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AMBIENTE

A qualidade é um mito

Poços contaminados são comuns entre produtores de leite

imagem_04Vida na fazenda significa ambiente limpo, ar puro e águas cristalinas, que correm de cascatas paradisíacas e de rios ainda não tocados pela poluição, certo? Lamentavelmente, não é bem assim. Uma investigação científica realizada em Jaboticabal, na região nordeste do Estado, derrubou o mito da água limpa, pelo menos a envolvida na produção do leite, ao evidenciar a baixa qualidade das fontes utilizadas cotidianamente para higiene de equipamentos e úberes dos animais, consumo do gado e dos próprios produtores.

O resultado surpreendeu o próprio pesquisador responsável por esse trabalho, o médico veterinário Luiz Augusto do Amaral, professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Jaboticabal. Antes de iniciar o estudo, Amaral suspeitava da possível contaminação dos mananciais, mas não poderia imaginar que o problema fosse tão grave.

No final do trabalho, o pesquisador verificou que 90% das amostras da água utilizada na limpeza de equipamentos e do úbere dos animais, colhidas em 30 propriedades produtoras de leite, estavam fora dos padrões microbiológicos de potabilidade. A água empregada para consumo animal e humano também se mostrou com índices elevados de contaminação por microrganismos, indicadores de sua baixa qualidade higiênica e sanitária.

Em estudos anteriores, Amaral identificou, em 30% das amostras de água utilizada na produção de leite, higiene de equipamentos e úbere dos animais, colônias de bactérias Staphylococcus aureus, apontadas nas cidades como as causadoras de infecções hospitalares, de difícil resolução. Essas bactérias, transmitidas por meio da água durante a lavagem do úbere, podem provocar mastites, uma inflamação da glândula mamária que gera desconforto nos animais, reduz a produtividade e deprecia a qualidade do leite. Os Staphylococcus aureus podem se constituir em fonte de intoxicações em consumidores de leite bovino, principalmente crianças e idosos, lembra o pesquisador.

As conclusões da pesquisa que ele desenvolveu, intitulada Qualidade Higiênico-Sanitária e Teor de Nitratos em Amostras de Água de Dessedentação Animal e Humana em Propriedades Leiteiras Situadas na Região Nordeste do Estado de São Paulo , com R$ 9,2 mil financiados pela FAPESP, preocupam também por outra razão. Os produtores não apenas desconhecem que a água não é apropriada como, ao contrário, estão convencidos de que a água é boa e, segundo eles, muito melhor do que a consumida nas cidades (58,6% dos entrevistados).

Confiança
Amaral constatou uma idéia generalizada: para os produtores, não há por que se preocupar muito com a qualidade da água fornecida aos animais, já que o gado geralmente consome qualquer tipo de água. Outra razão para a tranqüilidade é que, de acordo com a opinião unânime dos moradores das propriedades que ele estudou, a água é boa. Metade dos produtores contou que a água de suas terras “é melhor que a da cidade”. Os moradores de algumas propriedades chegam ao extremo de levar a água para a cidade, pois acreditam que seja melhor que a fornecida pelo sistema de tratamento público. Carregam satisfeitos seus galões também porque “a água da cidade tem gosto ruim”.

A pesquisa contraria frontalmente as impressões dos produtores. Havia algum manejo de dejetos em apenas três das propriedades visitadas. Como sabemos, se não tratados adequadamente, os resíduos, especialmente os orgânicos, como fezes e urina, tornam-se fontes de microrganismos patogênicos (bactérias, vírus, protozoários), que se infiltram no solo, favorecidos eventualmente pela chuva, atingem a água subterrânea, que abastece as propriedades na zona rural, e causam doenças ao ser humano e aos animais. Em apenas uma entre as 30 propriedades se fazia a limpeza e desinfecção periódica do reservatório de água, que em geral se apresentava em condições inadequadas, depreciando ainda mais a qualidade da água.

imagem_05Epidemias
A história tem mostrado as conseqüências do descuido com a água, que, diga-se logo, não se restringe ao Brasil. Para exemplificar o papel da água na transmissão de doenças, Amaral cita os surtos de cólera ocorridos em 1848 em Londres, descritos em estudos clássicos pelo médico epidemiologista inglês John Snow (1813-1858) e, no Brasil, a epidemia de cólera dos anos 90. No caso dos animais, lembra o pesquisador, a água é considerada uma importante via de transmissão de agentes causadores de doenças, principalmente em bovinos, suínos e aves.

Segundo Amaral, minas e poços rasos, mais sujeitos à contaminação que os profundos, constituem quase a totalidade das fontes de abastecimento nas áreas rurais tanto aqui quanto nos Estados Unidos, por exemplo. Faltam no Brasil levantamentos sobre a ocorrência de doenças veiculadas pela água, mas nos Estados Unidos já se verificou que metade dos casos de doenças transmitidas por ela, na década de 70, apresentou uma relação direta com a água subterrânea contaminada, a despeito do inegável – ainda que limitado – poder filtrante do solo.

As propriedades que Amaral visitou não eram assim tão pequenas, como se poderia imaginar num primeiro momento. O pesquisador selecionou os locais onde seriam colhidas as amostras de água por sorteio, a partir de um universo de 100 propriedades agropecuárias previamente identificadas nos municípios de Pitangueiras, Sertãozinho, Pontal, Taiacu, Taiúva, Monte Alto, Barrinha, Jaboticabal, Morro Agudo, Viradouro, Terra Roxa e Sales de Oliveira – todas elas fornecedoras de leite para a indústria de laticínios da região nordeste do Estado.

A maioria das 30 propriedades selecionadas (82,7%) tinha entre 11 e 300 alqueires (em São Paulo, 1 alqueire equivale a 24,2 mil metros quadrados). Quase metade delas (ou 44,8%) abrigava uma criação com 51 a 100 animais, seguida por outro grupo, de 23,3% das localidades, com menos de 50. Não eram terras dedicadas exclusivamente à pecuária: grande parte da área era ocupada pelo cultivo de cana-de-açúcar, que favorecia o adensamento dos animais (de 0,5 a 30 animais por alqueire, resultado que em alguns casos facilitava a contaminação do solo e dos lençóis freáticos, segundo o pesquisador).

imagem_06A profundidade
Em quase um terço das propriedades (31,0%) moram de 16 a 30 pessoas, vindo em segundo lugar, com 27,6% do total, aquelas com 6 a 10 moradores. Os poços constituíam 73,3% das fontes de água, e as minas, 26,67%. Um detalhe importante a respeito dos poços: a profundidade variava até 10 metros em 56,6% dos casos e até 20 em 20% do total. “A pouca profundidade limita o poder filtrante do solo e expõe as fontes de água à contaminação, principalmente por águas de escoamento superficial”, diz Amaral.

Havia, é certo, algum cuidado. Havia tampa em 93,1% dos poços e calçada ao redor de 70% deles. No entanto, as obras por si só não justificariam o pouco cuidado em relação ao tratamento da água: em apenas 6,6% das propriedades – ou, em termos absolutos, duas residências – utilizava-se filtro de água, e em apenas 3,3%, cloro. “A maioria consumia a água diretamente da torneira situada no interior das residências”, conta o pesquisador.

Um ponto positivo: predominavam os bebedouros para animais de cimento ou de concreto (66,6%), que facilitam a limpeza e a desinfecção. A água dos bebedouros é que não era boa. Amaral verificou que 43,3% das amostras de água colhidas na época de chuvas e 50% no período de estiagem apresentaram-se fora dos padrões para consumo animal recomendados pela resolução número 20 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 18 de junho de 1986. O pesquisador explica que, segundo essa determinação, a água utilizada para dessedentação animal pode conter 4 mil coliformes fecais por 100 mililitros de água e 20 mil coliformes totais. Para Amaral, são valores condescendentes, que deveriam ser revistos. “Uma água com esses níveis de indicadores bacterianos de poluição fecal pode ser perigosa para animais, principalmente jovens, como os bezerros”, diz.

Fora dos padrões
Mesmo de acordo com os limites atuais delineia-se um quadro de alto risco para a saúde bovina. Nas amostras de água utilizada na produção de leite, na lavagem de equipamentos e do úbere do animal, colhidas no estábulo em períodos de chuva, Amaral constatou que 100% estavam fora dos padrões microbiológicos estabelecidos para esse tipo de água, contidos no Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal.

Nos períodos de estiagem, o índice foi de 90%. Em 70% das amostras durante a época de chuvas e 66,7% delas, em época de estiagem, havia Escherichia coli , indicadora fidedigna de poluição fecal, evidenciando o risco da existência de patógenos de origem intestinal, que podem infectar os animais e os seres humanos. Em relação à água consumida pelo animal, 43,3% das amostras estavam fora das especificações oficiais, em períodos de chuvas, e 50% na estiagem.

Nas amostras de água de fontes utilizadas para consumo humano, diretamente nas moradias das pessoas que habitam a propriedade rural, em períodos de chuva, 96,7% (equivalente a 29 das 30 propriedades) estavam fora dos padrões de potabilidade estabelecidos pela Portaria número 36 de 19 de janeiro de 1990, do Ministério da Saúde. Na estiagem, o índice foi de 90%, correspondente a 27 das 30 propriedades. Registre-se também a presença de nitrato, composto químico que se origina de matéria orgânica e adubos químicos. Dependendo da concentração na água, podem ser nocivos à saúde humana e animal.

Contraste
A baixa qualidade da água verificada nesse estudo contrasta com o perfil tecnológico da produção pecuária dessa região bastante desenvolvida do Estado de São Paulo. Nas propriedades estudadas, é comum o uso de ordenha mecânica e o resfriamento do leite na própria fazenda, por exemplo. Da água é que se descuida. “A situação é preocupante.”

Mas da própria pesquisa emergem os subsídios para o início de um trabalho não apenas de prevenção da contaminação como de tratamento nos casos em que os lençóis freáticos já se encontram afetados. “É preciso proteger as fontes, monitorar periodicamente a qualidade da água e tratar a água nos casos em que o comprometimento da qualidade esteja em grau elevado”, diz o pesquisador, que comprova que o problema é um pouco mais abrangente. Ele próprio coordena uma pesquisa em águas de propriedades de suinocultura, também com o apoio da FAPESP. O trabalho ainda está em andamento, mas os resultados preliminares desenham uma situação semelhante à verificada na área leiteira.

Da própria Unesp de Jaboticabal partem não apenas o delineamento do problema, mas também algumas soluções. Uma delas, que conta com a participação do professor Jorge de Lucas Jr., do Departamento de Engenharia Rural, diz respeito à avaliação de biodigestores, para a melhora da qualidade sanitária de dejetos orgânicos, com posterior aplicação no solo.

“São caminhos que devem ser mostrados para permitir ao produtor rural a compensação econômica e o controle da poluição do meio ambiente, a fim de proteger a saúde animal e o homem no meio rural”, afirma Amaral, que alerta para a necessidade de debater mais intensamente a qualidade da água no meio rural em congressos e encontros com produtores. “A situação é reversível, desde que todos nós, das universidades, das cooperativas, das empresas e produtores, nos empenhemos para começar a considerar a água um nutriente essencial aos animais e aos seres humanos.”

Perfil:
Luiz Augusto do Amaral
, 47 anos, é médico veterinário graduado pela Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Jaboticabal, com especialização em Saúde Pública e mestrado e doutorado na área de Saúde Ambiental na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Leciona no Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Reprodução Animal da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp em Jaboticabal desde 1978.

ProjetoQualidade Higiênico-Sanitária e Teor de Nitratos em Amostras
de Água de Dessedentação Animal e Humana em Propriedades Leiteiras Situadas na Região Nordeste do Estado de São Paulo

Investimento : R$ 9.200,00

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