Se nos anos 1960 a FAPESP já tinha um papel importante na distribuição de bolsas e na importação de equipamentos vinculados à pesquisa em astronomia e astrofísica, no passado recente a Fundação passou a investir fortemente em infraestrutura capaz de dar competitividade internacional à comunidade científica brasileira nesse campo do conhecimento. Não se tratou apenas de integrar consórcios internacionais que propiciaram aos astrônomos tempo de observação em potentes instalações, como o Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica (Soar), desenhado para obter imagens com excelente qualidade do céu na faixa da luz visível ao começo do infravermelho, e o Observatório Pierre Auger, concebido para captar raios cósmicos de alta energia, ambos na cordilheira dos Andes. A FAPESP também estimulou a criação de competência nacional na fabricação de instrumentos sofisticados instalados nos observatórios. “Criar programas de instrumentação de ponta, como os que conseguimos fazer, é um passo fundamental para quem aspira produzir ciência de primeira divisão”, afirma o astrofísico João Steiner, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG), da Universidade de São Paulo (USP), que integrou o conselho diretor do Soar por 12 anos e participou do projeto do telescópio desde sua concepção, no início dos anos 1990.
Na primeira década de atividade da FAPESP, entre 1962 e 1971, a astronomia chegou a absorver mais de 1% dos recursos da Fundação. Os investimentos, conforme registrou o livro Pesquisa e desenvolvimento, lançado por ela no início dos anos 1970, eram dedicados principalmente a bolsas, viagens a congressos, vinda de professores estrangeiros e compra de equipamentos. As pesquisas realizadas no Observatório Astronômico da USP, então situado no Parque do Estado da capital paulista, receberam auxílios entre 1962 e 1967. A principal contribuição da FAPESP foi ter custeado a instalação e manutenção do astrolábio Danjon, instrumento através do qual é possível registrar com grande precisão o instante de passagem de um astro por uma altura fixa do céu, assim como o treinamento de pessoal para utilizá-lo.
O Centro de Rádio Astronomia e Astrofísica do Mackenzie (Craam), criado em 1960, é testemunha dos investimentos da Fundação em astronomia desde os seus primórdios. O financiamento foi fundamental para que o grupo se mantivesse em seus primeiros anos. “Procuramos o então diretor científico da FAPESP, o geneticista Warwick Kerr. Ele nos orientou sobre a apresentação de projeto que permitiu comprar uma série de equipamentos básicos, todos de segunda mão, mas de grande qualidade, como osciloscópios geradores de sinal que haviam sido construídos pelos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial”, lembra o físico brasileiro Pierre Kaufmann, até hoje pesquisador do Craam. Segundo ele, a orientação da FAPESP foi fundamental, também, para que o grupo, formado ainda por muitos astrônomos amadores e estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Mackenzie, conseguisse recursos de outras fontes, como o Escritório Americano de Ciência para a América Latina. Em sua primeira década de existência, o grupo teve mais de 50 artigos científicos publicados em revistas especializadas. A aposta da Universidade Mackenzie na astronomia teve apoio da FAPESP em várias fases: como na consolidação de um rádio-observatório no Parque do Ibirapuera, em 1962, sua transferência para Campos do Jordão, em 1964, e a mudança para uma área no bairro de Itapetinga, próximo de Atibaia, no final dos anos 1960. Ali, em 1971, foi instalado o radiotelescópio para ondas milimétricas com diâmetro de 13,4 metros – onde o grupo teve extensa produção em radioastronomia. A antena de Atibaia foi a primeira do tipo no hemisfério Sul. Hoje tem pouco uso. “Já não é competitiva como antigamente”, diz Kaufmann.
A equipe do físico seguiu fazendo ciência de classe mundial no Telescópio Solar para Ondas Submilimétricas (SST), instalado no final dos anos 1990 no complexo astronômico El Leoncito, a 2,6 mil metros de altitude nos Andes argentinos. Foi lá que, em 2004, Kaufmann e colegas argentinos identificaram um novo tipo de explosão solar, produzindo os chamados raios T. Captados pela antena de 1,5 metro do SST, ultrapassaram o limite de 100 gigahertz (GHz), até então a frequência máxima de energia na faixa de rádio observada nas explosões solares. O grupo de Kaufmann detectou a radiação em duas frequências: 212 e 405 GHz ou 0,2 e 0,4 terahertz, a unidade de medida adotada, que explica o nome dessa radiação e a situa no espectro entre as ondas de rádio e a luz visível. “A emissão dessa forma de radiação é o fenômeno de mais alta intensidade, comparada com a de outras faixas de energia liberadas nas explosões solares”, diz Kaufmann, coordenador do estudo que relata a identificação dos raios T em explosão solar na Astrophysical Journal Letters. Inaugurada em 1999, a antena do SST custou US$ 1,26 milhão, financiada pela FAPESP, e segue em atividade.
“Até os anos 1980, a FAPESP foi fundamental para a criação de massa crítica, que aproveitaria os investimentos em infraestrutura feitos a partir dos anos 1990”, diz João Steiner, do IAG. A Fundação ajudou a comprar equipamentos para o Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), em Itajubá (MG), que foram usados por grupos de pesquisadores de São Paulo e de outros estados. Inaugurado em 1981, o telescópio de 1,60 metro do LNA instalado no Observatório Pico dos Dias, em Brasópolis, Minas Gerais, foi o primeiro laboratório efetivamente criado no Brasil. “Mas o LNA também perdeu competitividade, daí a importância da participação brasileira nos observatórios Gemini, em 1993, e Soar, em 1998”, diz Steiner, referindo-se a dois telescópios usados pelos astrônomos brasileiros nos Andes chilenos. Esse investimento, diga-se, ajudou a moldar a comunidade científica em astronomia. Um levantamento feito por Steiner mostra que 61% das lideranças científicas de astronomia, aquelas que têm bolsas de produtividade do CNPq nível 1 e 2, concentram-se na área óptica e de infravermelho, apoiada pelo LNA, Soar e Gemini. Outros 18% trabalham com astronomia teórica e 11% com radioastronomia – 3% dividem-se em outras áreas.
Instrumentos
O projeto do Soar permitiu que o país aprendesse a desenvolver instrumentos astronômicos sofisticados. O custo de construção do observatório foi de US$ 28 milhões, cabendo ao Brasil uma contribuição de US$ 14 milhões (os Estados Unidos são o parceiro na empreitada), divididos entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que destinou US$ 12 milhões, e a FAPESP, com participação de US$ 2 milhões. Já os instrumentos desenvolvidos para o telescópio foram majoritariamente patrocinados pela FAPESP. Foi o caso, por exemplo, do espectrógrafo de campo integral do Soar (Sifs). Instalado em 2010, custou US$ 1,42 milhão, sendo 79% bancados pela FAPESP, 15% pelo LNA, do governo federal, e 6% por um programa do CNPq. Com 3 mil peças e finíssimas fibras ópticas, o Sifs é capaz de fracionar a imagem de um objeto celeste em 1.300 partes iguais e, a um só tempo, registrar o espectro de todas elas.
Em meados de 2009, outro equipamento projetado e construído com a participação de brasileiros havia sido conectado ao Soar: a câmera Spartan, especializada em imagens no infravermelho – radiação eletromagnética percebida pelos seres humanos na forma de calor e capaz de atravessar as gigantescas nuvens de poeira interestelar que ocultam galáxias e berçários de estrelas. No caso da Spartan, a FAPESP bancou 55% da contribuição brasileira para o projeto. Outro equipamento recém-entregue é o filtro imageador ajustável brasileiro (BTFI), equipamento de US$ 1 milhão (82% investidos pela FAPESP) que permitirá identificar a composição química e medir os movimentos relativos internos dos objetos celestes. Por fim, há o espectrógrafo Échelle do telescópio Soar (Steles). Como o Sifs, o Steles analisará as cores da luz emitida por estrelas e galáxias, mas enxergará uma proporção maior do espectro da luz visível – e com melhor resolução. A FAPESP bancou 44% do custo de US$ 1,2 milhão.
O Soar é dotado de um espelho de 4,1 metros de diâmetro, a metade do tamanho de seu vizinho Gemini, cujo consórcio o Brasil também integra. “Houve quem estranhasse o investimento num telescópio com espelho de quatro metros, quando o país já tinha acesso a um de oito metros”, diz Cláudia Mendes de Oliveira, professora do IAG-USP e coordenadora de Astronomia e Ciência Espacial da FAPESP. “A verdade é que eles são muito complementares. E no Gemini, que era mais complexo, não teríamos a chance de investir no desenvolvimen-to instrumental, como fizemos com o Soar”, afirma. Em 2007, o resultado de uma observação feita no Soar por um brasileiro foi registrada pela revista Nature. Quase dois anos antes, na madrugada de 25 de setembro de 2004, o observatório espacial norte-americano Swift emitiu um alerta com as coordenadas do que poderia ser uma explosão de raios gama – a morte de uma estrela com massa dezenas de vezes superior à do Sol que se transforma em um buraco negro – ocorrida na constelação de Peixes. Eduardo Cypriano, astrônomo residente do Soar, trabalhava naquela noite e detectou os primeiros sinais da explosão. Os novos equipamentos do Soar começam a impulsionar a produção científica em áreas como os núcleos ativos de galáxias, anãs brancas pulsantes e explosões de raios X. Quando estiverem funcionando plenamente, diz Steiner, a astronomia brasileira vai mudar de patamar.
Conexão
Também no Observatório Pierre Auger a FAPESP, que ajudou a financiar a participação brasileira, adotou a estratégia de conectar um grande projeto de ciência fundamental com o desenvolvimento industrial nacional. Um grupo de empresas de alta tecnologia trabalhou na pesquisa de uma rede de detectores de raios cósmicos e no seu gerenciamento. “Os recursos permitiram a presença de um grande contingente de professores, pós-doutores e estudantes de graduação trabalhando na instalação e operação do observatório”, diz o físico Carlos Escobar, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que coordenou a participação brasileira no Pierre Auger. Montado em Malargue, nos Andes argentinos, por um consórcio de 17 países, o Pierre Auger é a maior instalação voltada para a detecção e o estudo dos raios cósmicos ultraenergéticos, que podem chegar a energias cerca de 10 milhões de vezes superiores às alcançadas pelos atuais aceleradores de partículas.
O grupo brasileiro foi responsável pelo projeto e instalação de componentes dos telescópios de fluorescência, desenvolvidos pelas indústrias brasileiras Equatorial, Estrutural e Schwantz. O Brasil forneceu mais da metade dos 1.660 tanques Cerenkov que constituem os detectores básicos do observatório. “Também foi intensa a participação das empresas brasileiras Alpina e Rotoplastyc. A interação com as indústrias foi benéfica para os pesquisadores, em especial os estudantes e pós-doutores, que tiveram um aprendizado sobre os desafios de desenvolver instrumentação de grande porte no Brasil e hoje vários deles estão liderando seus próprios projetos, com envolvimento industrial brasileiro. Já as indústrias melhoraram seus produtos, agregando-lhes melhor tecnologia”, diz Escobar. Os equipamentos fornecidos pelo Brasil ao observatório, que custaram US$ 4,1 milhões, foram bancados pela FAPESP (61%), Finep (24%) e CNPq (15%). A participação no Pierre Auger rendeu ao país a publicação de 25 artigos em revistas internacionais, que receberam mais de 1.300 citações em um intervalo de 10 anos. “Formamos mais de 20 doutores e 20 mestres em temas relacionados ao Pierre Auger”, diz Escobar.
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