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Esther Bertoletti

Os pesquisadores diante de um desafio

Chegou a hora de repensar a história da colônia

Coordenadora técnica nacional do Projeto Resgate acha que a nova facilidade de acesso aos documentos sobre o período colonial vai obrigar os historiadores a examinar outra vez fatos e interpretações e fazer surgir opiniões divergentes sobre o mesmo assunto.

O trabalho de registro dos documentos do Arquivo Histórico Ultramarino só começou agora?
Não, ele vem de muito longe. Começou no século 19. Mas os pesquisadores que iam a Lisboa não tinham uma concepção de arquivista de história, de fazer verbetes, como agora. Eles copiavam ipsis litteris os documentos. Iam ao Arquivo Ultramarino, passavam os olhos pelo material, achavam um documento curioso ou interessante e então o copiavam integralmente, sem fazer um resumo. Um desses pesquisadores foi o poeta Gonçalves Dias. Em várias cartas, ele se queixou do trabalho. Escrevia, por exemplo: “Não suporto mais, minha mão está muito cansada”.

Isso continuou por muito tempo?
No começo do século 20, compreendeu-se que seria impossível copiar à mão todos os documentos. Por essa altura, nem 5% do que havia tinha sido copiado. Só no Arquivo Ultramarino, são 3 milhões de páginas manuscritas. Se formos contar os outros arquivos portugueses, mais o que há na Holanda, na França, na Itália, o total deve ultrapassar os 5 milhões. Por mais que se mandasse gente para Lisboa, o trabalho não terminaria.

O que se fez, então?
Passou-se a contratar pesquisadores portugueses, como Castro de Almeida e Mendes Gouveia, com instruções para que fizessem resumos. Mas, em vez de fazer sumários breves, eles faziam resumos de três ou quatro páginas. Muitas vezes, transcreviam todo o documento e o juntavam ao resumo. Veja o exemplo do Rio de Janeiro. Ele tem, no total, 414 caixas. Castro de Almeida conseguiu completar os resumos de apenas 88. Todas as outras 326 caixas estão sendo feitas agora.

Como se trabalha atualmente?
Faz-se um resumo breve. Um verbete de São Paulo, por exemplo, diz: “ofício do governador tal ao secretário tal, comentando sobre a epidemia de bexiga e pedindo a chegada imediata de remédios para atender a população”. Agora, basta o resumo, pois temos a íntegra do documento em microfilme.

Qual é a previsão para o fim dos trabalhos?
O Projeto Resgate de Documentação Barão do Rio Branco tem duas etapas. A primeira, a maior, foi o registro dos documentos do Arquivo Histórico Ultramarino. Ele tem 80% da documentação sobre o Brasil no exterior. São 300 mil documentos, cerca de 3 milhões de páginas manuscritas. Até junho do próximo ano, este trabalho terminará. A última capitania a fechar a microfilmagem será a do Rio de Janeiro.

E depois?
Pretendemos fazer um adendo em Portugal, com os documentos da Inquisição que estão na Torre do Tombo. Relativamente, é pouco material. Serão cerca de 80 rolos de microfilme, quando no Arquivo Ultramarino usamos cerca de 3 mil. Também vamos copiar os documentos da Casa da Suplicação, que recebia todos os processos. Com esses dois conjuntos, o da Inquisição e o da Casa da Suplicação, pretendemos encerrar a massa documental em Portugal.

O trabalho estará completo?
Vai faltar um documento aqui, outro ali, mas correr atrás de tudo é impossível. O professor Caio Boschi fez há algumas décadas um guia dos arquivos onde havia coisas de interesse para o Brasil em Portugal. Partindo desse guia e de outros depoimentos, fizemos um levantamento. A conclusão é que praticamente tudo está no Arquivo Ultramarino e na Torre do Tombo. Há outros lugares, como a Cidade do Porto, Évora, a Universidade de Coimbra. Mas são lugares com apenas 30 ou 50 documentos, nada que se compare aos 300 mil do Arquivo Ultramarino.

Para fora de Portugal, o que está sendo preparado?
Esperamos terminar até o fim deste ano o Guia de Fontes para a História do Brasil Holandês. Será uma lista dos arquivos holandeses com documentação sobre o Brasil. Logo depois, talvez ainda em 2000, sairão trabalhos semelhantes sobre França, Espanha e Itália. São países que tiveram uma aproximação muito grande com o Brasil. Veja, por exemplo, o caso da França Antártica. A partir desses guias, vamos identificar os grandes acervos de documentos, para que eles, também, sejam microfilmados.

Este trabalho já está muito adiantado?
Sim, algumas partes dos guias já estão até em fase de editoração. Na Espanha, onde a documentação vem sendo trabalhada há mais tempo, já sabemos que os três principais arquivos com material sobre o Brasil são os de Simancas, de Sevilha e de Tenerife. Então, já sabemos que vamos microfilmar esses três arquivos. Na Holanda, os documentos estão em língua holandesa e letras góticas. Mas, mesmo assim, vários pesquisadores brasileiros, como João Cabral de Melo Neto e José Antônio Gonçalves de Melo, estiveram lá e fizeram livros sobre o assunto. Vamos microfilmar esses documentos e trazê-los para cá. Quem quiser lê-los, que aprenda aquela língua, que aprenda a ler aquelas letras.

Será um trabalho rápido?
Bem, pretendemos começar a microfilmagem já em 2001. Mas o material está muito espalhado. Em Portugal, foi possível concentrar os esforços no Arquivo Ultramarino. Mas, nos outros países, há grupos de 1.000 documentos aqui, SOO ali. Se tivermos condições, vamos também microfilmar documentos sobre o Brasil no Arquivo Secreto do Vaticano.

Arquivo secreto?
Sim, o nome é este mesmo. Os preparativos foram feitos em parceria com Portugal. Durante muito tempo, esse arquivo era inacessível. Mas, nos últimos anos, o Vaticano fez uma ligeira abertura. Portugal, no fim do ano passado e no começo deste, colocou pesquisadores lá. Eles estão fazendo os verbetes, documento por documento. Estamos em negociação com o arquivo e já conseguimos o dinheiro para o trabalho.

Em que pé estão as negociações?
Já estive no Vaticano e conversei com o diretor do Arquivo Secreto. Em tese, ele já liberou a microfilmagem. Estamos esperando que os pesquisadores portugueses completem os verbetes, para selecionar o que queremos, calcular a verba necessária e passar a conta para o Ministério da Cultura bancar. Deve ficar em cerca de US$ 20 mil. São pouco mais de 3 mil documentos, a metade da documentação de São Paulo no Arquivo Ultramarino. Com algumas bulas e outro material agregado, o total pode chegar a 4 mil documentos e as despesas a US$ 25 mil. A microfilmagem será feita no próprio arquivo. Não será preciso transportar o material.

E para trabalhar com o arquivo da Inquisição, em Portugal, houve algum problema?
Não. Está todo à nossa disposição. O material está na Torre do Tombo. Quando houve a separação entre a Igreja e o Estado, o governo português assumiu toda a documentação eclesiástica. Os documentos da Igreja passaram a fazer parte da documentação oficial do governo.

Mas, mesmo antes do Projeto, já eram feitos microfilmes.
Sim, mas antes eram microfilmados dois processos, cinco processos. O que estamos fazendo agora é uma microfilmagem sistemática, de ponta a ponta. Sem nenhuma exceção. Taunay, por exemplo, trabalhou com documentação da Espanha. Publicou alguns verbetes e alguns textos integrais na revista do Museu Paulista. Mas ele pegava um documento, vamos dizer, sobre Palmares, achava interessante, mandava transcrever e publicava. Era um documento no meio de cem. Hoje, a historiografia diz que um documento não fala sozinho. Ele está dentro de um contexto e fala junto com outros documentos.

Os documentos sobre o Brasil da época em que Portugal ficou unido à Coroa espanhola estão na Espanha?
Os arquivos sobre o período filipino estão na Espanha, na parte do Conselho de Portugal nos arquivos de Simancas e de Sevilha.

Como aproveitar esse material?
Pense uma coisa. Antigamente, um pesquisador brasileiro ia para a Europa e trabalhava na Espanha, na Holanda ou em Portugal. Não em todos esses países simultaneamente. Mas, com a microfilmagem de todo esse material, o pesquisador vai poder acessar ao mesmo tempo a versão holandesa, a versão italiana, a versão espanhola. A versão francesa é importante. A França estava continuamente tentando invadir o Brasil. Então, o pesquisador vai poder trabalhar pela primeira vez todo um período histórico em conjunto. Antes, não havia tempo, dinheiro ou fôlego para que um pesquisador mergulhasse de quatro a seis anos em vários arquivos europeus para preparar uma tese.

E agora?
Os verbetes facilitam tudo. Se o pesquisador está preparando uma tese sobre a colaboração entre os índios e os invasores no período colonial, pode ir aos verbetes e escolher os documentos dos quais vai precisar. Ou passar o rolo de microfilme por uma máquina e fazer a mesma coisa. O sonho do Ministério da Cultura é conseguir, daqui a dois ou três anos, consolidar uma grande base de dados, colocar num mesmo lugar todos os verbetes de todas as capitanias. Aí, você vai querer, por exemplo, fazer um estudo sobre a questão de salários durante o período colonial e reunir de uma vez material de todas as capitanias. Atualmente, para fazer isso, é preciso pesquisar capitania por capitania. Esse é o desenrolar normal do trabalho. Veja o exemplo do catálogo do Espírito Santo. Fizemos uma edição de 500 exemplares. Esgotou-se rapidamente. Agora, estamos tentando fazer outra edição. Daqui a 20 anos, será dificílimo encontrar esse catálogo. Talvez só em grandes bibliotecas. Mas hoje, com a Internet, uma grande base de dados pode substituir a ida à biblioteca.

Inclusive, com acesso de qualquer parte do mundo.
Sim, e isso é muito importante. A Unesco, numa certa altura,portuguese viu enfrentando o problema dos países africanos que adquiriam a independência e queriam os documentos sobre seu passado que estavam nas metrópoles. Mas não era possível chegar num país europeu, abrir um armário, reunir os documentos e levá-los para Angola ou Argélia. A Unesco determinou então que, em países de passado comum, o arquivo passa a ser um patrimônio comum. É o caso dos documentos relativos ao Brasil que estão em Portugal.

E vice-versa?
Sim, os documentos que estão no Brasil também pertencem a Portugal. Como o Brasil foi governado a partir de Lisboa, Dom João VI governou Portugal a partir do Rio de Janeiro. Toda essa documentação do período joanino está sendo agora microfilmada por pesquisadores portugueses. É o chamado Projeto Reencontro, coordenado no Brasil também pelo Ministério da Cultura. Há muitas coisas também na Bahia e em Belém do Pará. No Instituto de Estudos Brasileiros da USP, há a coleção Lamego, que deixou pesquisadores portugueses encantados. Lamego era um pesquisador do fim do século passado  que comprou, em Portugal e outros países da Europa, muitos documentos sobre o Brasil e Portugal. Ao voltar para o Brasil, levou a coleção para Campos, no Estado do Rio, onde morava. Publicou três ou quatro livros e deixou a coleção lá. Foi comprada pelo escritor Mário de Andrade e hoje está no IEB. As coisas vão mudar, e muito. Antigamente, um pesquisador fazia um livro de história e todos aceitavam o que ele dizia, pois ele pesquisara os documentos,ele fora lá. Hoje, com o acesso mais fácil aos originais, o que um pesquisador disser poderá ser rebatido por outros dez. Pois o documento precisa ser interpretado e confrontado com outros documentos. Hoje o fato já passou, não existe mais a história oral. Trabalha-se com os documentos. Um pesquisador vai ver coisas nas entrelinhas de um documento, conforme a sua formação, e apresentar novas idéias.

Haverá conflitos?
Num julgamento, os advogados interpretam uma peça do processo de maneira diferente. Um documento histórico também pode servir de base a pelo menos duas interpretações. Com isso, muitas coisas serão repensadas, vários fatos ou interpretações serão confirmados ou desmentidos. Antigamente, havia quatro ou cinco professores que eram donos do Brasil holandês. Só eles eram autoridade sobre o assunto. Com os documentos na mão, provavelmente não haverá mais isso. Hoje, aprender uma língua não é tão difícil. Há até fitas cassete ensinando holandês. Além disso, boa parte do material holandês está em latim, uma língua básica, também, para o material italiano. Conheço vários ex-padres que estão ganhando a vida dando aulas de latim para professores de história.

E para as pessoas?
Não sou historiadora, sou coordenadora do Projeto. Minha função é organizar esse material e jogá-lo nas mãos dos pesquisadores. É a eles que cabe o desafio. Na realidade, os pesquisadores estão hoje diante do desafio de reconfirmar ou reescrever a história do Brasil. A história do índio, por exemplo, ainda está toda para ser feita. Quando o projeto começou, o professor Darcy Ribeiro fez uma carta muito bonita, na qual dizia: “Finalmente, vamos poder conhecer coisas”. Hoje, ninguém pode mais ficar de 30 a 50 anos trabalhando num só projeto.

Esther Caldas Guimarães Bertoletti é a coordenadora técnica nacional do Projeto Resgate, formada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Jornalismo pela PUC da mesma cidade. Fez outros cursos em Buenos Aires, Roma e na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Como consultora da Fundação Ford, coordenou e implantou o Plano Nacional de Microfilmagem de Periódicos Brasileiros, trabalho pelo qual recebeu vários prêmios. Foi diretora de vários departamentos da Biblioteca Nacional e diretora substituta do Museu do Índio do Rio de Janeiro.

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