léo ramosO patologista Paulo Saldiva começou a estudar os efeitos prejudiciais da poluição urbana sobre a saúde há 30 anos, avançou bastante em sua carreira profissional, mas não se contentou em ver os resultados de seu trabalho sair apenas na forma de artigos científicos. Aos poucos ele levou as conclusões para outros espaços, com o propósito de melhorar a qualidade do ar e da vida nas cidades. Saldiva defende mudanças nas formas de mobilidade urbana: as pessoas devem andar mais, usar transporte público com maior frequência ou, como ele, ir para o trabalho de bicicleta, hábito que vem do tempo em que era estudante de medicina.
Desde o ano passado, por meio de um novo e poderoso aparelho de ressonância magnética usado para exames de cadáveres (ver Pesquisa FAPESP nº 229), ele tem enriquecido a antiga linha de trabalho, ao ver que a poluição do ar deve acelerar o envelhecimento de tecidos e órgãos. Também adotou práticas, como a de autópsia minimamente invasiva, que permitem a confirmação do diagnóstico, a checagem do tratamento médico e a formação de um banco de amostras que pode ser útil para médicos, pesquisadores e estudantes. Casado, com dois filhos, Saldiva gosta de tocar gaita e fotografar a cidade à noite, da sacada de seu apartamento no 13º andar de um prédio no bairro da Bela Vista.
Quais suas batalhas atuais?
Minha maior luta no momento é fazer o Brasil adotar um padrão de qualidade do ar compatível com o conhecimento científico atual. Ainda estamos defasados. A Organização Mundial da Saúde, a OMS, definiu parâmetros muito restritivos, mas colocou níveis intermediários como metas como instrumento de gestão. São Paulo e a maior parte das cidades brasileiras são menos poluídas do que os municípios chineses e indianos, mas as autoridades do governo brasileiro não definiram ainda o que é preciso fazer para atingir os níveis mais baixos de poluição, que é o padrão ideal. Os coordenadores das agências ambientais como o Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama, argumentam que não podemos seguir o padrão internacional de qualidade do ar porque não temos tecnologia para resolver o problema do controle da poluição, quando na verdade devemos pensar de modo inverso: no momento em que se mostra a desconformidade entre as metas e a realidade, cria-se o movimento para mudança. Os pesquisadores, médicos e outros profissionais da saúde têm de participar da busca de soluções para esses problemas.
Participei de dois pontos centrais da legislação sobre esse assunto. O primeiro foi o estabelecimento dos novos padrões de qualidade do ar da OMS em 2005, quando ajudei a escrever o capítulo sobre ozônio. O segundo foi em 2014. Participei do painel da International Agency for Research in Cancer, Iarc, que determinou a prevalência dos casos de câncer atribuídos à poluição do ar. Nos dois casos, chegamos à conclusão de que havia evidências muito sólidas da redução da expectativa de vida por doenças respiratórias e cardiovasculares induzidas pela poluição do ar e também que a exposição à poluição urbana é uma causa do câncer de pulmão, em níveis muito mais baixos do que se pensava. Ou seja, é um risco pequeno, em comparação com o cigarro. O que se tem de levar em conta é que apenas 20% da população de São Paulo fuma, mas todos os moradores da cidade estão sujeitos à poluição. Então o risco atribuível à poluição passa a ser significativo. Nem os efeitos da poluição nem os da mobilidade urbana entraram ainda com a devida importância na pauta de debates de novas políticas de saúde pública. Existe também uma relação com a capacidade de um jovem se desenvolver intelectualmente, porque as quatro ou cinco horas que teria para descansar e estudar são perdidas no deslocamento entre a casa e o trabalho. Vários estudos mostraram que os problemas de mobilidade urbana prejudicam o desenvolvimento do indivíduo como cidadão e sua ascensão social e econômica. Portanto, temos de ter um padrão de mobilidade mais ativo. Apenas a tecnologia não vai resolver esses problemas, mas essa não é uma questão consensual. Não há consenso quando se discute o uso do solo, definindo se o espaço público vai ser ocupado por carro, ônibus, transporte sobre trilhos ou bicicleta, ou que tipo de matriz energética devemos usar, se biodiesel, etanol, eletricidade ou petróleo. Aparecem interesses legítimos, porém conflitantes. É preciso gestão, que é o que falta na área ambiental.
Gestão em que sentido?
Gestão como liderança, no sentido de decidir o melhor para a maioria das pessoas. Um exemplo de liderança é o prefeito de Dublin, na Irlanda, que em 1987 proibiu a venda de carvão para aquecimento de água. Após o banimento, a poluição foi reduzida e houve um decréscimo imediato da mortalidade por doenças respiratórias e cardiovasculares. Quando fizeram a conta, descobriu-se que houve benefícios para a saúde e também ganhos financeiros, porque as pessoas e o Estado passaram a gastar menos com médicos, remédios e hospitais. Sempre se discutia o quanto custaria mudar uma matriz energética, mas até aquele momento não se sabia o quanto custava manter uma fonte energética suja como o carvão. Com o fechamento de fábricas altamente poluidoras de Pequim antes dos Jogos Olímpicos de 2008, houve redução da poluição, ganhos de peso ao nascer, redução da mortalidade neonatal e de internações por doenças respiratórias. A partir dessas situações é possível calcular o quanto estamos pagando de pedágio de saúde por causa da poluição das cidades.
Qual a solução, então?
Para resolver esses problemas, não basta prescrever apenas um remédio. Vários estudos mostraram que os acidentes no corredor das avenidas Francisco Morato e Rebouças [na cidade de São Paulo] produzem em torno de 10 pessoas por mês com incapacidade física permanente, amputadas ou paraplégicas. Quase todos os acidentados são atendidos no pronto-socorro aqui da USP, próximo a essas avenidas. Uma alternativa para melhorar o atendimento seria aumentar o número de leitos de trauma e capacitar mais residentes em ortopedia e neurocirurgia. Seria como, diante do cigarro, aumentar o número de vagas para cirurgia torácica. Não resolve. Temos de dialogar com as autoridades de trânsito e implantar alternativas de mobilidade urbana para desafogar o trânsito nessas e em outras avenidas. Alguns estudos mostraram que morar a menos de 300 metros de um parque reduz o risco de morte por infarto agudo do miocárdio em 30%. É mais do que a estatina [princípio ativo do medicamento usado para baixar a taxa de colesterol no sangue], mas qualquer cardiologista vai dizer que parque não tem nada a ver com infarto. Quem desenha os parques também vai dizer que não; já os epidemiologistas dirão que sim. Os mecanismos mais amplos e mais eficazes para a redução de infarto são os serviços ambientais dos parques, aumento de umidade e redução de poluentes nas cidades. Além disso, as pessoas utilizam os parques para caminhar e se exercitar. Foi o que aconteceu em Londrina, com as academias ao ar livre [praças com aparelhos de ginástica para serem utilizados por quem quiser].
O que aconteceu em Londrina?
Em 2009 o prefeito comprou as primeiras academias ao ar livre e depois uma empresa privada de convênio médico pagou as demais. Os empresários perceberam que poderiam ganhar dinheiro com isso, já que as pessoas eram mais saudáveis nas regiões onde havia academia e, portanto, usavam menos os serviços dos planos de saúde. É difícil colocar na esfera acadêmica a ideia de fazer com que as políticas urbanas sejam centradas em qualidade de vida e saúde. A medicina está preparada para tratar de questões ambientais relacionadas a doenças com causas concretas, como as transmitidas por insetos, porque sempre foi assim, desde os tempos de Oswaldo Cruz, e ainda não damos a devida atenção para as alterações causadas pelas novas formas de organização de vida, como o câncer, a obesidade e as doenças mentais.
O que poderia ser feito?
Atacar esses problemas exige montar não só uma equipe multidisciplinar, mas uma rede de órgãos e de profissionais, porque engenheiros, paisagistas e outros têm a ver com esses problemas. As doenças causadas pelo ambiente urbano inadequado são também o resultado da gestão imobiliária, que faz com que a população do centro se mude para a periferia. É um absurdo uma pessoa perder três ou quatro horas por dia dentro de um trem, de um ônibus ou de um carro para ir de casa para o trabalho e depois voltar. Adotei uma alternativa: venho de bicicleta para a faculdade até hoje, desde os tempos em que era estudante aqui na Medicina, mas sou visto dentro da categoria “comportamento exótico”. Os profissionais da saúde deveriam assumir a liderança e propor atitudes que favoreçam a melhoria da qualidade de vida nas cidades. Deveriam dar mais atenção também às gôndolas de supermercado, que representam outro problema de saúde pública. Os alimentos, principalmente os doces, que uma criança de 2 ou 3 anos de idade vê nas gôndolas e nos caixas favorecem a obesidade e impõem um padrão alimentar inadequado desde o início. Conseguimos apresentar de modo claro e convincente os riscos do cigarro e fazer muitas pessoas pararem de fumar, mas ainda não conseguimos mobilizar as pessoas para se precaverem contra os riscos do consumo de alimentos que favorecem a obesidade, nem sobre as consequências dos padrões inadequados, do ponto de vista da saúde pública, de urbanização e uso do solo.
Por que a obesidade tem ligação com a mobilidade urbana?
Não tem sentido discutir esse assunto falando apenas de hormônios ou de dieta, sem discutir a cidade. Em um artigo publicado na Nature Reviews Cancer em setembro de 2013 [com o título “Air pollution: a potentially modifiable risk factor for lung cancer”], mostramos que a taxa de obesidade em vários países era menor quando a população adotava transporte ativo, como a caminhada, o ciclismo ou mesmo ônibus e metrô. Quem usa transporte coletivo em São Paulo anda de 1 a 3 quilômetros por dia, entre ir para o trabalho e voltar. Sem explicar que o modo de mobilidade tem a ver com a taxa de obesidade, não vou conseguir estudar a história toda, porque uma parte substancial da obesidade é causada pela inatividade das pessoas. Temos de estimular o transporte ativo como forma de promoção da saúde.
Como o senhor trabalha essas possibilidades de intervenção?
Basicamente, produzindo white papers [artigos científicos que possam nortear a elaboração e implantação de políticas públicas]. O artigo da Nature Reviews Cancer mostra o que podemos fazer, do ponto de vista de sustentabilidade das pessoas e dos países. Não adianta dizer para deixar o carro em casa, tomar banho de canequinha ou viver no escuro. Temos de mostrar que é possível perder 350 calorias por dia andando 4 quilômetros diariamente, usando transporte coletivo. Em outro artigo, que saiu em julho de 2015 na Lancet [com o título “Mortality risk attributable to high and low ambient temperature: a multicountry observational study”], participamos de um consórcio que examinou a variação de temperatura e de mortalidade em 384 cidades. Esse trabalho mostrou que vivemos melhor em uma temperatura um pouco abaixo do que a ideal, porque os mecanismos fisiológicos de adaptação são mais eficientes para combater o frio do que o calor. Em São Paulo, onde a temperatura média é de 22º Celsius, a mortalidade aumenta quando a temperatura vai além de 26ºC ou cai para menos de 18ºC. Se passa dos 30ºC, a mortalidade aumenta 50%, principalmente por infarto.
Quais as causas, exatamente?
Uma das principais são as ilhas de calor [áreas mais quentes] das cidades. Para aumentar a mortalidade em Estocolmo, a temperatura tem de cair abaixo de zero, enquanto em Teresina, é impressionante, basta cair abaixo dos 23 graus. Algumas cidades, como Toronto, se tornaram resilientes e construíram um sistema de condicionamento de temperatura que faz com que as pessoas se adaptem ao frio. Cidades mais antigas, como Madri e Londres, se defendem muito melhor do frio do que do calor. Quando esquenta muito em Londres, a mortalidade aumenta duas vezes e meia. O controle adequado da temperatura nas ilhas de calor e a recomposição da cobertura vegetal são importantes para reduzir a mortalidade dos moradores das cidades.
Conte um pouco de seu trabalho com as organizações não governamentais [ONGs].
Com equipes de ONGs, como o Instituto Saúde e Sustentabilidade, temos feito relatórios em uma linguagem absolutamente transparente sobre a mortalidade e os custos da poluição para a saúde na cidade de São Paulo. Para induzir uma mudança de comportamento, temos de produzir a melhor ciência possível e, depois, fazer com que o conhecimento seja apoderado, em textos mais amigáveis, pela população em geral e pelos gestores. Nesse sentido as ONGs são eficientes. Estruturas acadêmicas também podem ser eficientes em traduzir o conhecimento científico para o grande público e instrumentalizar a política. A Universidade Harvard, dos Estados Unidos, faz isso muito bem.
De que modo?
A Escola de Saúde Pública de Harvard tem publicações feitas por jornalistas que participam dos debates e colocam os assuntos para os grandes jornais e revistas dos Estados Unidos. Em 2015, o New York Times noticiou um estudo de Harvard mostrando que, quanto pior a mobilidade, menos tempo as pessoas têm para estudar e menos vão ganhar no futuro. Essa é uma enorme contribuição para quem estuda e para quem faz política urbana, que se está discutindo agora no Congresso dos Estados Unidos. Fazer essa passagem do conhecimento científico para outros públicos de forma profissional, neutra e eficiente ainda é um grande desafio das instituições acadêmicas no Brasil. Por aqui, a maioria dos pesquisadores ainda acredita que o trabalho acabou depois de publicar na Nature ou na Science. O sistema acadêmico recompensa apenas pela pesquisa e pela produção acadêmica. Não existem mecanismos de recompensa pela participação em políticas públicas ou em atividades coletivas.
Por que o senhor começou a estudar os efeitos da poluição nos anos 1980?
Eu estava acabando a residência em patologia quando conheci um professor muito especial, György Böhm, húngaro radicado no Brasil, que estudava poluição do ar em cidades, e me encantei por esse tema. Nessa época, nos anos 1980, poluição do ar era uma causa à procura de uma doença. Considerava-se que os padrões estabelecidos nos Estados Unidos nos anos 1970, uma vez atingidos, não teriam efeitos prejudiciais. Conseguimos mostrar, em experimentos com animais e depois em estudos epidemiológicos, uma associação robusta entre poluição, mortalidade, adoecimento, inflamação e formação de tumores malignos em pulmões de camundongos. O efeito não era devastador, mas muito claro. Também mostramos, em modelos animais, os efeitos da exposição à poluição durante a gestação. Em comparação com o grupo-controle, os animais submetidos à poluição intensa durante a gestação nasciam com peso menor, menos alvéolos pulmonares e com alterações em algumas áreas do córtex cerebral. A poluição também muda a razão de sexo, fazendo com que nasçam mais fêmeas do que machos. Por causa da poluição há um desequilíbrio hormonal e possivelmente um efeito deletério sobre os cromossomos sexuais masculinos, com a sobrevivência preferencial do X e não do Y. A história confirmou esses dados. Em 1978 houve um acidente em Cevezo, na Itália, com um vazamento de policloreto de vinil, e durante um período nasceram apenas meninas.
Como foi sua ida para Harvard, em 1999?
Eu tinha virado professor titular em 1996 e era chefe do Laboratório Central do Hospital das Clínicas. Fiquei só fazendo isso durante três anos. Estava absolutamente infeliz, não sabia mais se eu sabia dar aula, se eu era pesquisador ou se era administrador. Pensei: “Vou dar um break e fazer um sabático”. Tinha filhos com 11 e 12 anos, pensei que logo mais eles cresceriam e seria mais difícil. Fui para lá sem projeto nenhum, como professor visitante. Cheguei à Escola de Medicina de Harvard e me perguntaram: “Qual sua ideia de pesquisa?”. Respondi: “Nenhuma. Digam o que precisa ser feito que ajudarei quem precisar”. Eles tinham muitos experimentos importantes parados. Preparei as lâminas [de microscópio, com amostras de órgãos e tecidos], comecei a analisar e fiz os meus trabalhos mais citados até hoje, mostrando que o acúmulo de partículas dos poluentes atmosféricos causava uma redução da resistência vascular pulmonar. Foi a primeira evidência estrutural de que a poluição do ar provocava alterações vasculares em animais, não afetava só o parênquima pulmonar [a camada mais externa dos pulmões], mas também a artéria pulmonar. Em outro trabalho, mostrei a relação entre a poluição e a arritmia aguda. Saíram cinco publicações nesse ano e montei um sistema experimental que concentrava partículas atmosféricas e me permitiu fazer uma série de estudos importantes depois no Brasil.
O que é possível trazer de Harvard para cá?
A primeira coisa seria a cobrança de mérito. Em Harvard, quem não consegue dinheiro – porque uma parte dos financiamentos vai para a universidade – ou não se torna um dos expoentes em sua área tem de sair, simplesmente. Harvard adota um modelo baseado em competitividade, absolutamente impessoal. Outra coisa boa, que poderia ajudar a pensar nossa realidade, é que não se perde tempo com burocracia. Se um pesquisador quer um reagente, liga para o responsável pelos reagentes e recebe na sua mesa no dia seguinte. Aqui ainda é um pouco diferente. Passei boa parte do ano de 2014 administrando a obra para instalação de um equipamento de ressonância magnética nuclear de 7 tesla para autópsia e outros estudos financiados pela FAPESP. Tivemos de seguir um cronograma germânico de importação, enquanto fazíamos as obras de acordo com um cronograma brasileiro, mas, por incrível que pareça, deu certo. Em Harvard, haveria um grupo que faria isso por mim, porque se adota o pressuposto de que o pesquisador não deve gastar tempo nessas coisas. A eficiência é muito maior e o ambiente de trabalho, muito mais competitivo. Ninguém fica na zona de conforto. E se tem muita liberdade. O professor pode usar bermuda ou trabalhar no horário que quiser, já não há controle de horário. Assim se forma um ambiente criativo. Aqui, não. Temos indicadores de processo, avalia-se o número de horas em sala de aula ou de alunos, mas não se pergunta: o que saiu disso, o que você mudou?
Idade |
61 anos |
Especialidade |
Patologia |
Formação |
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (graduação, doutorado) |
Instituição |
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo |
Produção científica |
Participou como autor ou coautor de 580 artigos científicos e orientou 29 mestrados e 58 doutorados |
Como está o trabalho com o novo aparelho de autópsia?
Está indo muito bem. O projeto começou há uns quatro anos, com Edson Amaro, hoje professor associado do Departamento de Radiologia, quando nos perguntamos: qual nosso nicho de competitividade? O que podemos fazer melhor que Harvard ou Oxford? Temos a maior sala de autópsia do mundo, com 14 mil a 15 mil exames desse tipo por ano de pessoas que morreram por morte natural, porque, além dos casos do Hospital das Clínicas, temos os do Serviço de Verificação de Óbito, ligado à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Vamos então apostar nessa área para ensino, pesquisa e treinamento. Todo mundo se encantou. Foi uma das poucas vezes que uma ideia seguiu na mesma direção aqui na Faculdade de Medicina.
O que pretendem fazer com os novos equipamentos?
Agora podemos estudar doenças raras e também ver a diferença entre a idade cronológica e a biológica, já avaliada por exames genéticos e bioquímicos, mas ainda não por meio da avaliação de alterações estruturais do organismo. Uma das hipóteses que estamos testando é de que a poluição do ar, independentemente de outros fatores, faz com que nossos orgãos envelheçam mais rapidamente. Estamos vendo como a poluição pode reduzir a reserva funcional de nossos órgãos, do mesmo modo que o cigarro, que provoca senescência precoce. Estamos também, com o Ministério da Saúde e com o grupo da Global Burden of Disease, comparando a autópsia verbal, uma indicação da provável causa de morte, com a real. Cristopher Murray, professor da Universidade de Washington e coordenador do Global Burden, esteve aqui em 2015 e ficou sabendo que estamos fazendo também autópsia minimamente invasiva. Essa abordagem consiste em um exame de imagem e em uma análise anatômica macroscópica. Onde encontramos qualquer sinal de doença, retiramos com uma agulha uma amostra de tecido ou órgão, como o cérebro – que seria impossível com a pessoa viva – com a autorização da família. Também estamos comparando os exames feitos por essa técnica e pela autópsia convencional. Em menos de um ano já fizemos 400 autópsias minimamente invasivas e queremos completar mil até meados deste ano, comparando com a autópsia normal e vendo quando uma ou outra poderia ser usada. Há uma grande diferença de custo. A autópsia normal custa cerca de R$ 8 mil, considerando horas de trabalho e de análise, e a minimamente invasiva, R$ 1.500. É também uma forma mais simples de confirmar diagnósticos e avaliar se de fato fizemos tudo o que deveria ser feito pelo paciente.
O que o senhor tem feito para mudar essa situação? Já estão fazendo isso?
Olhe aqui [mostrando uma imagem na tela de um monitor], uma fratura de queda de occipital. Vemos a lesão sem abrir a pessoa. Para ver isso na autópsia normal, seria preciso mutilar o cadáver. E podemos imprimir em três dimensões e usar as imagens em perícias judiciais, não precisamos mais fazer exumação. Aqui [mostra outra imagem], o coração de um indivíduo com aterosclerose. Podemos fazer angiografia pós-morte fazendo perfusão com um derivado sintético de plasma e iodo, montar um banco de tecidos normais e estudar viroses emergentes, entre outras possibilidades. Podemos fazer diferença em saúde pública, se conseguirmos provar que é possível fazer coletas pós-morte guiadas por imagem. Além disso, temos conversado muito com as famílias, após a retirada dos tecidos para análise.
Como é a conversa com as famílias?
Primeiramente, explicamos o atestado de óbito, que poucos entendem. Depois, tentamos evitar mortes semelhantes na mesma família. Um dos casos recentes foi o de um homem com aneurisma de aorta dissecante, que foi encontrado morto. Conversando com os irmãos, perguntei se eles tinham hipertensão. Todos tinham, e um deles tivera dor no peito 15 dias antes. Falei que eles tinham de controlar a hipertensão, que tinha sido uma das causas da morte do irmão deles, e que, quando tivessem dor torácica, dissessem ao médico que tiveram dois casos de morte por aneurisma na família, uma comprovada por autópsia e outra supostamente por exames clínicos. Esse contato tem me dado uma gratificação pessoal muito grande e posso garantir que tem dado um certo alívio para os familiares. Estamos aproveitando para fazer promoção de saúde e prevenir casos semelhantes, evitando outras mortes.