Imprimir PDF Republicar

MEDICINA

Sinais biológicos do pânico

A variação de uma substância no sangue facilita o tratamento

imagem_04Duas pesquisas, capazes de levar a uma melhor compreensão do transtorno do pânico e de seu tratamento, acabam de ser produzidas na Faculdade de Medicina em colaboração com o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP). Uma delas, conduzida pela farmacêutica-bioquímica Tania Marcourakis, do Centro de Investigações em Neurologia do Hospital das Clínicas da USP, pode ser inclusive o ponto de partida para o estabelecimento dos níveis de uma substância específica, o AMP cíclico (monofosfato de adenosina cíclica), nas plaquetas do sangue dos pacientes como um marcador biológico da presença do transtorno de pânico (TP).

A outra, da bioquímica Clarice Gorenstein, professora do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas e pesquisadora do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina, estabeleceu que o uso continuado do antidepressivo clomipramina, um dos medicamentos mais usados contra o transtorno, não cria problemas importantes para o paciente.

Nos dois casos, as pesquisadoras tiveram o apoio da FAPESP. O estudo de Tania, Avaliação do óxido nítrico sintase (NOS) – GMP cíclico e AMP cíclico em pacientes com transtorno do pânico antes e durante o tratamento com clomipramina e em voluntários sadios, concluído no fim de 1999, durou dois anos e contou com a colaboração do laboratório do farmacêutico-bioquímico Cristoforo Scavone, do ICB. O investimento da FAPESP, usado principalmente para compra de materiais de pesquisa no exterior, foi de US$ 28,3 mil. O trabalho de Clarice, Efeitos Cognitivos e Psicomotores da Clomipramina em Usuários Crônicos com Transtorno do Pânico, também durou dois anos e terminou no fim do ano passado. O investimento da FAPESP foi de R$ 9,8 mil mais US$ 2.640.

Os estudos ganham importância pelo fato de o transtorno do pânico ser uma doença cujo reconhecimento é relativamente recente. Só em 1980 ela foi incluída no Manual Diagnóstico da Psiquiatria. Mesmo assim, não é rara: atinge, aproximadamente, 3,5% da população. Ela se caracteriza por ansiedade, taquicardia, dificuldade de respiração e tremores. Alguns pacientes chegam a descrever as crises como “uma sensação de morte iminente”.

Muitas vezes, a sucessão de crises leva à agorafobia – o medo mórbido e angustiante de lugares públicos e abertos – à depressão, ao alcoolismo e à hipocondria. De acordo com Clarice, as mulheres são mais sujeitas ao problema, numa proporção entre duas e três vezes maior do que entre os homens. O transtorno do pânico costuma aparecer antes dos 30 anos e pode ser desencadeado por uma situação de alto estresse, como a morte de uma pessoa próxima ou o desemprego.

Limite
A causa exata do transtorno não é conhecida. Mas os médicos descobriram que medicamentos benzodiazepínicos, antidepressivos que inibem a recaptura de neurotransmissores como serotonina e noradrenalina, têm efeitos benéficos para os pacientes. Assim, a avaliação da recaptura de serotonina e dos sítios de ligação da serotonina e dos receptores de noradrenalina – o neurotransmissor que prepara o organismo para reagir a situações de estresse – a partir do exame de plaquetas e leucócitos do sangue dos pacientes não é algo incomum nos estudos sobre a doença. Em sua tese de doutorado, Tania já tinha constatado que o nível sérico da medicação tinha um limite. Acima de certo nível, não produzia mais efeitos. “Não adiantava aumentar a dose, pois o paciente não melhorava”, lembra a pesquisadora. “Era preciso mudar a medicação.”

A partir daí, Tania se interessou por verificar como a medicação, especialmente a clomipramina, um antidepressivo usado normalmente no tratamento do TP, atuava na transmissão dos estímulos nervosos para as células. Escolheu como caminho para sua pesquisa observar, a partir da análise das plaquetas do sangue, as variações e alterações dos sistemas que caracterizam as doenças neuropsiquiátricas. “A intenção era procurar um marcador biológico e avaliar a ação do medicamento por meio de comparações do desempenho desses sistemas com os de pessoas sadias”, explicou. Decidiu-se fazer a avaliação com base em três fatores: o óxido nítrico sintase (NOS), o GMP cíclico e o AMP cíclico.

Foi feita rapidamente uma verificação importante: o nível basal médio de AMP cíclico no sistema noradrenérgico (o relativo à noradrenalina, o neurotransmissor das situações de perigo) era mais baixo nos pacientes com transtorno do pânico do que nos indivíduos sadios. “Mas, depois do tratamento, os níveis de AMP cíclico voltaram aos níveis normais”, diz a pesquisadora. “De forma interessante, nem o GMP cíclico nem o NOS se alteraram com a medicação.” O AMP cíclico é um nucleotídeo que atua como segundo mensageiro em várias vias de condução de neurotransmissores. Inicia uma cascata de eventos pela ativação da proteína quinase A (PKA), relacionados à fosforilação protéica, um dos processos básicos da célula.

Marcador periférico
Os ataques de pânico dos pacientes desapareceram a partir das oito semanas de tratamento. Mas, em todos os casos, os examescomprovaram um claro aumento da concentração de AMP cíclico nas plaquetas. Na maioria dos pacientes, a quantidade de AMP cíclico dobrou ou triplicou. “Nossos estudos sugerem que níveis baixos de AMP cíclico podem ser uma característica do transtorno do pânico”, diz Tania, “e que, possivelmente, é um marcador periférico da doença.” De qualquer maneira, a pesquisadora pretende aprofundar o trabalho. “É necessária a realização de estudos com amostras maiores e em outras patologias, como a depressão e o transtorno obsessivo-compulsivo, para a verificação da especificidade desses achados”, observa.

Na pesquisa, as amostras de sangue foram colhidas apenas antes do início do tratamento e depois do desaparecimento das crises de pânico. Uma das dúvidas da pesquisadora é se a alteração do nível do AMP cíclico é provocada diretamente pela ação da clomipramina ou se é uma conseqüência do desaparecimento do transtorno.

Participaram do estudo 34 pacientes, 26 mulheres e oito homens, com diagnóstico de transtorno do pânico, atendidos no Ambulatório de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, e 22 pessoas sadias, 13 mulheres e nove homens. Alguns deles participaram também da pesquisa de Clarice Gorenstein sobre os efeitos crônicos da clomipramina. Os pacientes começaram o tratamento recebendo 25 mg de clomipramina, com a dose sendo aumentada progressivamente, de acordo com a resposta clínica.

Dos 34 pacientes que começaram o tratamento, apenas 17 chegaram ao final. Tania acha que há duas explicações para isso. De um lado, há pacientes com dificuldades de adesão ao tratamento, que só procuram o médico quando os sintomas são mais evidentes. Do outro, durante o período em que foi realizada a pesquisa, o transtorno do pânico tornou-se mais conhecido, tanto do público como dos médicos em geral. Dessa forma, alguns pacientes podem ter passado a seguir um tratamento com um médico clínico, deixando de fazer a viagem até o ambulatório.

Longo prazo
A curto prazo, o tratamento do TP com antidepressivos é eficaz e não costuma causar grandes efeitos colaterais. Mas, como se trata de uma doença relativamente nova, não se conhecem os efeitos a longo prazo da utilização dessas drogas. Averiguar as conseqüências a longo prazo do uso da clomipramina, um dos medicamentos mais usados no tratamento do transtorno, era o objetivo da pesquisa de Clarice, que contou com a participação da pós-graduanda Stefania Caldeira de Carvalho. Por meio de testes e questionários, o projeto mediu os desempenhos cognitivo e psicomotor e os níveis de memória de pacientes que tomavam a clomipramina, e nenhum outro medicamento, há mais de dois anos.

Os resultados foram então confrontados com os dos membros de um grupo de controle. Os dois grupos, o de pacientes e o de controle, eram muito parecidos. Nos dois casos, tinham 26 pessoas, 14 mulheres e 12 homens. A média de idade era em torno de 40 anos e a média de escolaridade ligeiramente inferior a 12 anos de estudo. De acordo com Clarice, os resultados da pesquisa não condenam o uso a longo prazo da clomipramina nos pacientes de transtorno do pânico.

Mas indicam a necessidade de que o médico procure sempre estabelecer a dosagem exata e suficiente para cada pessoa, sem exageros no uso da droga, de maneira que o paciente controle as crises, mantenha o convívio social e reduza ao mínimo as perdas de memória que acompanham o uso do produto. A pesquisadora destaca que ainda não se sabe se outros remédios usados nesse tipo de transtorno, como a fluoxetina, princípio ativo doProzac, e semelhantes, funcionam da mesma forma que a clomipramina. “Na maior parte dos casos, os efeitos a longo prazo desses outros medicamentos ainda não foram testados”, diz.

O problema mais importante que acompanha o uso prolongado da clomipramina parece ser uma pequena perda de memória. De acordo com Clarice, isso parece ser algo suportável. Ela dá o exemplo das compras no supermercado. Com o uso do remédio, a pessoa pode esquecer alguns itens da lista de compras. Sem ele, ela nem sairia de casa para fazer compras.

Na pesquisa de Clarice, a avaliação da memória foi feita em dois componentes, um objetivo, outro subjetivo. Na avaliação objetiva, feita com testes nos quais a pessoa se lembrava de seqüências de números e palavras e trechos de histórias, os pacientes e o grupo de controle tiveram desempenhos similares. Na subjetiva, uma série de perguntas que a própria pessoa respondia sobre falhas de memória em sua vida pessoal, como o pagamento de contas e nomes de pessoas, os pacientes medicados com a clomipramina tiveram desempenho médio cerca de 10% inferior ao do grupo de controle.

Nas avaliações cognitivas e psicomotoras, o desempenho dos dois grupos, de maneira geral, foi equivalente. Mas houve alguns testes, como um teste motor que consistia na cópia de símbolos, em que os pacientes do TP tiveram desempenho superior ao do grupo de controle. O motivo? Não é possível saber. Uma explicação pode ser a de que os pacientes estivessem mais motivados e mais dispostos que as pessoas sadias, obtendo, assim, resultados melhores. As pesquisas feitas na Faculdade de Medicina da USP não deram todas as respostas. Mas permitiram bons avanços nos conhecimentos sobre uma doença que, até há pouco mais de 20 anos, nem se sabia que existia.

Perfis:
Clarice Gorenstein
, graduada em Farmácia e Bioquímica na Faculdade de Ciências Farmacêuticas, com mestrado e doutorado em farmacologia no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e pesquisadora do Laboratório de Psicofarmacologia do Hospital das Clínicas da FMUSP. É professora do ICB desde 1979.

Projeto
Efeitos cognitivos e psicomotores da clomipramina em usuários crônicos com transtorno do pânico
Investimento
R$ 9.892,02, mais US$ 2.640

Tania Marcourakis, farmacêutica-bioquímica, com mestrado e doutorado em farmacologia no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo. É pesquisadora do Centro de Investigações em Neurologia do Hospital das Clínicas da FMUSP desde 1981.

Projeto
Avaliação do óxido nítrico sintase (NOS) – GMP cíclico e AMP cíclico em pacientes com transtorno do pânico antes e durante o tratamento com clomipramina e em voluntários sadios
Investimento
US$ 28.313,93

Republicar