou forma nos cursos promovidos pelo Laboratório de Jornalismo (LabJor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que reúne os dois grupos, pesquisadores e jornalistas, para debaterem problemas comuns.
AS LIÇÕES DE REALIDADE
Em sua fase de maior vitalidade, de 1966 a 1969, a revista Realidade conquistou oito prêmios Esso, o mais importante do jornalismo brasileiro, em reconhecimento a reportagens tão bem-feitas que ainda hoje podem ser lidas com gosto. Dos oito prêmios, quatro foram para reportagens de ciência. Das quatro, três foram escritas por José Hamilton Ribeiro, que diz ter sentido o prazer de ser repórter aos 9 ou 10 anos de idade ao saber que um avião monomotor tinha caído perto de sua cidade, Santa Rosa do Viterbo, perto de Ribeirão Preto, correr para lá com outros meninos, ver a cena, falar com o piloto e depois relatar o acontecimento para os familiares e vizinhos que o aguardavam em sua casa. Aos 80, completados neste mês de agosto, José Hamilton, como é chamado, diz que agora vive “um ritmo muito manso”. Não precisa mais seguir a rotina acelerada de produção do programa Globo Rural – onde começou há 33 anos, imaginando que passaria lá apenas alguns meses, antes de voltar para o Globo Repórter, ambos da TV Globo –, mas ainda viaja e faz reportagens. No final de julho ele estava trabalhando em duas, uma sobre São Gonçalo, um santo português pouco conhecido no Brasil, e outra sobre uma nova raça de boi criada no Pantanal.
José Hamilton Ribeiro começou a trabalhar como jornalista em 1955 no jornal O Tempo e no ano seguinte se mudou para a Folha de S.Paulo. Era repórter da editoria de geral, cobrindo o dia a dia e às vezes ciência. “Naquela época havia um preconceito de que os jornalistas comuns eram mal preparados e não conseguiriam entender e escrever sobre os assuntos de ciência”, conta ele, ao repassar sua trajetória, no escritório de sua casa, no bairro da Aclimação, em São Paulo. “Do outro lado, o cientista não acreditava que um repórter geralmente novo seria capaz de entender um fenômeno com tal profundidade que pudesse escrever sobre aquilo para as pessoas comuns.” Por esse motivo, havia os especialistas – em agronomia, medicina ou engenharia – que escreviam sobre suas respectivas áreas nos jornais. Um deles, na Folha, era o médico carioca José Reis, que um dia aconselhou o jovem repórter a ler as revistas especializadas para se preparar melhor para as reportagens.
Sua prática nessa área intensificou-se depois que ele saiu da Folha e, após uma temporada na revista Quatro Rodas – nessa época ele cursou e concluiu Direito –, entrou para a Realidade em 1966. Ali ele apurou o olhar e a habilidade de descrever pessoas, lugares e situações. Nos primeiros anos, até ser bloqueada pela censura à imprensa, a revista publicava reportagens longas, muito bem escritas, sobre temas surpreendentes, como a vida difícil, cercada de preconceitos, das mulheres desquitadas.
“A chave da história da Realidade, em todas as áreas, era o tratamento de texto. Em jornal o chamado copidesque corrigia e às vezes reescrevia o texto do repórter”, disse ele. “Na Realidade, o editor de texto trabalhava o texto com o repórter, levantava problemas, dizia ‘o começo não está bom’, ‘está acabando por morte súbita’ e pedia para o repórter construir melhor os personagens e as situações, para a história deslizar melhor. Porque, em um texto longo, se eu não entendo alguma coisa, deixo de ler o resto.”
Aos poucos ele e os outros repórteres que escreviam sobre ciência, como Marcos de Castro, que ganhou um Prêmio Esso com uma reportagem sobre ciência na fase inicial da revista, aperfeiçoaram o método de lidar com assuntos complicados e com os cientistas. “Quando me cabe fazer reportagem sobre medicina, engenharia ou agronomia, tenho uma fonte básica, de preferência mais de uma, e peço ao entrevistado principal uma leitura do copião, a primeira versão, antes da edição do texto, para corrigir qualquer erro técnico. Não era para a fonte avaliar a estrutura, se o texto estava bonito ou feio, mas apenas dizer ‘esse conceito não é assim, vamos explicar melhor’.”
Na Realidade, essa prática, que depois se tornou habitual, nasceu com uma reportagem sobre o primeiro transplante de rim no Brasil, realizado em São Paulo. Os médicos tinham evitado a imprensa com medo do sensacionalismo, mas concordaram em atender a equipe da revista. “Foi uma negociação, um pacto de confiança. Um assistente do médico leria o material bruto, para evitar qualquer erro. Fora isso, o trabalho seguia o ritmo de sempre, com as mesmas preocupações da edição de texto.” A reportagem, publicada em dezembro de 1966, começa com uma descrição do homem que ganharia um rim – “Valter Mendes de Oliveira, 41 anos, três filhos, sócio de uma torrefação em São Paulo, é bastante cuidadoso com a saúde. Ele já andou bem ruim e agora tem suas cautelas. Logo cedo, na hora do café, toma sua pílula diária. É um remédio caro, que vem do exterior e que só seis pessoas no Brasil usam.” – e só depois apresenta os médicos.
Viver, antes de escrever
A construção da reportagem, que rendeu a José Hamilton o primeiro de seus sete Esso, constitui um dos capítulos do livro Jornalismo científico: teoria e prática, lançado em 2014 em coautoria com Jose Marques de Melo, professor da Universidade de São Paulo e da Universidade Metodista. Sua preferida, porém, é uma que apresenta Chico Heráclio, um autêntico coronel do Nordeste, foi publicada em novembro de 1966 e republicada no livro recém-lançado O jornalista mais premiado do Brasil, resultado de 10 anos de pesquisas do jornalista Arnon Gomes.
Dos tempos da Realidade, José Hamilton lembra de outra lição importante, o que chamou de vivência. “Nenhum repórter escrevia sem ter um mínimo de conhecimento prático sobre o assunto. Se fosse escrever sobre uma colônia de pescadores, teria de passar alguns dias lá, conviver com os pescadores, comer a mesma comida que eles. Quando fosse escrever, escrevia sobre o que conhecia, não era só de ouvir dizer e só o que outras pessoas observavam.” Ele sabe que hoje às vezes é preciso dar uma notícia com base apenas em um artigo científico, “um voo de pássaro”, como ele chamou, mas, ponderou, pode-se também “falar com o autor, ver o laboratório, ver com quem interage e as condições em que trabalha. Depende do que se quer fazer”.
Enquanto estava na Realidade, José Hamilton deu aulas de jornalismo na Faculdade Casper Líbero (onde estudou, mas não terminou o curso), na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e nas Faculdades Objetivo. Uma das aulas foi em um anfiteatro, com uma porta de cada lado da mesa do professor, em frente ao auditório com os alunos sentados. De repente uma mulher entrou gritando: “Socorro! Ele quer me matar!”, e em seguida, pela outra porta, entrou um homem com o que parecia ser uma faca na mão, também gritando: “Vou te matar!”. Eram apenas dois atores amadores, que saíram logo da cena. O professor pediu para os alunos escreverem sobre o que tinham visto. Na aula seguinte, supreendeu a todos mostrando que a cor da roupa do homem e da mulher variava de um relato para outro, e o homem, em vez do canivete que de fato segurava, teria um punhal ou até mesmo uma pequena espada. “Se vocês, futuros jornalistas, em uma condição privilegiada, sentados e com uma visão ampla da cena, viram com tantas distorções, imaginem a pessoa comum”, ele comentou. “Vocês não podem confiar demais apenas em sua observação.” Ainda preocupado com a formação de profissionais nesse campo, José Hamilton foi presidente da Associação de Jornalismo Científico (ABJC) de 1999 a 2001, em uma época de perda contínua de sócios, e ajudou a organizar um congresso em Florianópolis.
Depois de alguns anos dirigindo jornais de Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e Campinas, José Hamilton voltou a São Paulo no início dos anos 1980 para trabalhar no Globo Repórter – sua primeira reportagem foi sobre os garimpeiros de Serra Pelada, então o maior garimpo a céu aberto do mundo. Em caráter temporário, enquanto a equipe do Globo Repórter se reorganizava, foi para o Globo Rural e não saiu mais. Sabendo ouvir e contar, mostrou os cupinzeiros luminosos de Goiás, ao lado do químico da USP Etelvino Bechara, acompanhou pesquisadores pelo Pantanal, correu o Brasil e conquistou o respeito dos entrevistados e do público a ponto de ser homenageado tornando-se parte do nome científico do antúrio-mirim (Anthurium hamiltonii nadruz), descoberto em 2009 em uma reserva de Mata Atlântica do Espírito Santo.
Livros
ABRAMCZYK, J. Médico e repórter. São Paulo: Publifolha, 2012.
GOMES, A. O Repórter mais premiado do Brasil. Araçatuba: Editora Eko, 2015.
MELO, J. M. e RIBEIRO, J. H. Jornalismo científico: teoria e prática. São Paulo: Intercom, 2014.