Uma mudança gradual no clima – de seco para úmido – e nos padrões de precipitação, com chuvas mais intensas e frequentes, no interior da América do Sul, nos últimos 6 mil anos, deve ter alterado a influência e a descarga de sedimentos do caudaloso rio da Prata sobre o oceano Atlântico. Estudos recentes de oceanógrafos e geólogos do Brasil, da Alemanha e do Uruguai indicam que os grãos finos de areia, a lama e o material orgânico, carregados pelo rio e depois embalados pelas correntes marinhas, começaram a chegar nessa época – e ainda chegam – até o fundo do mar próximo à ilha de São Sebastião, no litoral paulista, a 2 mil quilômetros de Montevidéu, a capital do Uruguai e uma das últimas cidades banhadas pelo rio antes de suas águas se misturarem com as do mar.
Há mais de 10 anos, a equipe liderada por Michel Mahiques, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), analisa amostras de sedimentos do fundo do mar do litoral brasileiro e do estuário do Prata, para confirmar essa hipótese. Agora os resultados obtidos com a análise física e química dos sedimentos indicam que existem duas regiões distintas, chamadas de províncias geoquímicas: uma ao sul e outra ao norte de São Sebastião.
As características físicas e químicas dos sedimentos ao sul de São Sebastião são próximas das registradas no rio da Prata e diferem das amostras obtidas entre a ilha de São Sebastião e Cabo Frio, no litoral do Rio de Janeiro. Mahiques e os seus colaboradores concluíram que, provavelmente, os rios Doce e Paraíba do Sul são os dois principais rios que contribuem para a deposição de sedimentos ao norte de São Sebastião, enquanto o rio da Prata abastece com sedimentos o litoral sul e parte do sudeste brasileiro, até São Sebastião.
Mesmo que o rio da Prata esteja a mais de mil quilômetros de São Paulo, conhecer sua possível influência sobre o litoral paulista pode ser importante para a gestão marinha. “Qualquer impacto ambiental que ocorrer na bacia do rio da Prata”, cogita Mahiques, “certamente trará um impacto ao litoral paulista”, referindo-se ao potencial de transporte de elementos radioativos de origem antrópica, já medidos. O mesmo raciocínio é válido, diz ele, na hipótese de ocorrer algum evento que possa interferir nos recursos vivos marinhos do sul e sudeste do Brasil.
Para fazer a diferenciação dos tipos de sedimento, os oceanógrafos e geólogos recorrem a várias análises de laboratório, medindo, por exemplo, os teores de argila, de matéria orgânica, de césio, isótopos de neodímio e chumbo, e o tamanho dos sedimentos marinhos, neste caso coletados em três lugares: na altura da cidade de Santos, na Baixada Santista; na altura da cidade de Cananeia, litoral sul paulista; e ao largo de Itajaí, em Santa Catarina. A areia ou lama da parte superior das amostras coletadas representa os sedimentos mais recentes, porque se depositaram por último, enquanto o material do fundo é o antigo, porque chegou antes aos locais amostrados.
Testemunhos do rio
Cada partícula de sedimento tem uma espécie de assinatura geoquímica, como gostam de dizer os pesquisadores. Neste caso, conjuntos iguais de assinaturas formam um mesmo grupo. Quando esses agrupamentos foram distribuídos sobre um mapa, apareceram as duas grandes províncias, divididas, em termos geográficos, no litoral norte paulista. O mapa geoquímico que resultou dessas avaliações evidenciou as diferenças e, portanto, as origens distintas dos sedimentos.
“As fontes dos grãos, ou seja, as rochas que foram desgastadas pela chuva ou pelo vento para dar origem ao sedimento, que depois foi carregado rio abaixo, são diferentes”, diz Mahiques. Para confirmar os resultados obtidos com os sedimentos superficiais, os grupos de pesquisa recorreram aos chamados testemunhos geológicos, que conseguem gerar dados de milhares de anos antes do presente. Esses testemunhos são colunas de areia e lama retiradas do fundo do mar por meio de um cano de metal.
Ana Paula Campos“É possível perceber uma notável mudança de padrão de deposição de sedimentos por volta de 2.800 anos antes do presente”, diz Mahiques. A análise dos testemunhos indicou que, enquanto o rio da Prata despejava uma carga elevada de sedimentos no litoral catarinense até 2.800 anos atrás, apenas a partir desse período é que a areia gerada pela bacia do Paraná, a partir de sedimentos de basaltos típicos da região, começa a aparecer na altura da cidade de Santos. “Como a bacia do Paraná começou a receber mais chuva, o sistema de correntes marinhas passou a ter mais água para carregar o sedimento mais para longe”, diz ele. “Conseguimos, assim, definir o início da influência do rio da Prata sobre o litoral paulista.”
Resolvida uma dúvida, surgem outras. Se muita lama é exportada pelo rio da Prata até São Paulo, em áreas próximas ao litoral, será que esse material não poderia chegar ao oceano profundo, a 3 mil metros de profundidade? Os pesquisadores pretendem obter a resposta nos próximos anos, agora com a preciosa ajuda do navio de pesquisas oceanográficas Alpha-Crucis, que começou a ser usado neste ano para coleta de sedimentos em áreas mais distantes e profundas do litoral paulista (ver Pesquisa Fapesp nº 206).
Os levantamentos preliminares feitos por meio de equipamentos do Alpha-Crucis delinearam uma estrutura semelhante a um grande escorregamento, por meio do qual a lama e a areia da região mais rasa, a plataforma continental, chegariam às áreas mais profundas. O declive ajudaria a entender o acúmulo de sedimentos além das regiões mais rasas do litoral paulista, sabidamente pobres em sedimentos. A lama e a areia aparentemente escorregam centenas de metros por meio de grandes cânions submersos, acreditam os cientistas.
Projetos
1. Variações holocênicas na paleoprodutividade da plataforma continental sudeste do Brasil (03/10740-0); Modalidade Linha regular de auxílio a projeto de pesquisa; Coord. Michel Michaelovitch de Mahiques – IO/USP; Investimento R$ 321.619,03
(FAPESP).
2. Incremento da capacidade de pesquisa em oceanografia no estado de São Paulo (10/06147-5); Modalidade Programa de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais; Coord. Michel Michaelovitch de Mahiques – IO/USP; Investimento R$ 15.451.697,60 (FAPESP).
Artigo científico
BURONE L. et al.A multiproxy study between the Rio de la Plata and the adjacent South-western Atlantic inner shelf to assess the sediment footprint of river vs. marine influence. Continental Shelf Research. v. 55, p.41-54. 2013.