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CAPA

Uma face nova na Ciência brasileira

Um fenômeno novo está ocorrendo na organização da pesquisa e na própria produção de Ciência no Estado de São Paulo. Ainda pouco perceptível fora de um estrito círculo de especialistas, ele se manifesta numa cooperação entre pesquisadores em escala jamais vista no país, num ritmo de produção que lembra mais uma linha de montagem industrial do que a investigação científica tradicional, e numa velocidade de obtenção de resultados surpreendente, numa atividade que, pelo menos no Brasil, sempre foi vista como descomprometida com a pressão do tempo.

Do ponto de vista da organização, especificamente, o acontecimento novo se revela na consolidação de uma estrutura de pesquisa leve, flexível e eficiente, uma espécie de instituto virtual de pesquisa – o ONSA, Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis (http://watson.fapesp.br) -, sem paredes, descentralizado e baseado na idéia de rede de laboratórios, tomada de empréstimo a alguns grandes projetos internacionais, em particular o do seqüenciamento genético da Saccharomyces cerevisiae (levedura). Só que a essa idéia, a iniciativa paulista agregou princípios de liderança e hierarquia próprios de um instituto convencional, chegando a uma receita, no mínimo, original.

Toda essa inovação no panorama da pesquisa paulista – que evidentemente não está disseminada no sistema, mas concentrada, por enquanto, em pouco mais de três dezenas de laboratórios – foi provocada pelo Projeto Genoma-FAPESP, lançado em outubro e iniciado em dezembro do ano passado. E se um único projeto, ainda que se trate do maior e mais revolucionário projeto científico em curso no Brasil, conseguiu, em tão poucos meses, provocar tamanha agitação, muito mais se pode esperar do Programa Genoma-FAPESP, com lançamento previsto para julho próximo.

Esse novo programa da FAPESP, que deverá contar com recursos em torno de US$ 25 milhões, será, inicialmente, o conjunto articulado de três projetos de seqüenciamento genético: o projeto pioneiro, da bactéria Xylella fastidiosa, com desenvolvimento até aqui notavelmente bem sucedido, e que deu partida à participação brasileira no campo mais avançado de pesquisas em genética molecular, mais o Genoma-Cana e o Genoma-Câncer, a serem possivelmente lançados no segundo semestre deste ano. Esses dois projetos devem ser desenvolvidos em duas etapas: primeiro será feita a preparação das bibliotecas de DNA. E os laboratórios bem sucedidos nesse trabalho devem ser convocados para o seqüenciamento. Mais adiante e gradativamente, outros projetos poderão entrar no Programa.

A iniciativa de um tal programa é, sem dúvida, extraordinariamente ambiciosa para os padrões de financiamento, organização e produção científica e tecnológica no país. Por isso mesmo, ela tem potencial para inscrever o nome do Brasil no mapa internacional da produção científica em genética molecular – e já seria um primeiro sinal nesse sentido o fato de o Genoma-FAPESP, que estuda a Xyllela, figurar entre os projetos de seqüenciamento listados na base de dados do TIGR – The Institute for Genomic Research, disponível na Internet (http://www.tigr.org).

Vale observar que a genética molecular é percebida como uma área-chave da ciência contemporânea e, na perspectiva entusiasmada de muitos pesquisadores, seus avanços deverão transformar completamente a compreensão sobre o organismo humano, sobre a vida na Terra de uma maneira geral e, ainda, estabelecer novos paradigmas científicos no começo do século XXI.

Rara oportunidade
De acordo com o cronograma original do Projeto Genoma-FAPESP, com encerramento previsto para o ano 2000, só em maio deste ano deveria ser iniciado o seqüenciamento da Xyllela fastidiosa, bactéria causadora da clorose variegada dos citros (CVC) ou praga do amarelinho, doença que representa um grave problema para a citricultura paulista. Mas surpreendentemente, já em fevereiro, obtinham-se os primeiros seqüenciamentos; em março estavam seqüenciados 24 mil nucleotídeos ou pares de base; em abril chegara-se a 250 mil e em 12 de maio último, estavam seqüenciados 578.938 nucleotídeos dos 2 milhões que compõem o genoma da Xyllela.

Isso se tornou possível graças à rápida organização e montagem, a partir de dezembro passado, de uma infra-estrutura integrada por 33 laboratórios – incluindo-se aí o do coordenador de DNA do projeto – um centro de bio-informática, 2 laboratórios centrais de seqüenciamento e 29 laboratórios de seqüenciamento espalhados por algumas cidades do Estado, todos com seqüenciadores novos e outros equipamentos indispensáveis. A essa altura, todos os laboratórios de seqüenciamento realizaram os testes necessários para o trabalho, confirmou-se que estão aptos para a sua realização, e oito deles já estão efetivamente seqüenciando o genoma da X. fastidiosa.

Essa infra-estrutura, é evidente, tem um poder de fogo potencial muito maior do que o seqüenciamento de um único microorganismo. Afinal, o TIGR, para ficar num exemplo bastante conhecido, com 50 seqüenciadores automáticos ( número semelhante de que dispõe o Genoma-FAPESP), todos concentrados num só centro de pesquisa, mantém nesse momento 26 projetos genoma em andamento e tem seis concluídos. “Ao montarmos uma estrutura que não era a mais barata possível, nem a que poderia apresentar os resultados mais rápidos de seqüenciamento, é claro que não mirávamos apenas o seqüenciamento da Xyllela, por mais importante que isso pudesse ser do ponto de vista científico e, para São Paulo, também do ponto de vista econômico”, explica o diretor científico da FAPESP, professor José Fernando Perez.

“Tínhamos em mente uma estratégia envolvendo formação de competência, em larga escala, e espalhada pelo Estado. E sabíamos que, rapidamente, quando de posse da metodologia, da tecnologia de seqüenciamento, teríamos conquistado a capacidade para seqüenciar simultaneamente muito mais do que apenas um microorganismo”, completa. É isso que, em certa medida, já se apresenta, criando a base para o lançamento do Programa

Genoma-FAPESP. Segundo José Fernando Perez, os envolvidos com a questão do desenvolvimento científico e tecnológico têm que tomar consciência “dessa oportunidade” criada no Estado de São Paulo. Oportunidade justamente de impulsionar, como nunca, a atividade de pesquisa para uma nova dimensão.

Trabalho integrado
O diretor científico da Fundação, ao referir-se ao ONSA, comenta que “geramos uma estrutura de pesquisa com uma virtualidade curiosa, inovadora”. Como no futuro ela evoluirá, é ainda uma incógnita e, para a Fundação, “trata-se de uma questão inteiramente nova”.Um dos maiores entusiastas dessa estrutura é o coordenador de DNA do Projeto Genoma-FAPESP, Andrew Simpson, do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer.

Ele lembra que, durante as discussões na Fundação, refletiu-se bastante a respeito dos dois modelos de organização internacionalmente estabelecidos pelos projetos genoma, e sobre qual caminho São Paulo deveria tomar para dominar a tecnologia de seqüenciamento genético até seus níveis mais sofisticados. Isto, ao mesmo tempo, em que se buscava estimular a área de genética molecular em geral. “Essa área científica não estava mal, mas vinha crescendo menos que outras, no Brasil”, comenta ele.

Um dos modelos internacionais é o adotado pelos Estados Unidos, por exemplo, onde se investiu pesadamente em centros concentrados, com estrutura enxuta, como o próprio TIGR ou o centro de genoma da Washington University, em Saint Louis, Mississipi. O outro é o modelo de rede de laboratórios espalhados, que se unem para uma pesquisa comum, do qual o mais famoso exemplo é o da rede de cerca de 100 laboratórios europeus formada por Steve Oliver e André Goffeau para realizar o genoma da levedura, iniciado em 1990 e concluído com êxito em 1996. “Nesse caso, concluído o projeto, desfaz-se a rede”, diz Andrew Simpson.

Das discussões, ficou claro que montar um centro não era o melhor caminho para São Paulo. “Ou ele iria muito bem e ficaria a uma enorme distância das outras instituições de pesquisa, como uma ilha, ou, o que é muito freqüente, não iria bem por problemas políticos, problemas de orçamento, etc, e terminaria por esquecer a Ciência e se transformar num elefante branco”, comenta o cientista. Ao remontar a esse período de gênese, ele estabelece um momento preciso e decisivo para transformar o Genoma-FAPESP na realidade que ele hoje já é: “Foi Fernando Reinach quem teve realmente a idéia, muito boa, de formar um consórcio, e formá-lo para seqüenciar um microorganismo completo”. O professor Reinach, do Instituto de Química da USP, responsável por um dos laboratórios centrais de seqüenciamento, minimiza sua contribuição:

“A idéia nem era original, nem era criação minha. Era do André Goffeau, um dos consultores internacionais do projeto Genoma-FAPESP. Naquele momento, eu estava apenas sugerindo o mesmo formato que ele usou no projeto de seqüenciamento do Saccharomyces“, diz. Mas Andrew Simpson insiste: “Estávamos, sim, chegando a uma receita original, porque iríamos montar a rede, mas com com alguma coisa da estrutura de um centro, ou um instituto”. Ele detalha o que vem a ser isso. “Numa pura rede de colaboração, como as européias, é apenas o interesse intelectual que move todas as partes.

No modelo híbrido paulista, os laboratórios participam através de um contrato, não necessariamente por interesse intelectual. Existe um financiamento a fundo perdido para execução da tarefa, o que equivale mais ou menos a um instituto terceirizando serviços”. O contrato, no caso, implicou um financiamento de US$ 200 mil para cada laboratório de seqüenciamento, do qual 70% adiantados após a assinatura desse contrato, para que os grupos se equipassem. O resto só será pago no término do trabalho de cada um e se algum laboratório não concluir sua parte, terá que devolver o equipamento adquirido.

A direção, o firme controle intelectual do projeto, exercido por pesquisadores de alto nível, “entre os melhores de suas áreas”, segundo Simpson, são também marcas do projeto paulista. “E o que temos, então, é uma competência que vai se espalhando a partir desse comando central, num impulso geral a todas as áreas de pesquisa envolvidas com o seqüenciamento”. Depois, observa ele, há uma colaboração surpreendente no nível horizontal, com a transferência de tecnologia de um grupo para outro, a contínua comunicação sobre a solução de problemas que vão emergindo, etc.

Essa avaliação é compartilhada. “De fato, há um clima de trabalhar junto, de cooperar, que é absolutamente novo na comunidade científica”, diz a professora Mayana Zatz, do Instituto de Biociências da USP, coordenadora de um dos laboratórios de seqüenciamento do projeto e há longo tempo envolvida com genética molecular. Ela observa que os pesquisadores trabalhavam muito isolados, até porque praticamente não havia pares no campo específico de cada um e, portanto, era difícil obter até a opinião de um colega. Essa dinâmica nova de cooperação poderá atingir cerca de 50 laboratórios e envolver diretamente em torno de 200 pesquisadores (hoje, são cerca de 100) quando forem iniciados os dois novos projetos genoma.

A difusão de competência, junto com a renovação do olhar do pesquisador sobre sua própria prática científica, propiciadas pelo projeto, são dois aspectos do Genoma-FAPESP enfatizados pelo professor Paulo Arruda, da Unicamp. Responsável por um dos dois laboratórios centrais de seqüenciamento, ele coordenou, em abril passado, um curso teórico/prático sobre técnicas básicas de seqüenciamento genômico para 36 pessoas de 20 laboratórios envolvidos com o projeto da Xyllela.

Desses, 50% eram coordenadores dos laboratórios e a outra metade, pesquisadores em fase de pós-doutoramento ou estudantes de doutorado incorporados ao sistema. “Nesse curso, onde seqüenciamos 20 clones da Xyllela, sentimos nitidamente que está se estabelecendo no Estado de São Paulo uma forma nova de fazer Ciência”, diz ele com indisfarçável entusiasmo.

“Estamos aprendendo a trabalhar em alta velocidade e com uma massa de informações articuladas sendo geradas a toda hora, a que os biólogos jamais estiveram acostumados”, completa. Com leve humor, Paulo Arruda comenta que os biólogos, diferentemente dos físicos, que sempre insistiram na totalidade, estavam mais acostumados a “passar a vida inteira com uma proteinazinha”, que depende de mil outras, mas das quais eles não tomavam conhecimento. “E de repente, uma noção de interação, completamente nova, se impõe e percebemos que sequer sabemos decodificá-la ou ensiná-la aos estudantes. Estamos tendo que aprender isso”, diz. O comentário guarda alguma relação com o de Andrew Simpson, quando ele diz que o seqüenciamento genético, viabilizado pela bioinformática, está fazendo na biologia uma revolução do porte que as linhas de montagem de Henry Ford fizeram na indústria.

“É produção em alta escala, com alta padronização, gerando cada dia milhares de informações que exigem ser entendidas em conjunto”, diz. Comprometido com esse estágio novo de produção de Ciência, o projeto da Xyllela, segundo Fernando Reinach, provoca também uma certa atenção internacional extra, em função de seu modelo de rede. “Há uma certa expectativa, sobretudo dos Estados Unidos, com suas verdadeiras indústrias concentradas de seqüenciamento, para ver se isso realmente funciona fora da Europa, num ambiente culturalmente tão diverso, como o brasileiro”. Se o Projeto Genoma-FAPESP for um êxito indiscutível e se os outros projetos integrantes do Programa Genoma-FAPESP tiverem sucesso, o Brasil terá criado um fato novo não apenas para si mesmo, mas para o panorama científico internacional.

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